"Houve uma mudança política na Rússia: toda a gente vê que se pode desafiar o czar e sair impune"
Timothy Garton Ash, professor em Oxford, ex-jornalista e atual colunista do The Guardian, afirma que o que aconteceu na Rússia já significou uma mudança política. Entrevista na TSF
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Com conferência no Estoril Political Forum, organizado pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, onde apresenta hoje (17h) o livro "Pátrias - Uma história pessoal da Europa" (Temas e Debates), Garton Ash deu uma entrevista à TSF sobre a Rússia, o Grupo Wagner e a Ucrânia, a Europa, as diferentes memórias da Guerra e o que é isso de ser europeu, hoje.
Timothy Garton Ash, obrigado por estar com a TSF. A minha primeira pergunta é, obviamente, sobre os acontecimentos deste fim de semana na Rússia. Como é que vê o que aconteceu?
É um desenvolvimento espetacular. Os meus amigos ucranianos têm vindo a dizer, há algum tempo, que a melhor esperança que têm é uma mudança política na Rússia. Aqui temos um motim armado por um dos próprios protegidos de Putin, que chega a meio caminho de Moscovo, e ao sr. Prigózhin nada lhe acontece, o que enfraquece significativamente o regime de Putin. Assim, nos próximos meses, podemos esperar que o regime vá estar tão preocupado com os seus próprios problemas internos que será menos decisivo na continuação da guerra na Ucrânia.
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Mas o golpe de Estado parou, literalmente, a meio da estrada. E não houve, efetivamente, uma mudança política...
Houve uma mudança política, porque toda a gente na Rússia vê que se pode desafiar o czar e sair impune. Não foi, de facto, uma tentativa de golpe de Estado. É mais corretamente descrito como um motim. Prigózhin estava a tentar atingir os seus próprios objetivos em termos de liderança militar e de manter o controlo do grupo Wagner. Não estava a tentar ver o seu poder no Kremlin. Por isso, falhou. Mas também deixa Putin espetacularmente enfraquecido.
E ainda mais enfraquecido, porque sei que por vezes é difícil olhar para a Bielorrússia como um Estado soberano, mas tendo em conta que é um Estado soberano e independente, significa que foi preciso recorrer a uma mediação internacional para resolver ou tentar resolver um assunto interno...
Que humilhação! Depender de Lukashenko para negociar com o seu chefe de cozinha, com o seu próprio protegido. Deixem-me acrescentar uma coisa: um período de maior instabilidade na Rússia é obviamente um período de maior incerteza. E muitas pessoas estão a dizer: "Temos de estar preocupados, temos de tentar fazer o que pudermos para limitar esta situação." Na verdade, não podemos fazer muito para influenciar a evolução interna da Rússia, não nos iludamos. O que podemos fazer é ajudar a Ucrânia a recuperar o controlo do seu próprio território. E é aí, afinal, que começa esta história com a guerra na Ucrânia.
É o momento de avançar em termos de ajuda militar, estamos quase nas vésperas da Cimeira da NATO. É o momento de dar a Zelensky o que ele tem estado a exigir?
A questão essencial quanto à contraofensiva ucraniana é: poderão eles, com as nove brigadas que nós, no Ocidente, equipámos e treinámos, fazer um avanço realmente decisivo, ganhar muito território, desferir mais um grande golpe na Rússia? Rússia essa que, aliás, podemos, pela provável ausência do grupo Wagner, que eram os seus combatentes mais eficazes? Tenho a certeza absoluta de que o nosso objetivo estratégico deve ser que a Ucrânia se torne membro da UE e da NATO. Não podemos fazer isso de uma só vez. Mas temos de dar um sinal na cimeira de Vilnius, no próximo mês, que esse é o nosso objetivo estratégico. E depois começar com compromissos militares para apoiar a Ucrânia e avançar passo a passo para a adesão plena à NATO.
O que deveria ser uma paz justa na Ucrânia?
Uma paz justa será quando a Ucrânia recuperar o controlo do seu próprio território.
Incluindo a Crimeia?
Incluindo a Crimeia.
