Husoy, um "pequeno Portugal" no norte da Noruega
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Foi de uma pequena ilha no norte da Noruega que chegou mais de metade do bacalhau importado do país nórdico pela Lugrade, empresa de Coimbra. É bacalhau que tem mão portuguesa. Na fábrica de Husoy trabalham 20 portugueses.
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Aos 56 anos, Alexandra Cruz, desempregada e sem perspetivas em Portugal, decidiu, com a filha, de 27 anos, tentar a sorte no norte da Europa. "Carregámos a carrinha com currículos e outras coisas mais e viemos à aventura. Tanto podia ser o começo de uma nova vida, como umas férias".
Viram algumas portas a abrirem-se na Holanda e na Bélgica, mas Alexandra guardava na memória uma reportagem sobre a pequena ilha norueguesa de Husoy. Decidiram por isso continuar viagem.
"Ainda nem tínhamos entrado na Noruega, já tínhamos trabalho em Husoy. Foi mesmo estrelinha que nos guiou até aqui e tem sido uma experiência enriquecedora, porque fomos bem acolhidas".
Acabaram por se fixar em Husoy, uma pequena ilha com menos de 300 habitantes, onde, por esta altura do ano, noite e dia se confundem. Alexandra Cruz, de Vila Nova de Gaia, trabalha na Br. Karlsen, empresa de transformação de peixe, com 100 funcionários. Destes, 20 são portugueses.
"Começou por vir um, depois outro. Talvez falaram com alguém, que falou com alguém e, de repente, já havia muitos portugueses. É um pequeno Portugal aqui. Fazem parte da comunidade. E gostamos que tenham vindo", sublinha Rita Karlsen, administradora da empresa.
Denise Oliveira, com 32 anos, chegou em meados do mês de novembro, para ficar por "seis, sete meses", à semelhança do que aconteceu no ano passado. "Tenho cá uma prima que está cá o ano inteiro. Vim de férias há dois anos. Apaixonei-me por Husoy e acabei por vir".
Natural de Sesimbra, a professora de primeiro ciclo admite que está na Noruega por "dinheiro". "Ganhamos 20 euros à hora". Pelas suas contas o salário andará "à volta de 2 a 3 mil euros por mês", variável de acordo com a temporada.
"Há semanas em que trabalhamos várias horas, há outras em que é mais fraco. Por exemplo, hoje, veio peixe ao fim de semana e estamos a fazer horas extra", sustenta.
"Gosto deste formato temporário" confessa Denise que, enamorada por um lituano, também ele trabalhador da fábrica, exclui, no entanto, a possibilidade de ficar a tempo inteiro a Husoy. "Não há nada como o nosso clima".
Guilherme Alexandre, natural da Urgeiriça, em Nelas, está há um ano a trabalhar em Husoy. Se em Portugal "andava sempre agarrado ao telemóvel", na Noruega, "acabou a hora do trabalho, a gente esquece o trabalho".
Os noruegueses, conta o também DJ, "dão muito valor à família" e, por isso, há um "equilíbrio" entre o trabalho e a vida pessoal. "Ao domingo, em Portugal, vamos ao centro comercial, vamos às compras, vamos dar uma volta. Aqui ao domingo ninguém sai, porque está tudo fechado. É o tempo da família e para eles é muito importante".
Alexandra Cruz acredita que rejuvenesceu no último ano, sobretudo mentalmente. "As preocupações que tinha desapareceram. Consigo desfrutar dos meus tempos livres e dos meus fins de semana", conclui.
Br. Karlsen, um império que nasceu do bacalhau
A Br. Karlsen foi fundada em 1932 pelos irmãos Hilbert e Aksel depois de terem comprado ilha. "A nossa origem está no bacalhau", reconhece Rita, da terceira geração da família Karlsen.
A empresa trabalha hoje outros peixes, mas o bacalhau continua a no centro da atividade. "Compramos 6 a 7 mil toneladas de bacalhau por ano. Este ano, produzimos 1800 toneladas de bacalhau e quase todo foi para Portugal".
