"É uma ironia ter sido necessária uma revolução para esta social-democracia sem elementos democráticos"
Correu o mundo a cobrir guerras, biografou Che Guevara, escreve há muitos anos para a revista New Yorker. Jon Lee Anderson fala sobre Cuba em dia de congresso do PC Cubano. Entrevista exclusiva na TSF.
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Jon Lee Anderson... Há um Congresso do Partido Comunista de Cuba esses dias. Dirias que este momento em que Raul Castro se retira de cargos no partido, é uma nova era e uma mudança importante? Ou é antes uma transição suave?
Acho que é simbolicamente altamente importante porque, claro, significa que com a passagem à reforma de Raul Castro, vemos o fim formal da era castrista, e provavelmente junto com Raul, o seu adjunto José Ramon Machado Ventura, que também é um homem nos seus 90 anos, que deve aposentar-se também. Isso abre caminho para que uma geração mais jovem de apparatchiks governe o país. Como sabemos, isto começou há três anos com a saída de Raul da presidência e a eleição de Miguel Diaz Canel que é, como sabem, uma geração mais jovem, no início dos seus sessentas agora, como o sucessor. Certamente a forma como o Partido Comunista de Cuba retrata isso, como dizem os seus cartazes e slogans, "somos continuidade", mostrando os rostos de Fidel e Raul, seguidos de Miguel Diaz Canel, que, você sabe, é de algum modo um lealista cinzento, não é propriamente conhecido pela sua iniciativa pessoal ou carisma. Mas de uma certa forma, o que o partido parece estar a tentar oferecer é essa ideia de mão firme, num momento em que o mundo ao redor é cada vez mais incerto. E o mundo ao redor deles é principalmente aquele representado pelos Estados Unidos. Passámos de Obama e dessa fase da abertura, para o mundo de Trump e essa hostilidade e agora para uma espécie de era morna de Biden na qual não parece que os EUA estejam a lutar para reverter as sanções de Trump ou para reiniciar o tipo de era de bem-estar da abertura de Obama.
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As pessoas na ilha falam sobre como as coisas estão difíceis, dizem que não é bem o Período Especial que se seguiu ao colapso soviético no início dos anos 90, mas é muito mau. Os cubanos comuns passam cada vez mais tempo a procurar comida e outros bens escassos. Dias Canel, por mais que seja um apparatchik do partido, tem agora que trilhar a linha muito delicada entre o tipo de estado profundo cubano, que depende do partido e das suas estruturas para subsistir e controlar a ordem na ilha; e aqueles que expressam necessidades reais, que parecem clamar por uma abertura económica, isso já meio que começou. Mas ainda não foi totalmente preenchido. E o problema do Partido Comunista Cubano é que uma abertura económica, que permita mais iniciativa privada, significa que mais e mais cubanos existirão economicamente independentemente do Estado e, portanto, do partido. E já vimos esses avanços e recuos nos últimos 30 anos, várias vezes. E a grande questão é: quantas vezes mais podem fazer isso? Recentemente eles permitiram uma série de iniciativas privadas, eles legalizam, mas mantêm muitos como empreendedorismo proibidos, por exemplo, você pode ser manicure, mas não pode ser jornalista, esse tipo de coisa. Então, são essas contradições com que Dias Canel vai ter que lidar. Penso que inicialmente, veremos continuidade. Mas no longo prazo, talvez nos próximos dois ou três anos, veremos esforços de Dias Canel para se abrir, e isso pode causar choques com diversos setores dentro de Cuba. Afinal, este não é um estado monolítico. E eu acho que com o passar do tempo, a partir do momento em que Raul Castro se aposentar, veremos mais e mais disso, um estado cubano que não é monolítico, não liderado por Castro, mas um estado que tem diferenças de opinião a emergir de dentro da sua estrutura de partido único.
Mas de momento, é uma mudança mais geracional do que ideológica...
Sim.
