João Vieira Borges: "O Ocidente trabalhou muito mal esta guerra da Ucrânia, estrategicamente e politicamente"
É Major-General do exército e preside à Comissão de História Militar. Doutorado em Ciências Sociais, foi comandante da Academia Militar. Na Torre do Tombo, foi apresentado um livro do qual é co-organizador, "Crepúsculo do Império: Portugal e as guerras de descolonização". Conversa também sobre as guerras no mundo.
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O que é que nos traz este Crepúsculo do Império que coordena com o professor Pedro Aires Oliveira?
Este livro traz-nos uma visão atualizada daquilo que é a Guerra de África e a descolonização. E é uma visão atualizada no sentido em que, ao longo destes últimos cinquenta anos, houve narrativas diferentes, houve grandes discussões e reflexões, muitas delas de cariz ideológico, muitas delas que tiveram por base os próprios atores. Mas felizmente, a história alargou-se da história militar e da história política para outras questões, não só também para a história económica e social, mas são várias as questões decorrentes de investigações feitas em Portugal e no estrangeiro, por portugueses e por estrangeiros, que constituem hoje, passados 50 anos do final da guerra, uma grande mais-valia para os portugueses, sejam eles ainda como eu, filhos da guerra, sejam eles cidadãos interessados naquilo que foi parte significativa marcante - e continua a ser marcante - da nossa história, não só para os combatentes, mas para todos aqueles portugueses ou dos países africanos de língua oficial portuguesa que viveram, sofreram e ficaram marcados para sempre com esta guerra. E, portanto, temos aqui temas tão diferentes. O livro está dividido em quatro partes e em temas e autores de excelência. Ou seja, por serem professores empenhadíssimos nestas matérias há dezenas de anos,
Temos historiadores, jornalistas, académicos, temos sobretudo militares… Uma grande transversalidade de abordagens...
A transversalidade está nos quatro capítulos do livro que, como eu costumo dizer, ou quem lê como eu li o livro, encontra contradições. Ainda bem que elas existem. Encontra autores com pensamentos diferentes. Ainda bem que encontramos.
Até porque as clivagens ideológicas de que falava há pouco continuam a existir e estamos no 25 de Novembro e é uma altura em que em que essas clivagens vêm muito ao de cima…
E vemo-las na Assembleia da República. Estão bem presentes, porventura não tanto, já na sociedade portuguesa, mas sobretudo para quem ainda vê a guerra exclusivamente na perspetiva ideológica e na perspetiva militar. Este livro não. Este livro tem um enquadramento. Com pensadores como António José Telo, Bruno Cardoso Reis, Luís Nuno Rodrigues, Luís Barroso, João Moreira Tavares. Em economia e sociedade, com pensadores e trabalhos sobre economia e finanças, a parte da sociedade e das próprias mulheres na luta das independências com a Ana Filipa Correia, com a Sofia Branco, por exemplo, que trabalham esta parte; a religião e a guerra com o João Miguel Almeida; a contestação, a deserção, temas tabu que agora vêm ao de cima. Depois temos a mobilização, a luta e a propaganda, aqui sim a estratégia de guerrilha, a evolução militar com os nossos standards da guerra colonial, que são Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes. Depois temos os movimentos de luta de libertação com o Eric Mourier-Genoud. O Pedro Aires de Oliveira, que trabalhou com a Catarina Laranjeira, sobre a estratégia de guerrilha; o recrutamento e mobilização que trabalhei eu com novos dados, novos indicadores; a PIDE na guerra, a intelligence no império, os meios de comunicação e serviços de propaganda, os médios e propaganda na Independência. No fundo, o que estamos a ver nas novas guerras. Portanto, a guerra mais híbrida aqui é uma perspetiva da guerra com todos os atores; depois a dor e o sofrimento, que é pouco trabalhada em Portugal e depois a questão do fim do Império e, portanto, por exemplo, trabalha-se os crimes de guerra com o Mustafah Dhada conhecido todos nós relativamente a Moçambique.
Há gente que pode não gostar deste ou daquele artigo, gente que pode não gostar deste ou daquele autor, deste ou daquela temática, mas essa é a riqueza deste livro: as pessoas lerem e compreenderem a guerra na sua perspetiva global e nas diferenças. Só assim é que cada um de nós consegue ter uma visão mais global. São 800 páginas que se leem muito bem e que também no final nos trazem uma visão mais global da guerra e, porventura, levará a uma discussão já mais sustentada e não tão ideológica.
