Blasfemar na Irlanda ainda é um crime e tem consagração constitucional, apesar de ninguém ser condenado há 300 anos. O país realiza, esta sexta-feira, o segundo referendo do ano para alterar a lei fundamental. No mesmo dia em que vai às urnas, escolher o próximo Presidente.
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No dia em que escolhem o Presidente da República para os próximos 7 anos, os irlandeses são chamados a pronunciar-se sobre o fim do crime de blasfémia.
A Constituição irlandesa só pode ser alterada através de referendo e nos últimos anos têm-se realizado vários. As mudanças foram impulsionadas pelo Parlamento, que em 2012 criou uma comissão para analisar o texto fundamental e recomendar algumas mudanças. O relatório final, publicado em 2014, veio defender diversas alterações, entre elas a igualdade no casamento para pessoas do mesmo sexo, a redução da idade de voto para os 16 anos, a redução de 35 para 21 anos da idade para uma candidatura às presidenciais, o fim da ofensa de blasfémia e a liberalização do aborto.
A lei fundamental do país, aprovada por consulta popular em 1937, diz que a publicação ou expressão de material blasfemo, insurrecto ou indecente, é uma ofensa punível. Houve, no entanto, um pecado original: a Constituição não definia o que considerava blasfémia.
Essa definição só surgiu anos mais tarde, em 2009, na lei da difamação, que estabeleceu que uma pessoa incorre no crime quando publica ou diz algo abusivo ou insultuoso em relação a uma religião, e quando o faz com o intuito de causar indignação. Quem é acusado de blasfémia pode defender-se se provar que o que disse ou publicou tem valor literário, artístico, político, científico ou académico.
Atualmente, uma sentença de blasfémia não é punida com pena de prisão, mas a multa pode chegar aos 25 mil euros.
Este referendo é visto como mais um passo no caminho da modernização das leis da Irlanda, separando, de facto, o Estado da Igreja.
Em 2018, há ainda 71 países que mantêm leis que proíbem a blasfémia. A maioria são estados muçulmanos do Médio Oriente e do Norte de África, mas há também países do sudoeste asiático e da Europa, como a Polónia e a Itália.
No Reino Unido, o crime surgiu durante uma época em que a Igreja e o Estado eram vistos como uma entidade única e quando difamar a religião estabelecida era equivalente a cometer traição. Esta transgressão foi abolida em Inglaterra e no País de Gales há 10 anos, mas manteve-se na República da Irlanda e na Escócia.
Na Irlanda, desde 1703 - ainda antes da independência - que não há condenações. Nesse ano, Thomas Emlyn, um pastor unitarista de Dublin, foi condenado a um ano de prisão e multado em mil libras. Tinha publicado um livro onde argumentava que Jesus Cristo não era igual a Deus Pai, o que causou uma grande indignação no país.
O último caso a ser levado a tribunal aconteceu em 1855, novamente antes da independência irlandesa. Vladimir Petcherine, um padre da congregração Santíssimo Redentor, pediu às pessoas para juntarem livros malévolos para que ele os pudesse queimar numa fogueira. Só que, sem ele saber, uma bíblia foi colocada entre os livros e acabou por ser queimada. Petcherine foi processado por blasfémia mas o tribunal considerou-o inocente.
A mais recente suspeita de blasfémia envolveu o ator e comediante Stephen Fry. Em 2015, numa entrevista à televisão irlandesa, interrogou-se porque deveria respeitar um deus caprichoso, mesquinho e estúpido, criador de um mundo tão cheio de injustiça e dor. E acrescentou que o deus que criou este universo, se é que o universo foi criado por um deus, é "claramente um maníaco totalmente egoísta".
Um dos espetadores não gostou destas palavras e apresentou queixa à policia. Chegou a ser aberto um inquérito, mas as autoridades acabaram por desistir da investigação.
Ao contrário do que aconteceu em maio deste ano, quando o país se mobilizou para referendar a interrupção voluntária da gravidez (e o voto esmagador decidiu a liberalização das leis do aborto), a consulta popular sobre a blasfémia não está a entusiasmar os irlandeses.
Uma das causas desse alheamento será o facto de tanto a Igreja Católica como a Igreja da Irlanda já terem afirmado que a lei é obsoleta. Mas também contribuirá o facto de ninguém ser condenado há mais de 300 anos.
Talvez por isso, o referendo foi marcado para o mesmo dia das eleições presidenciais que conta com 6 candidatos. Tudo indica que Michael Higgins conseguirá a reeleição à primeira volta. Todos os partidos, com excepção do Sinn Fein, decidiram não apresentar qualquer candidato, declarando o seu apoio a Higgins.
O atual chefe de Estado, um político veterano originalmente membro do Partido Trabalhista, é também conhecido como poeta. Tem sido elogiado pela capacidade de unir o país, particularmente numa época tão difícil como a que a Irlanda tem atravessado. Primeiro por causa da crise que obrigou a um resgate financeiro da União Europeia e do FMI, e agora por causa do Brexit.