Estavas a falar das empresas privadas e das experiências que o regime está a fazer, estive em Cuba em Maio de 2013. E um dos exemplos de que tomei conhecimento, foi o que faziam na província de Artemisa, com uma espécie de administração empresarial da província e por aí fora. Eu pergunto é se essas mudanças produziram algum tipo de resultado?
Esses tipos de mudanças, que tinham começado nessa altura, foram amenizadas. Essas iniciativas de reforma, experiências de empreendedores, que começaram a acontecer no início dos anos 2000, em grande medida pararam quando começou o boom do petróleo venezuelano e com o aprofundar da amizade entre Chávez e Fidel Castro. E isso levou a cerca de uma década de um retrocesso no estilo de empreendedorismo do setor privado na ilha, quando Chávez basicamente subsidiou a reabilitação da rede elétrica de Cuba, os seus hospitais e assim por diante; muito dinheiro foi despejado na ilha naqueles anos, nos quais Cuba e Venezuela se tornaram muito próximas. Houve de facto uma grande reversão tanto no discurso quanto na ação, para um lugar que parece mais socialista. Depois, quando Raul assumiu formalmente o cargo do seu irmão em 2008, esperou alguns anos, e então abriu significativamente por volta de 2010 e 2011, permitindo que muitos mais iniciativas de empresários começassem, sabendo que a economia estava em crise.
Isso acelerou-se quando Obama e Raul estabeleceram os primeiros contactos em 2014 e até 2016. E realmente vimos uma aceleração da ideia do que eles chamam de "cuentapropismo", pessoas a trabalhar por conta própria; e também um investimento trazido por outros países entusiasmados com esta abertura em Cuba. Mas com a morte de Fidel e a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, tudo isso basicamente parou. Então, a maioria deles, com exceção de algumas empresas, tinha uma espécie de mão do Estado, joint-ventures, do tipo apoio da China na exploração de petróleo em Cuba. Mas deveria haver coisas do tipo: um americano dono de uma joint-venture de tratores que fabricava tratores em Cuba, e isso surgiu como resultado da iniciativa de Obama. Mas não levou a lugar algum. Acabou basicamente por ser turismo, e até isso - por causa da pandemia - secou.
Mas não acreditas que possa haver um regresso a isso e a um espírito de levantamento do embargo com a Administração Biden?
Acho que não, acho que a maior parte disso depende dos cubanos. Os cubanos sempre tiveram medo de abrir completamente ou muito rapidamente por causa do tipo de efeito de ricochete que essas empresas privadas tiveram dentro de Cuba. E assim, tendem a procurar patrocínio de alguma forma ou manter as coisas apenas contando com as receitas das remessas de cubanos que vivem no exterior ou, ou digamos, do turismo estrangeiro. Mas, no último ano, isso tornou-se muito difícil, e foi ainda mais difícil por causa de Trump. Agora, é uma ilha que está quase completamente fechada devido à pandemia. Então, penso que o resultado final é que a nova geração de líderes está cada vez mais consciente de que cerca de um terço dos cubanos tem menos de 30 anos. Portanto, é uma geração pós-ideológica, eles podem ter outros 10 ou 20 anos assim. Mas com o advento da Internet e as necessidades reais das pessoas locais, a dificuldade do Estado em fornecer empregos reais e bens de subsistência às pessoas, significa que eles terão que continuar a abrir, e podem ter que fazer isso de uma forma que seja um verdadeiro desafio político para eles. Acho que não veremos isso imediatamente mas penso que veremos alguns passos.