Não acha que não tem havido um verdadeiro esforço por parte dos países ocidentais numa abordagem diplomática para encontrar uma solução para a guerra?
Penso que há uma altura para negociar e uma altura para não negociar, há momentos. E isto é mais parecido com 1943. Na Segunda Guerra Mundial, teria sido absurdo pensar que se devia negociar com Adolf Hitler em 1943, é preciso chegar ao ponto, no campo de batalha, em que é possível iniciar uma negociação. Portanto, o caminho mais curto para uma paz duradoura passa, de facto, por ajudar a Ucrânia a ganhar esta guerra.
Vamos então a este seu livro. Homelands. Pátrias, em português, é lançado esta terça-feira à tarde no Fórum Político do Estoril. Começando precisamente com o início do livro, qual foi o impacto pessoal, para si, de estar naquelas terras na Normandia, onde o seu pai tinha estado a combater na Segunda Guerra Mundial?
O meu pai desembarcou com a primeira vaga no Dia D; ele era o que se chama um oficial de observação avançada. Por isso, foi mesmo à frente para transmitir via rádio para a artilharia. Muitos dos seus amigos foram mortos. E foi profundamente comovente ver os locais onde ele avançou sob fogo e ver o memorial com os nomes dos seus amigos que nunca sobreviveram, como se diz na poesia inglesa, os rapazes que nunca ficarão mais velhos. E, de certa forma, é claro que tudo o que tentámos fazer na Europa desde 1945 tem a ver com o "nunca mais", nunca mais o regresso à Grande Guerra. E falhámos, porque temos na Ucrânia a maior guerra na Europa desde 1945.
E até houve outras guerras desde 1945, na Europa a guerra na Jugoslávia, claro, mas já lá iremos mais adiante. Menciona o inferno em diferentes círculos na Europa. Fala de diferentes anos Zero. O Ano Zero não é o mesmo no Reino Unido ou na Polónia, ou em Portugal, ou na Jugoslávia e na Ucrânia. Parece que a Europa esteve em paz durante algumas décadas. Mas a paz não foi igual para todos...
No dia seguinte à queda do Muro de Berlim, atravessei o muro através da chamada faixa da morte, em Berlim Leste, e encontrei-me com uma pessoa que me disse ter visto um cartaz escrito à mão que dizia: "Só hoje é que a Guerra realmente acaba." E penso que isso era profundamente verdade para toda a Europa por detrás da cortina de ferro: para toda a Europa Central e Oriental; não foi em 1945, só em 1989 é que a Guerra terminou realmente. E então entrámos neste período a que chamo o período pós-muro, o período após a queda do Muro de Berlim, em que chegámos a acreditar que, apesar das guerras na antiga Jugoslávia, estávamos gradualmente a banir a guerra do nosso continente para sempre.
A dada altura, escreve: os problemas começam ou começaram quando se chega à Terra Prometida...
Exatamente. Exatamente. Assim, para gerações, pessoas que viveram a Segunda Guerra Mundial, pessoas que viveram as ditaduras, escrevo sobre José Manuel Barroso, que, claro, como sabem, quando era jovem, viveu os últimos anos da ditadura de Salazar em Portugal, e isso deu-lhe, como deu a tantos outros, esse tipo de motivação para trabalhar toda a vida por uma Europa melhor. Agora, pela primeira vez, temos uma geração de jovens europeus que, até à guerra na Ucrânia, só conheciam uma Europa relativamente próspera, pacífica e livre.
Tendo tudo isto em mente, o que é ser europeu hoje em dia?
Para mim, a qualidade que define ser europeu é o facto de se poder estar em casa no estrangeiro. Estou aqui no Estoril, em Berlim, em Paris, em Praga, estou claramente no estrangeiro, mas também estou em casa, o que explica o título do livro "Pátrias", ou "Homelands", esta qualidade única de, enquanto europeus, podermos ter várias pátrias. E, para mim, essa é a característica única de ser europeu.
Portanto, depende muito dos valores e dos valores partilhados.
