Henrique Cymerman: "Um Estado palestiniano ao lado de Israel, não em vez de Israel como quer o Hamas"
Dois anos após o maior atentado que Israel já conheceu, o livro "O Enigma de Israel" é apresentado na terça em Lisboa e na quarta-feira no Porto. O autor é jornalista, professor universitário, foi embaixador pessoal e amigo do Papa Francisco, é correspondente da SIC no Médio oriente: Henrique Cymerman
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Os ataques de 7 de outubro de 2023 a Israel, coordenados e conduzidos pelo grupo militante islâmico palestiniano Hamas, da Faixa de Gaza, nas áreas fronteiriças do sul de Israel, como Sderot, aconteceram numa manhã de celebração de vários feriados judaicos, como o início da Guerra do Yom Kippur, a 6 de outubro de 1973.
O Hamas e outros grupos armados palestinianos chamaram aos ataques Operação Dilúvio de Al-aqsa. Em Israel são um Sábado Negro. Os ataques começaram no início da manhã com o lançamento de cerca de 4300 rocketss contra Israel (disparados de mil pontos dentro de Gaza) e incursões de militantes em parapentes e veículos motorizados em território israelita. Cerca de seis mil militantes do Hamas romperam a barreira Gaza-Israel, desataram a matar civis nas comunidades israelitas vizinhas e atacaram bases militares do IDF. Num único dia, mais de mil civis israelitas e mais de 350 soldados e polícias foram mortos em cidades fronteiriças, kibutzs, bases militares e num festival de música perto de Re'im. Cerca de 200 civis e soldados israelitas foram levados como reféns para a Faixa de Gaza, entre os quais cerca de 30 crianças.
Nos dois anos do massacre do 7 de outubro, é apresentado em Lisboa, na Sala de Âmbito Cultural do El Corte Inglês, às 18h30 de terça-feira, e na quarta-feira, no Porto, o livro O Enigma de Israel, Uma História do Estado Judaico.
Comecemos precisamente pela introdução do livro e pelo teu assumido empenho na “promoção do entendimento entre Israel e o mundo árabe”. Escreves mesmo: “o único jornalista que entrevistou todos os líderes do Hamas desde os anos 90, fundador da Câmara de Comércio e Inovação entre Israel e os países do Golfo”. Em nome do Papa Francisco organizaste a “primeira oração pela paz no Vaticano entre os presidentes Mahmoud Abbas e Shimon Peres”. Afirmas ter contribuído para os Acordos de Abrão e ter “procurado promover o diálogo entre os muçulmanos e os judeus”. Depois do 7 de outubro e da resposta militar de Israel que já fez mais de 65 mil mortos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, que como sabemos é controlado pelo Hamas, e depois do território de Gaza estar completamente arrasado, acreditas mesmo que a paz é possível no Médio Oriente?
Eu acredito que a paz é possível, mas não é a mesma paz que existe entre a França e a Alemanha. Repara, Ricardo, imagina que estávamos agora em 1944 numa cave da resistência francesa e eu ia lá falar com eles e dizia-lhes que, dali a 10 anos, eles poderiam ir à Alemanha, poderiam ir tomar cerveja a Berlim, e que no futuro as fronteiras entre os dois países estariam abertas. Provavelmente pensariam que eu não tomei os remédios indicados de manhã, ou dizer uma coisa assim nesse momento. Eu penso que não é impossível que estejamos numa situação parecida, mas é um processo longo. A paz aqui não é uma coisa instantânea, também na Europa não foi instantânea, mas aqui menos ainda.