Por outro lado, o que estou a ver e a ouvir do governo Biden, conversei com os assessores políticos de Biden na Casa Branca, e eles não estão interessados em gastar muito capital político ou tempo - esta é uma citação mais ou menos direta - em esforços para voltarem a comprometer-se com Cuba, quando viram tão pouco retorno do investimento feito nos anos de Obama. Então, como sabes, o Biden herdou um mundo muito complicado, diminuiu o nosso prestígio por causa dos anos Trump, houve uma quase implosão da diplomacia americana. Os americanos olham para o mundo e veem a China, veem a Rússia, veem o Irão. Há muitos outros problemas, mudança climática, migração na fronteira, Cuba não é mais uma grande prioridade. Não é mais o maior problema no hemisfério ocidental para os Estados Unidos. Então, eles vão, eu acredito, aumentar as remessas novamente, vão permitir que os cubanos que moram aqui enviem dinheiro, provavelmente vão facilitar o turismo e as viagens. Mas, fora isso, acho que estão à espera espera de algo dos cubanos e não vão gastar muita energia nisso.
Miguel Diaz-Canel está no poder há três anos. Dirias que ele não tem conseguido atender às exigências e necessidades da população, principalmente dos jovens?
Eu diria que sim, isso é verdade. Sim, cada vez mais os jovens, uma parte dos jovens, estão a ficar cada vez mais vocais. Atenção que no final são apenas algumas 100 pessoas que aderem aos protestos, principalmente na área cultural. Mas as necessidades reais, o pão de cada dia, estão a espalhar-se significativamente pela população. E isso, inevitavelmente, no passado gerou inquietação mais ampla e até protestos em Cuba. Este verão será fundamental, creio eu, porque no passado, sob Fidel, as pessoas sempre diziam que o mês de agosto, que é muito quente em Cuba, era quando começavam os maiores distúrbios. E se os cubanos que estão necessitados e infelizes sentirem que não há mudanças entre o Congresso do Partido este fim de semana e os meses quentes de verão, então poderemos começar a ver alguns distúrbios na rua.
Como classificarias o grau de liberdade de expressão que existe na ilha?
É pobre, realmente não há liberdade de expressão em Cuba. É engraçado, há uma ironia aqui, os cubanos - como qualquer pessoa que já esteve na ilha sabe, tu incluído, estão entre as pessoas que mais falam no mundo, são grandes contadores de histórias. E também não têm vergonha de reclamar quando as coisas estão mal, privadamente, um para o outro. Tanto é verdade que eles têm um meio muito poderoso chamado Labola, uma espécie de jornal informal da ilha, onde é veiculado tudo o que é notícia real, onde podes apenas falar com o teu vizinho e descobrir o que está a dizer a Labola, que costuma ser bem diferente do que diz o Granma, o órgão oficial do Partido Comunista. Então, sob Raul Castro, na última década, houve alguns movimentos incipientes em direção a uma abertura cultural. E vimos isso acelerar quando Obama e Raul falaram. Mas voltaram a fechar e eu fui muito crítico disso. E isso, para mim, é muito míope, porque os cubanos são um povo muito expressivo, precisam de um meio de se expressar. Eles, na verdade, não têm outro além de música ou dança e Labolda. E eu acredito que os líderes e lideranças cubanos, já há algum tempo precisam reconhecer isso e parar de ter medo do que o seu próprio povo pode dizer sobre as coisas e das suas críticas. A pressão agora recai sobre a burocracia do Partido Comunista que parecia temerosa de fazer ações suficientes em termos de mudanças políticas para permitir uma abertura que não é apenas o caminho para uma sucessão na liderança do Partido Comunista, e não apenas uma abertura económica, mas também cultural.
Com Raul Castro retirado do espaço político, pensas que vai haver alguma mudança na relação entre a liderança comunista e as pessoas da oposição, sejam os internacionalmente famosos como Yoani Sanchez ou as Damas de Blanco, ou aqueles bloggers que lutam anonimamente nos fundos de um quintal ou num apartamento na Havana Velha?