E a história é cada vez mais é cada vez mais isso, no sentido de esta sociedade ter também a visão do que é o outro lados. Dantes, as Histórias eram sempre contadas pelo prisma e pelas lentes da sociedade à qual o autor pertence…
Exato. Neste caso, os coordenadores que também são escritores. Nós tivemos o apoio de mais de 35 autores. Primeiro, o Pedro Aires Oliveira porque tem essa visão da história, da necessidade de ver os dois lados, da necessidade da história política, económica, social em todas as suas linhas. Eu, como historiador militar, tenho também essa visão por uma razão também pessoal. Porque vivi esta guerra como filho da guerra, tendo na família os dois lados da guerra. Eu tinha os movimentos de libertação na família e, portanto, dirigentes, inclusivamente de grande responsabilidade, vieram a ser secretários gerais de um dos partidos e, portanto, eu tinha o meu pai na guerra, o meu tio na guerra de um lado e depois tinha os primos do outro lado da guerra e, portanto, juntando estes dois personagens de coordenadores, naturalmente que o livro..
Só podia ser assim…
Esse sentimento de mim e do Pedro, que é uma pessoa maravilhosa como pessoa e como historiador, digamos, tem uma experiência e tem uma ligação a todos estes atores nacionais e estrangeiros, incluindo alguns que estão no exterior, historiadores como Filipe Ribeiro de Meneses, de quem eu não falei há pouco, a Margarida Calafate, o Rui Ramos, a Elsa Peralta, o Fernando Martins, nós temos aqui historiadores com uma experiência vasta e um conhecimento profundo daquilo que foi esta guerra e do seu enquadramento político, económico e social.
É interessante que não se chame guerra colonial ou do ultramar ou de África, mas sim guerras da descolonização…
Ah, isso foi uma discussão muito intensa entre os dois coordenadores e a própria editora, a Bertrand, e foi exatamente no sentido de as pessoas perceberem que nós não temos opção. É uma publicação que eu não queria, como Presidente da Comissão portuguesa da História militar, que fosse institucional. Não é a história dos heróis, não é a história da guerra pura e simples em termos militares. E, nesse sentido, demos liberdade, até porque nós os dois, os coordenadores, temos visões diferentes da própria interpretação da guerra. Eu sou mais epistemológico e, portanto, sendo de estratégia, obviamente que para mim não há guerras coloniais na Europa de países colonialistas. Nenhum deles a define dessa maneira. Somos o único país que a define dessa maneira e é nessa perspetiva que eu fui buscar à epistemologia, que a guerra normalmente é classificada como guerra, depois o espaço onde ela tem lugar e depois os anos em que ela teve lugar, e por isso eu lhe chamo ‘Guerra de África 1961-1975’ porque morreu muita gente entre 74 e 75 até à Independência de Angola, em 11 de Novembro de 1975. Mas eu compreendo quem a chame de guerra do Ultramar, que é uma visão afrancesada e quem chama guerra colonial que também compreendo perfeitamente a justificação. E, portanto, eu não gostaria de conotações ideológicas. A minha é uma conotação epistemológica e ponto. Por isso, compreendo todas as outras. E, portanto, quando teve lugar a discussão, entendemos - por acaso, isto é uma expressão que costuma usar mais o Nuno Severiano Teixeira e o António José Telo, As Guerras da Descolonização. Aqui não há dúvidas que são guerras de descolonização e, portanto, por isso a opção; e também não há dúvidas que foi o crepúsculo do Império e, portanto, houve aqui uma associação. Mas não foi fácil chegar a este título.