Estamos a falar do conflito mais antigo do mundo, um conflito que tem não só uma base territorial de real estate, de imobiliária, senão que tem aqui uma guerra quase religiosa, por vezes de valores, de diferenças muito grandes entre as duas partes, em que há ainda movimentos como é o Hamas que querem eliminar Israel e provam-no todos os dias, não só com as suas palavras, se não com as suas ações, e que provocaram esta terrível tragédia que estamos a viver neste momento em Gaza e em Israel nos últimos anos. O que vimos aqui realmente são coisas que eu nunca tinha visto em décadas, que sou jornalista nesta região do mundo, e no entanto penso que neste momento as estrelas estão a ordenar-se de uma maneira que talvez seja possível, por um lado, acabar por agora esta guerra em Gaza, não só um cessar fogo, mas acabá-la, libertar os reféns, os 48 reféns israelitas. Se eles tivessem sido libertados há uns meses a guerra já tinha acabado, aqui fala-se neste momento de os libertar num prazo de 48 horas depois do acordo. A troco disso haverá centenas mais de 250 presos palestinianos que cometeram delitos de sangue, que estão condenados a penas de dezenas de anos que vão ser libertados, além de cerca de mil que foram capturados depois de 7 de outubro. Em qualquer caso, eu acho que Donald Trump, com todo o seu lado um pouco exótico da sua atitude e da sua política e da sua forma de fazer diplomacia, tem possibilidade aqui de criar realmente um new design, um redesenhar das fronteiras do Médio Oriente e conseguir algumas mudanças importantes, entre elas começar um roteiro que no futuro poderia levar, quem sabe, a um Estado palestiniano ao lado de Israel, não em vez de Israel como quer o Hamas.
Pensas que aquilo que aconteceu a 7 de outubro de 2023 foi uma forma de o Hamas responder a vários aspetos da ocupação israelita ou foi também evitar a normalização de relações entre israelitas e sauditas?
Foi sobretudo isso, foi isso em primeiro lugar. O Hamas entendeu que, bem, o Hamas no fundo é um braço, é um executor, quem manda é o Irão e tudo veio de Teherão, mas o Hamas através do Irão entendeu que Israel e a Arábia Saudita, que é o país muçulmano de maior influência, estamos a falar de dois mil milhões de muçulmanos no mundo, que olham para a Arábia Saudita porque é a sede de Mecca e Medina, os lugares sagrados, e veem neles um modelo e um exemplo a seguir. Eu sei que dias depois do massacre estava prevista a normalização entre Israel e a Indonésia, o país muçulmano com mais população, 275 milhões de habitantes.
É muito importante o que estava a ponto de acontecer. Eu acho que o Irão e o Hamas e outros grupos como o Hezbollah no Líbano, por exemplo, os proxys do Irão, entenderam que esta normalização com a Arábia Saudita não podia acontecer... Eu estive um mês antes com uma delegação israelita oficial, pela primeira vez na história, 12 pessoas encapsuladas por uma mulher, a doutora Niri Tofir, uma mulher que está muito ativa na Arábia Saudita e no mundo árabe em geral nos últimos 15 anos, que falou neste congresso e nos colocaram uma etiqueta enorme que dizia Israel, frente a delegações de todo o mundo árabe com a intenção de mostrar o que eles queriam. Viam na normalização com Israel uma medida estratégica que estava ali e esses grupos queriam advertir a todo o mundo muçulmano.
O 7 de outubro foi uma tentativa de o parar; conseguiu momentaneamente, é possível que não o tenha conseguido para sempre e que estejamos num momento no qual vamos voltar a esse carril que foi interrompido com o massacre, que diz o historiador israelita Yuval Noah Harari, que foi o principal massacre desde nos últimos 2000 anos nesta terra, na terra santa.
Por que é que falhou tanta coisa naquele fatídico 7 de outubro? Como se pergunta na página 313 do teu livro, como é possível que o primeiro soldado tenha chegado ao kibbutz uma hora depois de o último terrorista do Hamas ter regressado a casa? Ou por que é que a unidade de elite Sheldag só chegou 30 horas depois do início do massacre? Ou por que é que a força aérea não conseguiu conter o ataque do Hamas?
Nunca pensaram que uma coisa assim era possível. Ou seja, as pessoas muitas vezes confundem e pensam que aquele foi outro atentado terrorista como centenas de atentados que houve no passado, mas não.