Acho que é muito cedo para dizer Ricardo, mas acho que sim, talvez não imediatamente, mas a médio prazo. Não penso que eles tenham mais muito tempo para brincar. Em algum momento no futuro próximo, essa seria a minha análise, temos que começar a ver um pouco mais de envolvimento entre esses críticos que não são mais chamados de dissidentes, o que também é interessante, e o regime. Na verdade, já vimos uma abordagem um tanto esquizofrénica do regime em relação críticos e manifestantes culturais. Por um lado, há alguma gente a ser presa. Normalmente, detenções de curto prazo, não resultaram no tipo de sentenças de prisão famosamente longas que vimos no passado, em Cuba, sob Fidel. Há algumas coisas feias, como o tipo de turba que sai para a rua para repudiar quem está a protestar, esse tipo de coisa. Mas, por outro lado, o próprio regime optou por não ser excessivamente repressivo, embora haja uma atmosfera geral de repressão e repúdio a quem pensa diferente. Mas parece que estão a ser feitos alguns esforços para diminuir as situações que surgiram no ano passado. E eu vejo uma espécie de limbo no momento, um limbo inconciliável, e o que podemos estar a ver, na verdade, é a consequência de diferenças de opinião entre as lideranças existentes. Então, a tua pergunta é boa, porque veremos agora, com a aposentação do Raul, se o Diaz Canel é reformista ou não. Não vimos isso até agora. Mas dizem-me que ele é reformista e poderemos ver se isso é verdade, se os rumores de que ele é um reformista são verdadeiros, creio que começaremos a ver lampejos desses esforços dele nos próximos meses.
Cuba está a um passo, aparentemente, de conseguir a primeira vacina Covid da América Latina. Pensas que é relevante que um pequeno país como Cuba esteja a conseguir desenvolver essas vacinas?
Eu acho incrivelmente louvável que Cuba tenha colocado tanto esforço quanto o tem feito no seu sistema de saúde. É uma ironia, suponho, que tenha sido necessária uma revolução e todo esse clima de guerra fria para criar, essencialmente, uma social-democracia sem os elementos democráticos. Quer dizer, é uma pena que Cuba não tenha adquirido algumas das liberdades democráticas com que contamos em lugares da Europa Ocidental, que geralmente são apresentados como exemplos mundiais para sociedades admiráveis, com saúde gratuita, educação, liberdades cívicas e estado de direito. Mas talvez seja uma ironia para Cuba, que continua a ser uma sociedade bastante fechada, sem essas liberdades cívicas. E no entanto, conseguiu grandes avanços na área da saúde e na indústria biofarmacêutica, que, tu sabes, temos visto os cubanos médicos que viajaram pelo terceiro mundo por muitas décadas, ajudando pessoas noutros países. E essa também foi uma fonte de receita muito importante para Cuba. E agora, nós vemo-los a fazer esses testes: um dos países mais pequenos do mundo, talvez prestes a vacinar toda a sua população neste verão. Isso é, pelo menos, o que eles disseram que podem vir a fazer. E em breve, vão entrar no mercado global mundial de biofarmacêuticos para vacinar terceiros contra Covid-19, o que é um grande crédito para Cuba. E mostra o quão atrasados estão muitos dos outros países da América Latina, a maioria dos seus vizinhos, que, neste momento, ou não fizeram rollout de vacinas, e o Brasil vem à mente por estar muito atrás, não tem nenhum fármaco ou indústria de qualquer tipo, e dependem de doações de vizinhos mais ricos como os Estados Unidos, ou de vendas de vacinas de países como a Rússia ou a China ou qualquer outro. Então Cuba precisa de reconhecimento por isso. E é uma das maneiras pelas quais Cuba pode ser trazida para a família das nações, nesses esforços, assim como foi durante o surto de Ébola na África, em 2013 e 2014, quando fez parceria com os Estados Unidos, na África Ocidental. Seria ótimo ver Cuba incorporada dessa forma e, por meio dos aspetos positivos da sua sociedade, encontrar uma forma de fazer parceria com países que foram seus adversários até agora, incluindo os Estados Unidos.