A Br. Karlsen está localizada junto ao pequeno porto pesqueiro. É abastecida por uma frota de 20 barcos que diariamente saem para o mar para pescar o bacalhau, ou o skrei, como por aqui lhe chamam. O termo significa viajante, numa alusão à viagem de mil quilómetros que o bacalhau faz todos os anos entre fevereiro e abril, desde o Mar de Barents até à costa norte da Noruega, para a desova.
"Em março, podemos ter mais de 200 toneladas por dia", adianta Rita Karlsen, justificando que a quantidade de bacalhau depende também das condições do tempo e da própria natureza.
Chegado à fábrica, o peixe passa por vários processos, nomeadamente de maturação e salga. Segundo Rita Karlsen, da pesca até o peixe sair da fábrica, "são três a quatro semanas, no mínimo".
O bacalhau que fica na Noruega é, no entanto, fresco. "Cozinhar este bacalhau é muito estranho. Não dá para fazer os nossos típicos pratos", lamenta Denise Oliveira. Ainda assim, a portuguesa tem resistido a não levar bacalhau português na mala de viagem. "Tenho vontade, só que não vou levar areia para a praia".
Para Rita Karlsen o certo é que, se os portugueses mudarem a forma como consomem bacalhau, "vai ter impacto na Noruega".
60% do bacalhau da Noruega comprado pela Lugrade é de Husoy
Em Portugal, a Br. Karlsen tem como principal parceira a Lugrade, com sede em Coimbra. A empresa portuguesa comprou, no ano passado, à Noruega duas mil toneladas de bacalhau, das quais 60% veio de Husoy. "Vemos o nosso parceiro como fundamental para os próximos anos", afirma Joselito Lucas, um dos administradores da Lugrade.
Do bacalhau comprado, este ano, pela Lugrade a maior fatia veio da Noruega, com uma quota de 37%. "Nos 36 anos de existência da Lugrade, pela primeira vez, [2023] foi o ano em que a Noruega teve o primeiro lugar em termos de importações pela parte da Lugrade".
A empresa importou ainda bacalhau do Atlântico Norte (35%), Islândia (24%), Gronelândia (3%) e Ilhas Faroé (1%).
A empresa estima fechar o ano com uma faturação de 40 milhões de euros, o melhor resultado de sempre. "O nosso objetivo era crescer 5%. Neste momento, estamos um pouco abaixo dessa percentagem, mas é residual".
Pese embora a perda da unidade de Torre de Vileva, em Coimbra, em abril, devido a um incêndio, Joselito Lucas acredita que a Lugrade vai "continuar a crescer", sem adiantar, no entanto, previsões para 2024.
Com 110 funcionários, a Lugrade tem duas unidades de produção em funcionamento. A mais recente foi inaugurada este ano. Em 2024, a empresa estima investir 20 milhões de euros na reconstrução da fábrica ardida, em funcionamento desde 2017.
"O que projetamos é corrigir algumas coisas que tínhamos e que achamos que não fazem algum sentido. Há novas tecnologias que surgiram em termos de processamento de peixe. Há algumas partes do processo que também não precisamos de ter tanta capacidade. Há outras que precisamos de aumentar. Acabamos por ver este incêndio como uma oportunidade que temos. Obviamente que não contávamos com ela".
Magnus, o bacalhau "exclusivo" da Noruega
Foi de Husoy que, este ano, chegou o Magnus, o produto de Natal da Lugrade. Da Br. Karlsen chegaram apenas 1400 unidades deste bacalhau que, seco, tem, pelo menos, 5,5kg. Depois de demolhado pode pesar 7kg. "É uma edição limitada", reconhece Joselito Lucas.
Apresentado em alto mar, a bordo do Segla, o Magnus é descrito por Rita Karlsen como um bacalhau "muito exclusivo: pesa 25 kg, em fresco, e tem, no mínimo, 12 anos, podendo ter, entanto, 20 anos. "Teremos sempre algum deste peixe, mas será sempre em número limitado".
"O que a Lugrade pretende é fazer uma continuidade deste produto e só o lançar pela altura do Natal", antecipa Joselito Lucas.
No Segla, coube ao chef Diogo Rocha, embaixador da empresa portuguesa, preparar o Magnus, assado no forno com feijocas estufadas. "É um prato que, estando nós em alto mar, gostava de comer. Uma coisa assim de conforto".