Sim. E da experiência partilhada, da história partilhada, mas também de uma vontade básica de fazer algo em conjunto. Por muito diferentes que sejam as nossas políticas, as nossas visões do que deve ser a União Europeia são um compromisso básico de o fazermos juntos.
O que é que em tudo isso há de religião? Qual é o peso de uma religião comum partilhada, ou semelhante, uma religião cristã?
Uma pergunta muito interessante, porque desde a década de 1460 até à década de 1960, cinco séculos, a maioria dos europeus considerou evidente que este era um continente cristão. E, de facto, o Papa Pio II, quando popularizou o termo Europa, popularizou-o como sinónimo de cristianismo e de cristandade. Mas é claro que no continente secular e multicultural que temos hoje, as comunidades religiosas mais ativas são frequentemente muçulmanas ou, simplesmente, nenhuma outra. Estamos aqui sentados neste hotel a assistir a um casamento indiano em que muitas das pessoas são originárias da Grã-Bretanha. Não pode ser essa a ideologia que nos define. Por isso, a minha opinião é que é muito importante reconhecer que é de lá que vimos. Mas não é para lá que vamos.
Isso leva-me a outra parte do livro, penso que na edição portuguesa, na página 60, quando menciona que não se pode dizer, sem ambiguidade, que a Turquia é Europa, sem reconhecer que não devemos também dizer que, sem ambiguidade, Marrocos não é a Europa...
Exatamente assim. Portanto, quer dizer, sabe-se muito bem em Portugal, que para os antigos gregos e romanos, havia um Mare Nostrum, era um mundo mediterrânico. E para eles, os bárbaros estavam lá em cima na Escócia ou no extremo norte, mas todas as costas do Mediterrâneo faziam parte do seu mundo. E, claro, na Europa colonial, os franceses trataram a Argélia como parte da França, que chegou a fazer parte da Comunidade Económica Europeia, e Portugal tratou Angola e Moçambique como partes integrantes. E agora, de repente, viramo-nos e dizemos que não têm nada a ver com a Europa, para cá desta linha é só com os europeus. Isto não pode estar correto. A verdade é que a Europa não acaba, apenas se desvanece, desvanece-se através da vasta extensão da Rússia, desvanece-se através da vasta extensão da Turquia, desvanece-se através do Mediterrâneo até ao Magrebe. De certa forma, até se desvanece no Atlântico. Por isso, a União Europeia tem de acabar algures, caso contrário, não seria uma comunidade política funcional. Mas não devemos confundir isso com os limites da Europa.
Pensa que veremos, num futuro próximo, o Reino Unido a candidatar-se a regressar a essa união?
(Risos) Tenho de me rir porque dei literalmente centenas de entrevistas por toda a Europa a propósito deste livro. E a única pergunta que me fazem sobre o Reino Unido é se vai voltar para a EU. Muito interessante. Sobre o Brexit, a maioria dos britânicos pensa agora que foi um erro. O próximo governo, provavelmente um governo trabalhista, vai aproximar-nos da UE com uma espécie de New Deal, talvez um acesso parcial ao mercado único, a livre circulação de pessoas, uma União Aduaneira, livre circulação de pessoas. E depois a questão será, no final desta década, iremos mais longe? Daremos o próximo passo? E isso depende de muitas variáveis. Mas uma das principais é: até que ponto a UE estará a ir bem, até que ponto parecerá atraente? Por isso, de certa forma, ironicamente, a decisão é vossa. Gostaria que a UE fosse tão espetacularmente bem sucedida que se tornasse esmagadoramente evidente para os britânicos que deveríamos regressar.
Estava a ler no seu livro sobre a parte do colapso da Jugoslávia e a situação no Kosovo. Esta semana temos o dia 28 de junho, que é uma data muito simbólica para os sérvios do Kosovo, voltámos nas últimas semanas a observar alguns distúrbios. Como vê a situação lá nos Balcãs?
