K2 é a rainha das montanhas. O livro relata a expedição do alpinista João Garcia até ao cume da montanha mais mortífera do planeta, no Paquistão, a mais de oito mil metros de altitude. O jornalista Aurélio Faria acompanhou tudo nas várias reportagens que fez há quase vinte anos. Agora, um resgate de memórias
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"Na hierarquia real, o rei é o número 1, o número 2 é a rainha. O número 1 das montanhas acaba por ser o Everest e o K2, a segunda montanha mais alta do mundo, é, portanto, visto também de forma romântica como a rainha das montanhas", começa por contar o alpinista João Garcia na TSF. Nasceu em Lisboa em 1967, tinha 26 anos quando, em 1993, se estreou na primeira montanha acima dos oito mil metros de altitude. Em 1999, tornou-se o primeiro e único português a escalar o Everest sem recurso ao oxigénio artificial ou carregadores de altitude. Escalou todos os picos do planeta acima dos oito mil metros, assinou os livros A Mais Alta Solidão, Mais Além e 14, Uma Vida nos Tetos do Mundo.
O novo livro K2, a Rainha das Montanhas foi apresentado em Lisboa na quinta-feira. É uma coautoria com Aurélio Faria, jornalista há 37 anos, que conheceu João Garcia em Katmandu (Nepal) em 1994 e, desde então, tem acompanhado profissionalmente a carreira do alpinista. Ao serviço da SIC e do Expresso, foi o autor das reportagens televisivas sobre as primeiras expedições portuguesas aos Himalaias. Como repórter multimédia em alta montanha, cobriu o projeto A Conquista dos Picos do Mundo. Aurélio Faria já esteve em guerras, conflitos, revoluções, pós-conflitos, mas afirma logo no início do livro que este desafio no K2 foi de outra dimensão. Mais exigente, mais arriscado? "É uma experiência profissional que nos leva ao limite, em termos físicos e mentais. Basta dizer que o mês e meio que eu passei no K2 não foi tão difícil como a escalada que o João fez até ao cume, mas estar a trabalhar a 5500 metros é estar a respirar metade do oxigênio que se respira ao nível do mar, é ter amplitudes térmicas que variam entre os 30 graus positivos de dia e os 30 negativos à noite, dormir em cima de um glaciar que ondula dois a três metros por semana e sentir, de facto, a grandeza de uma montanha daquelas ao pé de nós. Profissionalmente, quem vai para um desafio profissional como este, se for mentalmente com problemas ou emocionalmente com problemas, o problema será, de certeza, maior do que a montanha quando a pessoa estiver lá a trabalhar."

Habituar o organismo a condições "para o qual o ser humano não foi feito para viver"
Que cuidados é que podemos ter para enfrentar condições climatéricas tão adversas ao organismo humano? Para João Garcia, "logo no início é preciso realmente controlar muito bem a aproximação e a subida lenta, gradual, em altitude para que o organismo vá aceitando estas condições para o qual o ser humano não foi feito para viver". Uma semana ou semana e meia para dar tempo ao organismo de se ajustar, criando alguns mecanismos de compensação. Garcia explica: "É uma coisa que na gíria do desporto é dito que vai ganhando um hematócrito maior, mas as definições do nosso organismo não são como um computador, não é? Carregar a tecla Enter e isto já está. Não! Isto demora tempo. Portanto, logo para chegarmos à base desta grande montanha é preciso algum cuidado, é preciso algum conhecimento e alguma prudência."
E de lá de cima, quando se está depois nos oito mil metros, o que é que se vê? "Tenho um amigo que está sempre a dizer: 'Olha, quando chegares lá cima, vê lá se vês a minha casa!' Nós realmente vemos as coisas de outro prisma, como se estivéssemos quase num helicóptero ou num avião, mas o assimilar, o assimilar dessa beleza acaba por ser a posteriori, não é assim tão romântico como estamos habituados."
Estar a oito mil metros de altitude implica estar sempre "muito preocupado com a segurança, estar sempre cansado, para não dizer esgotado". Mas, ressalva, "é um privilégio realmente subir a locais onde muito pouca gente conseguiu subir".
Como reza o texto de apresentação do livro da dupla alpinista-jornalista: "Assassina, selvagem, imponente, são estes os adjetivos que qualificam a segunda montanha mais alta do planeta e o pico que os paquistaneses conhecem por Chogori, a montanha das montanhas. No verão de 2007, João Garcia começou a escalada, levava na memória a tragédia ocorrida apenas um ano antes, no Tibete, quando perdeu um dos companheiros da expedição. Agora estava de volta com um receio acrescido, as condições estavam longe de serem as ideais e a montanha que o esperava, situada na fronteira entre o Paquistão e a China, era considerada a mais mortífera do planeta."