Neste Natal, o chef Diogo Rocha, estrela Michelin, sugere, no entanto, o Magnus de uma forma mais tradicional: cozido com legumes e batatas. O chef recomenda ainda que se considere a temperatura e tempo de cozedura. "Muitas vezes esquecemo-nos que o bacalhau, ou o peixe, é como a carne, também ponto de confeção".
"Estou mais receoso de não ter bacalhau para sobreviver"
Sigvald Bernsten tem 66 anos e é pescador desde os 15. "Fiz isto a minha vida toda". Andar no mar, confessa, "é fácil" e sonares são hoje uma ferramenta importante. "Ajuda a encontrar o local certo para apanhar o peixe", conta o capitão enquanto aponta para o ecrã onde vai surgindo também o tamanho do peixe.
"As pessoas dizem que há menos peixe, mas não vejo isso", remata.
A sustentabilidade e as mudanças climáticas são hoje uma grande preocupação na Noruega. O setor, o segundo mais importante do país, dá trabalho, direta e indiretamente, a cerca de 100 mil pessoas.
"Vivemos na natureza", sublinha Rita Karlsen, dando conta de mais tempestades, mais dias de maus tempo e também água está mais quente nos últimos anos. "Podem ser as mudanças climáticas. Não é uma grande mudança e por isso não sabemos se isto acontece por um período de tempo e se volta ao normal, ou não".
Há 24 anos no mar, Jimmy Tollefsen tem observado mudanças nos hábitos do bacalhau que se tem vindo a afastar mais para norte, para águas mais frias. "Tentamos fazer o que podemos, mas o mundo está a mudar. Não podemos prever como será".
Aos 16 anos, "cansado da escola", Jimmy seguiu as pisadas do irmão e reconhece que o negócio "tem sido bom" nos últimos 10 anos. Mas nem sempre foi assim. "Quando comecei a minha mãe disse "nem sequer penses nisso". Agora, digo ao meu filho "sê pescador"".
No próximo ano, Jimmy vai poder capturar menos peixe, consequência da redução de 20% da quota de pesca imposta pelo governo norueguês. "É bom que façamos alguma coisa. Alertámos o governo, há alguns anos, que não era sustentável. No próximo ano estou autorizado a pescar 320 toneladas em vez das 440 [toneladas deste ano]".
A medida não preocupa o pescador. "Estou mais receoso de não ter bacalhau para sobreviver".
A Noruega produz cerca de três milhões de toneladas de peixe por ano, o equivalente a 40 milhões de refeições por dia. O volume de negócios ronda os 13 mil milhões de euros, com a Noruega a vender peixe para 149 países.
Christian Chramer, CEO do Conselho Norueguês dos Produtos do Mar, organismo estatal que gere a comunicação da indústria do pescado, admite que a redução prevista para o próximo ano é "grande", mas nota que é também a pensar no futuro. "Para termos a certeza que não pescamos de forma excessiva, que estamos a pensar nas gerações futuras. Penso que também sabemos que nos temos de adaptar", reitera.
Portugal deve receber, este ano, 37 mil toneladas de bacalhau. Segundo dados consultados no início do mês, representa menos 20% do que no ano passado. Já em termos de negócio o valor ronda os 313 milhões de euros, o que equivale a uma queda anual de 4%.
"O mercado português tem sido um dos maiores mercados por muitos, muitos anos. E ainda é", assinala Christian Chramer.
Os portugueses consomem cerca de 45kg de bacalhau por ano, e apesar da redução na pesca em 2024, Christian Chramer assegura que não faltará bacalhau à mesa dos portugueses. "Vamo-nos certificar que teremos muito peixe disponível".
"Obviamente, é mais um desafio. Em relação ao preço não conseguimos fazer previsões porque é o mercado que manda. Agora, vai continuar a haver bacalhau. Não há dúvida nenhuma", remata Joselito Lucas.
A TSF viajou à Noruega a convite da Lugrade e do Conselho Conselho Norueguês dos Produtos do Mar (Norwegian Seafood Council).