Estamos a falar de uma coisa de uma magnitude que não tem precedentes no mundo. Imagina que é como se no 11 de setembro nos Estados Unidos (EUA), em 2001, no atentado que até hoje era definido como o maior da história, houvesse 40 mil mortos nesse atentado, nos EUA, e não 2900 como houve. É como se, em vez de haver 20 terroristas que atacaram os EUA, houvesse 5700, que foi o número de palestinianos vinculados ao Hamas e à jihad islâmica que entraram a Israel essa manhã.
Eu acho que em Israel preparavam-se para um possível atentado de 10, 15 pessoas no máximo, mas nunca 5700. Nunca pensaram que uma organização como o Hamas tivesse a ousadia de fazer uma coisa como esta e foi um erro que eu penso que é por isso que parte dos líderes militares e políticos israelitas estão a começar a pagar. Eu penso que é preciso uma investigação estatal em Israel que, no fundo, veja também as responsabilidades de Benjamin Netanyahu, que era primeiro-ministro já nessa altura, de facto já é o primeiro-ministro que leva mais tempo no poder em Israel, e que tem que pagar de alguma maneira a sua responsabilidade. Eu acho que esse vai ser o grande tema das próximas eleições que estão previstas para o próximo ano.
Parece-me que os israelitas não vão deixar passar um momento assim. O preço foi tão alto, o traumatismo na sociedade israelita é tão grande, que eu penso que houve aqui um erro de conceção por parte do governo de Benjamin Netanyahu, que pensava que o Hamas, através de ajuda económica que chegava do Catar, com bolsas cheias de dinheiro em cash entregue ao Hamas, com o facto de que havia dezenas de milhares de palestinianos que vinham todos os dias trabalhar em Israel e que recebiam salários, que tudo isso estava a normalizar o Hamas e que o Hamas estava a passar um processo parecido àquele que a Al-Fatah, que foi um grupo terrorista que matou 11 desportistas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique, aceitou reconhecer Israel em 1993, nos acordos de Oslo. Eu penso que Netanyahu e outros em Israel pensaram que isso é o que estava a acontecer com o Hamas, mas o Hamas enganou Israel profundamente e levou a cabo este ataque que mudou para sempre a história desta região.
O atual Governo de Israel está interessado numa paz que não passe pela deportação em massa da população palestiniana ou que não passe pela anexação da Cisjordânia?
O governo de Israelita é um governo que depende de dois grupos de extrema-direita, um deles é o grupo do ministro Itamar Ben-Gvir, Otzmaia Udit, Força Judaica, e o outro do Bezalel Smotrich, que se chama o Sionismo Religioso. Eles, no fundo, estes dois partidos, o que gostariam de ver é a colonização israelita de novo em Gaza, ou seja, colonatos israelitas em Gaza, bases militares israelitas e policiais em Gaza e, sem dúvida, o êxodo da população palestiniana. Mas eu penso que hoje, justamente nestes dias, quando eles ouvem o que acontece nas negociações, quando eles ouvem que o mundo árabe se está a organizar para entrar em Gaza em peso, chefiado por um governador que provavelmente vai ser Tony Blair, o ex-primeiro-ministro britânico, que será uma espécie de governador temporário da faixa de Gaza no princípio para a sua reconstrução, é preciso absolutamente reconstruir Gaza, é preciso que estas pessoas possam ter uma vida normal dentro da faixa de Gaza e que não sejam reféns do Hamas, que desde 2007, quando fizeram um golpe de Estado, de alguma maneira os puseram contra a parede e transformaram Gaza numa espécie de cidade da guerra, construindo túneis que são o dobro do túnel de Nova York, dos metros de Nova York ou do metro de Londres, dedicados plenamente à guerra, com o dinheiro que tinha chegado, em vez de investir na população.