Portanto, em termos gerais, tivemos um período de sucesso espetacular após a queda do Muro de Berlim, em 1989, em que fizemos avançar as fronteiras da liberdade da UE e da NATO no Ocidente. E depois, algures por volta de 2007, parámos mais ou menos. E deixámos quase toda a região dos Balcãs Ocidentais, incluindo o Kosovo, mas também a Bósnia e a Macedónia do Norte, nesta espécie de limbo, num estado suspenso, em que a estratégia racional das elites locais era jogar para todos os lados, jogar com a Rússia, jogar com a América, jogar com a China e jogar com a Europa, e agora começamos a pagar o preço desse meio-termo. Por isso, penso que precisamos de um compromisso renovado e importante para utilizar a perspetiva de adesão à UE e à NATO para criar condições mais estáveis, mais democráticas e mais legais nestes países. Não será fácil, mas é isso que temos de fazer em todos eles.
Todos ao mesmo tempo?
Não. De facto, devem fazê-lo de forma diferente. Da última vez, foi em grande, esperamos 15 anos e depois entramos. Desta vez, tem de ser gradual, passo a passo. Faz-se isto, consegue-se aquilo, faz-se isto, consegue-se aquilo, de modo a criar um ciclo de feedback positivo, um incentivo positivo para mais reformas e mais reconstrução, seja no Kosovo, seja na própria Ucrânia.
Relativamente à força, nesta altura, de alguns movimentos de extrema-direita e de movimentos radicais, e não saindo dos Balcãs... houve um jornalista com quem falou lá, Milos Vasic, que lhe disse ter dito a um público americano que, se o KKK (Ku Klux Klan) ocupasse todos os vossos meios de comunicação durante cinco anos, também teriam uma guerra civil nos novos EUA. Portanto, até que ponto o domínio dos media por parte dos movimentos radicais pode influenciar a paisagem política?
Quando ele disse isso, muitas pessoas pensaram que ele estava a brincar, que não podia acontecer nos Estados Unidos...
E depois tivemos o dia 6 de janeiro de 2021...
O 6 de janeiro, exatamente. Houve um motim muito semelhante e uma tentativa de assalto no Capitólio, em Washington. E isso foi, em grande medida, o produto de uma narrativa realmente poderosa, uma narrativa mendaz propagada pela Fox News, pelo Facebook, pelas redes sociais, sobre a eleição roubada. Por isso, para mim, a liberdade de expressão no verdadeiro sentido da paisagem mediática, ou seja, a possibilidade de as pessoas ouvirem opiniões diferentes mas terem acesso aos mesmos factos, é absolutamente crucial para o futuro da democracia. E isso perdeu-se em grande medida nos Estados Unidos, onde as pessoas vivem em universos mentais completamente separados, onde não têm opiniões diferentes, mas factos diferentes, e isso é muito preocupante. Uma das razões pelas quais o meu país, a Grã-Bretanha, não é tão hiperpolarizado e tão dividido como os Estados Unidos ou a Polónia, é que temos a BBC.
Devemos deduzir deste livro que o melhor que se leva de todas estas viagens são as pessoas que se encontraram?
O livro é exatamente isso. Provavelmente, se me perguntarem o que é a Europa, para além de sentir estar em casa no estrangeiro? São as pessoas maravilhosas que conheci em todo o continente. E, já agora, não apenas pessoas proeminentes, não apenas políticos, líderes políticos, mas...
Pessoas comuns...
Gosto de dizer, pessoas comuns, as chamadas pessoas comuns, muitas das quais são mais extraordinárias do que os seus líderes. E alguns dos melhores momentos dos últimos 50 anos, a meu ver, foram quando as pessoas fizeram história. Quero dizer, neste país, começámos com a Revolução dos Cravos em 1974, que, aliás, em muitos aspetos, é a primeira revolução de veludo. Mas depois vi-a na Polónia, em 1980-81, e na Checoslováquia, com a Revolução de Veludo, em 1989. E, tal como na história do berlinense de Leste, que disse que só com a queda do Muro a guerra tinha acabado, em momentos como este, quase pentecostais, as chamadas pessoas comuns podem, de facto, ser grandes poetas.
Timothy Garton Ash, muito obrigado.
Foi com muito prazer.