Garcia assume que, na altura, não estava nas condições ideiais para a empreitada a que se propunha: "Psicologicamente eu não estava no meu melhor. Logo na aproximação, eu acho que foi causado por algum sobretreino, estava a sentir umas dores nos joelhos e estava já a entrar em parafuso, do género: 'Isto ainda não começou e já terminou para mim.' E, portanto, isso acabou por me afetar psicologicamente, mas depois conseguia, pouco e pouco, ir resolvendo os problemas e chegar à base. No fundo, este tipo de empreitada é um dia de cada vez, não podemos ver as coisas, se bem que somos humanos, às vezes também nos precipitamos e começamos logo a tirar aqui conclusões precipitadas. Basicamente no início não estava a ver as coisas a correr assim tão bem, mas dia após dia tive realmente este privilégio de ter uma equipa quase perfeita, de ter um jornalista para escrever, de ter um médico só para cuidar da saúde da equipa, de ter um cameraman só para filmar, no fundo para me libertar de uma série de outras tarefas e concentrar-me apenas na escalada." Às tantas, se calhar foi isso mesmo: "Ter de só pensar na escalada que me atrapalhou um pouco a nível de concentração, porque quando estamos mais distraídos acabamos por dissipar a nossa atenção por mais assuntos, mas enfim, isto é só uma pequena piada."
E as dúvidas da TSF continuam. Os números tinham impacto no estado de espírito? Ou seja, saber que só 30% dos alpinistas que tentaram escalar aquela montanha é que tinham sucesso, isso de alguma forma pesava no estado de espírito? Ou, por outro lado, uns 30% acaba por ser uma porcentagem razoável e permite acalentar a esperança de poder ter êxito também? "Mais do que as chances de sucesso", refere o alpinista, "para mim o importante é dar o meu melhor e regressar bem. Mais do que essa taxa de sucesso ou insucesso, o mais assustador é a taxa de quantos morreram ao tentar esta montanha. Portanto, já na altura, por cada dez que o fizeram, dois morreram. E isto é assustador". O alpinista levava isto em mente e ia "com toda a atenção, com toda a precaução redobrada, porque o importante era regressar a casa. Porque o ir é opcional. Regressar a casa tem de ser um grande esforço para nunca esquecer essa regra essencial".
O acampamento-base era, portanto, a cinco mil metros de altitude. Aurélio Faria ia sempre acompanhando a escalada de Garcia: "Tínhamos sempre comunicações rádio regulares, a horas certas, desde que ele não estivesse, nesse momento, em ascensão. E comunicávamos duas vezes por dia, pelo menos, para saber se estava tudo bem. E sabíamos como é que estavam as condições meteorológicas, onde é que andavam as outras expedições." Foi uma expedição marcada por tempestades: "Basta dizer, e está escrito no livro, que o João alcançou o cume na única janela de bom tempo em dois meses que lá estivemos." É referida a data de 20 de julho de 2007.
O impacto das alterações climáticas
Aurélio Faria explica que as alterações climáticas, de facto, "fazem-se sentir, de forma notória, nos Himalaias e nas cordilheiras asiáticas. As monções são cada vez mais imprevisíveis. A sua duração e a forma como os ventos afetam os altos cumes dos Himalaias têm as suas consequências nestas expedições". A descida de João, foi, por isso, "mais perigosa ainda que a subida, devido ao tempo que apanhou" por essa altura.
João Garcia reconhece que é difícil subir e há o receio de não voltar.
"A sabedoria popular diz que para baixo todos os santos ajudam, mas não é bem verdade. A nível de gravidade, obviamente, é mais fácil descer do que fazer subir o peso do nosso corpo, mas a estatística é assustadora. Nós sabemos que 90% dos acidentes dão-se na descida e muitas vezes porque, talvez, os alpinistas, com muita força de vontade, dão tudo o que têm e não têm, usam todos os seus recursos só para subir, e para baixo vêm literalmente ao trambolhão. Eu já desde a tragédia do Everest, em 1999, que acabei por criar regras muito rígidas para usar apenas 70% da minha energia, dos meus recursos para subir, e tenho que poupar sempre 30%"
Garcia admite que talvez pelo facto de ter sido atleta de triatlo, durante muitos anos, acabou por também começar a perceber muito bem o seu organismo, começando a gerir bem os recursos: "Não podemos dar tudo o que temos para a natação, porque ainda temos muitos quilómetros na bicicleta, e depois ainda temos de terminar a prova a correr. Eu lembro-me de algumas competições, no início, em que eu geria mal e tinha de abandonar a prova, ou terminava ainda com muita energia e percebia que não estava a gerir bem as coisas. Na montanha, por um lado, é a escola da paciência, é precisar de tempo para o organismo se ajustar, mas, depois, no momento decisivo, as etapas de subir ao cume e descer, é preciso gerir muito bem o nosso organismo, porque, ao contrário do que muitas pessoas pensam - que lá em cima levantam os dois braços, o V de vitória -, lá em cima estamos a metade da maratona, falta a outra metade que é descer, são e salvo para a segurança do acampamento-base."