Eu acho que tanto os israelitas merecem segurança como a população de Gaza merece ter uma vida muito mais estável e um futuro para a metade da população que são crianças de menos de 18 anos que vivem em Gaza, é uma das populações mais jovens do mundo, 48% têm menos de 18 anos. Tudo isso é preciso para criar-lhes um futuro diferente. Eu penso que o mundo árabe vai entrar em peso conjuntamente com os EUA, espero também com a União Europeia, apesar de que não tenho informação disso, e a Autoridade Palestiniana reformada vai ser quem, depois de eleições, vai ter que entrar e vai ter que substituir no futuro esta autoridade transitória internacional que vai controlar Gaza. Eu penso que sim, eu penso que em Israel, neste governo, o primeiro-ministro Netanyahu não é a pessoa que foi... eu conheço-o bem há muitos anos, nunca foi santo da minha devoção, reconheço, mas ao mesmo tempo eu acho que há uma caricatura apresentada nos meios de comunicação internacionais. Ele não é Ben-Givir, ele não é Smotrich, ele precisa da extrema-direita para poder continuar a governar, mas ele é muito diferente deles, ele é mais pragmático, apesar de ser um homem de direitas, um conservador, eu diria que é uma espécie de republicano norte-americano. Eu penso que ele gostaria de chegar às próximas eleições em Israel, não só com o resultado da guerra de Gaza, se não recuperando os reféns, que para a sociedade israelita isso é a missão número 1, devolvê-los vivos ou mortos a casa, mas ao mesmo tempo recomeçando o caminho dos acordos de Abrão e da normalização com a Arábia Saudita, que no fundo são as únicas boas notícias que houve nesta região nos últimos anos, quando foram assinados em 2020, e que creio que têm um potencial de desenvolvimento importante nos próximos anos.
Mas como escreves com o mapa político muito inclinado para a direita, vai alguma vez Israel aceitar um Estado da Palestina na faixa de Gaza e Cisjordânia com uma capital em Jerusalém Oriental? Neste momento não, neste momento os israelitas olham para isso como um prémio ao 7 de outubro, um prémio aos grupos islamistas radicais, é preciso entender que a sociedade israelita vive uma situação de pós-trauma, mas se eu olho para tudo o que aconteceu desde a Conferência de Paz de Madri em 1991 até hoje, vejo sondagens mais profundas, eu penso que há uma possibilidade que no futuro isso aconteça. A minha opinião pessoal, e quando me perguntaram foi o que eu disse ao Papa Francisco, foi o que eu disse ao Rei da Arábia Saudita, foi o que eu disse ao Príncipe Herdeiro da Arábia Saudita, o que eu disse ao Presidente dos Emirados Árabes Unidos, eu digo isso ao mundo árabe, digo isso na Europa e digo isso nos Estados Unidos: é preciso uma Declaração Balfour para os palestinianos.
O que se fez em 1917 aos judeus, prometendo-lhes uma casa nacional no futuro, quando as circunstâncias fossem possíveis, eu penso que é preciso fazer isso com os palestinianos, eu penso que os israelitas põem opurão no futuro, se realmente formos para a frente agora com uma mudança da geopolítica, com a continuação dos acordos de Abrão, eu acredito que podemos chegar lá no dia em que se dê em três condições, segurança, segurança e segurança. Essa é a única condição que os israelitas põem e eu acho que se a comunidade internacional, através da NATO, através dos EUA e do mundo árabe, for capaz de levar a uma situação na qual os israelitas olhem para a Cisjordânia, olhem para Gaza e não pensem que um grupo como o Hamas ou até mesmo o Hamas ou a jihad Islâmica podem voltar a fazer um golpe de Estado e repetir um 7 de outubro, tudo é possível. Eu penso que isso será possível no futuro, eu acho que é a única solução realista que existe, porque as alternativas são muito piores.
