"Humor cruel, como o humor muitas vezes é." Tragédia com elevador da Glória usada para retratar política francesa
À TSF, reagindo ao cartoon do Charlie Hebdo, o cartoonista António assume que faz parte do grupo que considera que "nem tudo é permitido no humor". Mas diz que "quase tudo" é e, neste caso, defende que existe um "bom aproveitamento" de um acontecimento "internacional", cujo público alvo é o francês e não o português
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Uma semana depois do acidente com o elevador da Glória, o jornal satírico francês Charlie Hebdo tem esta quarta-feira na capa uma caricatura que mostra políticos franceses num ascensor amarelo a descarrilar, com um cabo que se parte, depois da queda do Governo no país.
O objetivo passa por retratar a situação política em França, com a queda do Executivo, e a nomeação de um novo primeiro-ministro. Na imagem, o ascensor elétrico amarelo está desgovernado, com vários parafusos pelo ar e um cabo partido, e transporta o Presidente, Emmanuel Macron, o primeiro-ministro demissionário François Bayrou, o ministro cessante do Interior, Bruno Retailleau,o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon e a líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen.
A caricatura lembra, por isso, o acidente com o elevador da Glória que casou 16 mortos, entre eles uma mulher francesa.
Questionado sobre a escolha do semanário satírico francês, o cartoonista António explica que a capa é "um bom aproveitamento de uma tragédia alheia para incorporar na suposta tragédia francesa". Lembra ainda que, muitas vezes, o humor "é cruel" e não é "complacente com o choro das pessoas", mas ressalva que, neste caso, o público alvo é o francês e não o português.
Eu também sou dos que acho que nem tudo é permitido, mas diria que quase tudo é permitido. Há alguns casos limite de mau gosto, da ofensa, com as quais eu não concordo, mas aqui não se trata de nada disso.
O cartoonista entende que o semanário apenas procurou aproveitar um "acontecimento que se tornou internacional" para "adaptá-lo à realidade francesa".
Explica, por isso, que, sendo português, não faria uma caricatura como esta, uma vez que a realidade é "demasiado próxima". Além da "dor muito clara das pessoas", há também uma "luta política a propósito da responsabilidade do ato".
"Fazer aquilo, nos termos em que o cartoonista francês fez, não o faria. Porque o cartoonista francês nem sequer sabe dessas coisas, não lhe interessa. Interessa-lhe a emoção de ver um ascensor em queda livre. É isso que interessa. Eu não faria porque sou português, vivo aqui, vejo a comoção das pessoas, veja a luta política à volta do acidente e, portanto, eu não faria nestes termos", justifica.
Foi, então, este distanciamento que permitiu ao cartoonista francês fazer este tipo de correlação imagética.
Emmanuel Macron nomeou na terça-feira Sébastien Lecornu como novo primeiro-ministro de França, horas depois da demissão de François Bayrou, que caiu na Assembleia Nacional, na segunda-feira, ao não conseguir reunir a confiança dos deputados, apenas 194 votaram a seu favor, contra 364. Esta foi a primeira vez desde a criação da Constituição de 1958 que um Executivo francês foi derrubado na sequência de um voto de confiança, ao abrigo do artigo 49.1.
François Bayrou, que chefiava o Governo há nove meses, anunciou a sua saída de Matignon depois de fracassar na tentativa de obter apoio parlamentar para o seu plano de austeridade. Confrontado com a ausência de uma maioria estável e com a pressão crescente da crise das finanças públicas, o primeiro-ministro levou ao Parlamento um pacote de cortes e reformas no valor de 44 mil milhões de euros até 2026.