A expedição foi há quase 20 anos, em 2007, ambos têm hoje mais cabelos brancos. Compararam aquilo que tinham escrito, os blocos de notas, viram gravações de vídeo, foram recuperando aquilo que tinha ficado no esquecimento e assim nasceu o livro K2, a Rainha das Montanhas. Para o repórter, é também uma necessidade de dar visibilidade àquilo que não teve espaço ou que não teve tempo: "Esta, para mim, do ponto de vista de um jornalista, é a quarta face desta montanha. Na altura, houve a face mais visível da grande reportagem televisiva, houve dois artigos escritos para o Expresso e houve um blog e um site que foram um sucesso. Estávamos na pré-história do multimédia e esse site atingiu um recorde de visualizações na altura. Isso também marcou o facto do Grupo Impresa ser pioneiro, as palavras mágicas eram convergência, sinergia, multimédia, online e, se fosse custo zero, ainda melhor."
O projeto A Conquista dos Picos do Mundo "foi juntar o útil ao agradável e foi um privilégio ter participado num projeto destes". Mas ficou muita coisa por contar: "O verão de 2007 foi atípico, marcado pelo desaparecimento da menina inglesa Maddie McCann, da Praia da Luz, só se falava disso (...) e dos incêndios, da crise e, portanto, esta conquista do João acabou por ser... Ficou muita coisa por contar. E, às vezes, a verdadeira dimensão de uma expedição destas, ou de uma conquista destas, só é atingida quando é revisitada, digamos, com tempo e emoção, a posteriori."
Tshering dai quer fazer um pouco "como o agricultor", mas aqui é subir em vez de semear
Terá alguma vez Aurélio Faria, no acampamento-base cá em baixo - estranha forma de o dizer quando se trata de uma base a cinco mil metros de altura, mais do que a altura de duas serras do Pico uma em cima da outra ou duas e meia se for a da Estrela - pensado que João Garcia poderia não voltar? E se ele não regressa? Como é que se vai gerindo esses momentos de angústia? "Não se gere. Isso é um bocado como ir como repórter de guerra. Sabemos que podemos não voltar. E não vale a pena alucinar com coisas que não controlamos. Se acontecer, logo se vê. Eu costumo comparar uma expedição em alta montanha a uma reportagem em guerra, a uma estadia em guerra. Aliás, qualquer alpinista que ande nos altos cumes dos Himalaias, ao fim de uns anos, tem a sua cota de baixas e de companheiros perdidos, por motivos às vezes estúpidos ou imprevisíveis."
Os amigos nepaleses deram a João Garcia em 1999 a alcunha de Tshering dai, aquele que vive muito tempo: "Não sei, talvez porque este fulano insiste em não morrer, é aquele que que vive durante muito tempo", diz o próprio alpinista de alta montanha. "Tshering Dai é o Long Life portanto acaba por ser uma honra para mim ter esse tipo de nome nepalês", complementa.
"Os sherpas são budistas lamaístas que ainda integram no seu budismo muitos elementos das religiões pré-históricas de respeito pela natureza, pela montanha, as bandeiras de orações ao vento para chamarem os bons espíritos e, portanto, isto acaba por ser uma designação carinhosa e, ao mesmo tempo, supersticiosa de alguém que é amigo deles, que venceu a morte, pelo menos no Everest", explica Aurélio Faria.
Para João Garcia, o próximo projeto é continuar com "o estilo de vida de guia de montanha, levar turistas para os Himalaias, tentar partilhar com eles esta paixão de subir em altitude". O recordista do alpinismo nacional e internacional partilha da convicção de que "quando há uma paixão por um determinado tema, a dada altura quer-se fazer um pouco como o agricultor". O que siginifica isto? "Queremos semear para mais tarde ver crescer e, portanto, eu tenho algumas expedições, alguns projetos privados mas, acima de tudo, tenho de, como toda a gente, ganhar a vida, promovendo este tipo de viagens de aventura e temos mais livros pela frente."
As guerras do "reajustamento" da nova ordem mundial
E a última pergunta impõe-se: agora que não está a correr para escolher imagens, para escrever o texto, para montar a peça que vai entrar no jornal da SIC, com a distância de alguns meses, como vê Aurélio Faria as guerras no mundo, Gaza, Ucrânia, Sudão? "Estas guerras eram inevitáveis que acontecessem. Havia uma paz, mas uma paz presa por linhas muito frágeis, portanto, isto é um bocado como as placas tectónicas num reajustamento", ou seja, a sociedade "ainda está em pleno sismo" e "tem havido muitas réplicas, algumas mais intensas, outras menos" e, agora, é tempo de "sentir os abalos" e "ver uma série de certezas geopolíticas, estratégcas a desmoronar". E, portanto, em pleno 2025 assiste-se à criação de uma nova ordem mundial, "algo que seria em 2040".