Ninguém fala delas, mas as alternativas, se reparas Ricardo, são duas. Uma é manter o status quo, a situação atual, e isso vemos aonde nos leva, a guerras permanentes. A outra situação levar-nos-ia a uma guerra civil permanente e é um só Estado, que é que Israel controla Cisjordânia, controla Gaza e no fundo o que vemos aqui é que há 15 milhões de habitantes, metade judeus, metade palestinianos, entre o Rio Jordão e o mar Mediterrâneo e é preciso no fundo repartir este território, senão se os dois estão num só Estado, que seria um Estado de Israel que inclui todas estas comunidades, eu acho que estaríamos condenados nesta região a uma guerra civil eterna e essa não é a solução.
Portanto, um Estado palestiniano é provavelmente a melhor situação de todas, apesar das suas dificuldades, é preciso deixar as declarações vazias e de relações públicas e as flotilhas das selfies e todas essas coisas que no fundo não ajudam a nada, mais do que criar mais animosidade, mais ódio, mais rivalidade, afastar a paz. É preciso aproximar a paz com coisas reais. Os palestinianos precisam de uma ajuda real para poder criar forças de segurança, uma polícia que seja capaz de controlar a situação na Cisjordânia e em Gaza, com o apoio do mundo árabe, só o mundo árabe.
Aqui, a Arábia Saudita e o Egito que são o eixo central do mundo árabe sunita, mas apoiados pelos Emirados Árabes Unidos que têm um papel muito importante hoje em dia, sobretudo em Gaza e também de alguma forma pela Jordânia, que é outro grande protagonista desta região, talvez também Marrocos. Eu acho que isso é essencial para poder ajudar a construir um Estado palestiniano viável, que possa ser um vizinho em segurança, tanto de Israel como da Jordânia.
Fala-se muito dos reféns, o que é natural, mas há algo de que se fala pouco, muito pouco: Que números é que podem ser reais de soldados israelitas mortos em combate em Gaza?
Os números são muito exatos, são 900 pessoas, 900 mortos e isso é realmente enorme para a sociedade israelita, sobretudo se agregamos a isso os 1200 mortos do dia 7 de outubro, são números que Israel nunca tinha vivido. É verdade que não é de todo exato, porque na guerra da independência de Israel, 1% da população judaica foi eliminada nessa guerra em 1948. 6 mil pessoas nessa altura dos 600 mil judeus que viviam nesta região.
Ou seja, que foram talvez números ainda piores, mas desde esse momento não se tinha produzido uma coisa assim. Para Israel há um traumatismo brutal. Eu pessoalmente conheço muitas pessoas que ou perderam os seus filhos ou que eles foram feridos.
Há 13 mil feridos. Provavelmente, nos seus corpos, nas suas mentes, é gente que Israel se vai ter que ocupar deles. Toda uma geração no futuro que vem com stress pós-traumáticos, outros perderam braços, pernas, há realmente situações muito fortes.
À parte que é preciso entender que também em Gaza há muitos mortos civis e isso são vizinhos que estão... Entendo, eu estou em Tel Aviv e se eu quero ir a Gaza, se me deixassem agora entrar em Gaza, é uma hora e 15. Ou seja, estamos a falar realmente de pouco mais do que é Lisboa-Sintra, por assim dizer. Ou seja, é aqui, é no coração desta região.
E o que não se diz suficientemente nos meios de comunicação ocidentais, e em Portugal em concreto também, e é importante recordar isso, é que uma parte importante destes mortos são terroristas do Hamas, considerados terroristas pela UE e pela Liga Árabe, ou seja, que estamos a falar de milhares e milhares de homens, ninguém sabe bem quantos, provavelmente deve andar por volta dos 25 mil, que são combatentes do Hamas, que se vestem de civis para parecerem civis quando são contabilizados como mortos, mas que no fundo são gente que provocou tudo isto. O Hamas conseguiu o seu objetivo, que era arrastar o exército de Israel para dentro de Gaza. Outro dia estive com um grupo de generais da Europa e dos EUA, e eles disseram gente que tinha combatido no Afeganistão e no Iraque.
Eu conheci-os no Iraque, em Mosul, quando combatiam contra o Estado Islâmico, alguns deles, e eles diziam o último lugar do mundo onde 'nós gostaríamos de combater em Gaza', devido à densidade de população enorme que há lá, e à grande dificuldade de poder fazer um combate. É por isso que Benjamin Netanyahu, o homem que hoje em dia é apresentado como uma espécie de Hitler em alguns países ocidentais, não queria entrar em Gaza durante nove anos. Ele tentou evitar entrar em Gaza apesar das pressões militares, quando se lançavam mísseis sobre Israel, porque ele sabia que Gaza é um pântano do qual ninguém pode sair de forma positiva, terminas por te enterrar e realmente a morte de civis, que aconteceu e que é inevitável num lugar como este, terminaria por criar uma campanha contra Israel, que se está a viver em alguns países do mundo e que eu acho que vai demorar muito tempo em conseguir reparar.
Israel perdeu a guerra do TikTok?
Israel perdeu a guerra do TikTok absolutamente. Eu acho que Israel nem pôs uma pessoa na baliza, ou seja, Israel perdeu 30 a 0. Não lutou esta guerra. É verdade que Israel lutou sete guerras, sete frentes e ganhou.
E isso é outra coisa que não tem precedentes. Mas eu acho que este governo, sobretudo, mas não só, eu acho que é um problema geral da mentalidade israelita que não entenderam que isto é uma arma. Um telefone celular é uma arma hoje em dia, da mesma maneira que um F-15 é uma arma e que um tanque Merkava é uma arma.
Não entenderam isso suficientemente, ou não quiseram entender. Eu penso que um dos resultados das próximas eleições vai ser que Israel vai investir muito mais na guerra de narrativas. É verdade que o Qatar investiu somas milionárias.
É verdade que há dois mil milhões de muçulmanos no mundo e há 16 milhões de judeus. É uma diferença extremamente importante, mas Israel não pode, nem nenhum país que está em guerra pode renunciar à guerra mediática.
Escreves também que Israel perdeu a guerra da diplomacia pública. O que acontece em Gaza é, na tua opinião, genocídio, crimes contra a humanidade ou apenas uma guerra?
O que acontece em Gaza, na minha opinião, sabes que eu falei muito disto com o Papa Francisco no ano passado, vi-o todos os meses, e falamos sobre o tema genocídio. Genocídio, segundo as Nações Unidas, é a tentativa de eliminar um povo, um grupo religioso ou um grupo étnico.
Se Israel tivesse querido criar ou fazer um genocídio em Gaza, acredita-me que a guerra não tinha durado dois anos. Tinha acabado numa tarde, numa noite. Nós vimos o poder da força aérea israelita no Irão, um país a dois mil quilómetros de distância que Israel controlou durante 12 dias o seu espaço aéreo.
Ou seja, se Israel quisesse provocar um genocídio, tinha-o feito. O que acontece em Gaza é uma tragédia terrível, uma das maiores do século XXI. Gaza está destruída, é uma espécie de apocalipse.
Eu estive lá duas vezes, mas não se trata de um genocídio. O Hamas é um grupo islamista que, da mesma maneira que o ISIS, o Estado Islâmico do Iraque e na Síria, como estratégia se coloca no coração da população civil. Repara, eu lembro-me numa das minhas visitas a Gaza, eu entrei num jardim infantil e chamou-me a atenção que havia tudo personagens de Walt Disney.
Era muito bonito o jardim infantil. As paredes, tudo, as mesas, as cadeiras, provavelmente tinham sido algum donativo de alguém, de alguma organização internacional. Era muito, muito bonito o lugar, a escola, que ainda não estava destruída nesse momento.
Imagino que hoje já o estará. E eu, de repente, vi no fim da sala, vi que havia umas escadas e meti-me nessas escadas, desci e cheguei a uma varanda. Estava sozinho, não havia ninguém comigo nesse lugar.
Nem o mesmo... não tinha câmara lá, não me deixaram entrar com a câmara. Mas entrei e olhei e vi que havia 12 mísseis com teios, preparados para ser lançados sobre Israel, não sei a que distância, mas sobre... na direção do território israelita. E estavam dentro de um jardim infantil.
Quando se falou de que Israel matou cinco jornalistas, o que aconteceu realmente no hospital Nasser, eu liguei a uma refém, porque me lembrava que me tinha falado do hospital Nasser. Eu sigo muito de perto uma família, a família Cúnio, que tinha oito pessoas sequestradas em Gaza, entre elas dois bebés, duas irmãs gêmeas de dois anos, e que a bisavó destas crianças era uma amiga de infância do Papa Francisco de Buenos Aires. Vizinha, amiga e colega na escola de Bergoglio.
Eram amigos, iam todos os dias juntos para a escola. E ela foi sequestrada, esta senhora de 90 anos, foi sequestrada durante 10 horas, e de uma maneira que vai-se contar no futuro, ela conseguiu libertar-se. Mas a sua família foi levada para lá.
Neste momento, entre os 20 vivos que se supõe que há em Gaza, há dois, Ariel Cúnio e David Cúnio, que são netos desta senhora, Ester Noemi Cúnio, e um deles está casado com uma mulher que se chama Sharon Cúnio, que é a mãe destas duas crianças. Eu liguei à Sharon e perguntei-lhe: 'Sharon, conta-me o que é que te aconteceu a ti no Hospital Nasser', que é o hospital que foi atacado por Israel e de onde morreram cinco jornalistas. Ela disse-me: '35 de nós passamos meses no porão, na cave, presos no Hospital Nasser em Gaza, em Khan Yunis.
Estivemos lá durante meses. Gradualmente, alguns fomos libertados, outros ficaram lá. E depois eu descobri que o estado maior da organização do Hamas, do braço armado do Hamas, estava no subterrâneo do Hospital Nasser.
Eu vi lá várias vezes, que foi o arquiteto de 7 de outubro. Quer dizer, nada é o que parece e, por vezes, eu tenho a impressão que nós jornalistas, não é só uma questão de desonestidade intelectual, é uma questão de jornalismo McDonald's, é uma questão de superficialidade, às vezes nós não investigamos o suficiente. Temos a obrigação de ir um pouquinho mais longe e tentar entender as coisas e não ficar só na informação básica que o Ministério da Saúde do Hamas traz aos meios de comunicação e acho que não é um segredo se eu disser que o Ministério da Saúde do Hamas era Abu Ubaida, o porta-voz do braço armado do Hamas, que Israel matou recentemente.
E o que acontece em Gaza certamente contribui para o crescimento do antissemitismo pelo mundo, mas também acontece Israel rotular, o governo israelita rotular de antissemitismo, tudo quanto é protesto contra a guerra ou contra o próprio governo de Israel. O que é que pensas sobre isto?
Eu partilho a opinião clara do que eu ouvi do Papa Francisco, que ele me disse a mim e que me escreveu também sobre isto e eu vou publicar isso no futuro. Ele disse-me assim, criticar um governo determinado, referindo-se ao governo Netanyahu, de quem ele não gostava muito, devo reconhecer, é legítimo, é aceitável.
Dizer que Israel não tem direito a existir é antissemitismo e antissemitismo é um pecado e isso para mim resume absolutamente tudo, ou seja, criticar a política de Netanyahu ou de algum ministro da extrema direita, óbvio, estamos na única democracia desta região a 5 mil quilómetros de distância daqui, entre o Chipre e a Índia. Não há outra democracia. Espero que os palestinianos voltem a ser (uma democracia), como parte de todo este grande pacote do programa dos 21 pontos que se está a desenvolver, mas por agora ainda não é assim, não há eleições na Autoridade Palestiniana nos últimos 19 anos, ou seja, é necessário que isso aconteça, mas hoje em dia a Israel ainda é a única democracia. Mas eu acho que o que acontece aqui é que... eu considero que eu errei, eu enganei-me, eu que perdi pessoas no Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, na minha família, dezenas de parentes que nunca conheci, num mesmo dia, que foram assassinados pelos Einzatzkommanden numa cidade na Ucrânia atual, eu penso que o que nós vemos agora é que o antissemitismo está muito mais vivo do que eu pensava.
Eu estava convencido, se tivéssemos feito esta conversa há dois anos, que o antissemitismo estava superado no ocidente, em muitos setores da sociedade ocidental, da Europa, dos EUA, e o que vejo hoje em dia são coisas que são terrivelmente preocupantes para as próprias sociedades ocidentais, não só para o povo judeu, e é que o antissemitismo ainda está muito vivo e saiu à superfície como resultado desta terrível guerra, e eu acho que é uma missão extremamente importante da comunidade internacional lutar contra o antissemitismo, a propósito, lutar também contra todas as formas de racismo que existem, também contra os muçulmanos, estamos a ver isso noutros lugares do mundo, é muito importante porque isso vai definir que sociedade vamos ter nesse mundo ocidental. Eu fiquei extremamente chocado quando em Riad, na Arábia Saudita, há uns meses vi um rabino que tem uma comunidade que foi criada recentemente, num país que não tem relações diplomáticas com Israel, e que criou uma comunidade num hotel, eles têm serviços religiosos, tiveram o Ano Novo Judaico, agora o Yom Kippur, o Dia do Perdão, têm centenas de pessoas a rezar lá, ele vai vestido como um rabino pela rua, e eu perguntei-lhe recentemente: 'rabino Herte não tem medo, você é um rabino, é judeu, e está a haver uma guerra em Gaza, e nós vemos o que acontece contra os judeus', ele disse-me, 'aqui respeitam-me profundamente como homem de fé, na Europa já me bateram duas vezes, uma em Bruxelas e uma em Paris, na rua, e fui ferido, uma delas seriamente, fui levado ao hospital'. Tudo isso é impensável e é inaceitável, e eu acho que nós temos a obrigação, todos aqueles que acreditam na democracia, nos direitos humanos, em lutar contra isso, porque é um cancro, é um cancro que se vai expandindo na sociedade.
Tudo aquilo que temos estado a conversar está relacionado com o livro. Mas Henrique, que livro é este, O Enigma do Israel?
Olha, eu tenho a impressão, sendo correspondente aqui e sabendo que este é o lugar do mundo com mais jornalistas estrangeiros por metro quadrado, que a quantidade de informação que sai daqui não tem muito a ver com a qualidade da informação que se recebe no resto do mundo. Tenho a impressão que se informa muito, mas se sabe relativamente pouco. Então, este livro, O Enigma do Israel, tem um pouco o objetivo de tentar lutar contra este apagão, este blackout informativo que eu entendi de forma tão clara nestes dois anos da guerra mais longa da história de Israel e da região. Eu acho que é extremamente importante aclarar coisas básicas e mostrar as luzes no fim do túnel também, mostrar que há uma esperança apesar de tudo, e que não temos o privilégio de nos rendernos às circunstâncias e aos radicais e que é preciso uma coligação de todos aqueles no Médio Oriente e no mundo que estão dispostos a tentar lutar por um futuro diferente nesta região do mundo.
Incluirias uma Palestina independente naquilo que designas por Rota dos Perfumes do século XXI?
Oxalá, esse é o meu sonho. Eu acho que vamos ver que o Hamas, e é um dos poucos resultados positivos desta guerra, está fora da mesa de onde se vai desenhar o novo Médio Oriente e a Palestina também; não vai participar nas próximas eleições. Isso é extremamente importante porque um grupo antidemocrático não pode participar em eleições democráticas. Isto faz-me lembrar coisas que aconteceram nos anos 30 do século passado e isso é inaceitável. E como dizia o grande Amos Oz, ninguém vai acordar amanhã de manhã e vai descobrir que o outro povo, seja o palestiniano ou o judeu, desapareceu e se eclipsou da região.