Estamos a viver outro período que, certamente, vai ficar na memória de muitas gerações e não propriamente por razões positivas… o desenvolvimento tecnológico, a melhoria das condições de vida de muitos milhões de pessoas que saíram da pobreza extrema nas últimas décadas, a conquista de direitos políticos, sociais e económicos em muitos sítios do planeta acabam por ser relegados para segundo plano quando temos uma emergência climática e, sobretudo, duas guerras, uma das quais envolvendo uma superpotência que parece querer reverter o fim do seu império, fazer renascer o império soviético ou russo, pelo menos…
Sim, claramente, está no conceito estratégico russo. Nós comentadores, e aqueles que normalmente abordam estas temáticas nos órgãos de comunicação social, por vezes confrontamos, ou sobretudo os especialistas em estratégia que têm que ler os conceitos estratégicos, no meu caso é a minha área até de trabalho, por vezes enfrentamos opiniões que, dizem, ‘eu tenho a sensação que é’, não é sensação, não, não é a perceção, isso que acabou de dizer é a realidade, está no conceito estratégico da Rússia. Eu aconselho as pessoas a lerem. Está em inglês e está em russo. Aconselho as pessoas a irem à Internet e a fazerem a busca pelo conceito estratégico de 2021. Putin, ao fim de 20 e tal anos de poder, tem um projeto exatamente no sentido em que referiu, de reconstituir o Império e isso está clarinho. O conceito estratégico russo tem que é fundamental deter os Estados Unidos, dividir Europa e arranjar aliados ou consolidar parceiros, porque ele sabe que a China nunca será um aliado, parceiros como a China, como a Índia, como o Brasil, como o Irão, como estranhamente a Coreia do Norte. E, portanto, isso está escrito e depois tem todos os conceitos da ação estratégicos no sentido de ir ao encontro destes grandes objetivos políticos e esses implicam a guerra para conquistar os próprios espaços que ele diz que estavam sob ameaça da NATO, NATO que estava morta cerebralmente, como diziam depois os Europeus. E quem sabia o que era a NATO nessa altura? Ele soube aproveitar a ‘morte da NATO’ e não o contrário. Claro que o seu discurso, a sua narrativa foi o contrário. Foi dizer que a NATO estava a invadir quando a NATO nem tinha nem capacidade para sobreviver, quanto mais para invadir. E, portanto, a questão era que eram os países que se sentiam ameaçados, que faziam a aproximação quer à União Europeia, quer à NATO, porque sentiam que o lobo, mais uma vez, já os tinha acordado.
E é sempre o poder da geografia, não é? Quem está lá mais perto, sente a Rússia de outra forma…
Claramente. Quem já esteve na Rússia. Eu estive na Rússia, estive em todos aqueles países e senti naqueles países uma perceção cimentada com a história, de que a ameaça está ali à frente, mesmo a Finlândia antes de entrar na NATO. Até porque também tenho familiares ali e não é só um, tenho familiares ali naquela zona: Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Alemanha. Já nem falo dos países bálticos. Quando eu tinha reuniões de comando, e tive várias, entre os comandantes europeus das academias militares, por exemplo, tínhamos a academia mesmo junto da fronteira e fazíamos as reuniões e portanto eles, aquilo que nos transmitiam era, mais tarde ou mais cedo, o russo deixa o estado de hibernar. Ele está a hibernar. Eles tratam isto assim e dizem: ‘vocês é que ainda não perceberam porque estão longe, mas isto está perto de acontecer’. Eu fui sentindo isso desde 2014, sobretudo, e nas reuniões que tive a partir de 2016 como comandante até 2020, nos vários países bálticos e na Polónia. Eles bem nos avisaram, mas os Europeus, como sabe, preferiram usufruir do bem-estar em detrimento da segurança e defesa ao longo destes anos.
Depois de a administração Biden ter permitido que a Ucrânia ataque a Rússia com mísseis ATACMS de longo alcance de fabrico americano, como já se disse, o presidente assinou a lei e mandou publicar a nova doutrina anunciada que permite uma potencial resposta nuclear de Moscovo, mesmo a um ataque convencional à Rússia por qualquer nação apoiada por uma potência nuclear. Isso poderia incluir potencialmente ataques ucranianos apoiados pelos EUA. A doutrina nuclear russa difere muito da norte-americana ou da britânica ou da francesa?
É diferente, agora. Não era, eram muito semelhantes, tinha a ver mais com a soberania e a integridade territorial em termos de doutrina. Era muito teórica no sentido em que dava grande liberdade de ação ao decisor que, por sua vez, tinha todo um processo de decisão complexo nos países democráticos. Em países autocráticos, o processo é mais simplificado. De qualquer maneira, está muito centrado no Presidente e tem poucos órgãos de decisão que aconselham a tomada de decisão, o que é normal em países autocráticos. Era muito semelhante e tinha a ver, sobretudo com integridade do território e tinha a ver com soberania. Neste momento, a atualização desta doutrina vai ao encontro daquilo que a Rússia, e Putin em particular, e a Duma, sentiram que era a conjuntura. Aliás, eles fazem referência a isso. A situação internacional mudou. E em particular para a Rússia, tendo em conta que a Ucrânia está a ser apoiada por outros países e, portanto, ‘vamos adaptar’, adaptaram pela conjuntura. E qualquer dia também é capaz de ser alterada novamente em função de nova situação que se venha a verificar com utilização de outro tipo de armas. Às tantas vão alterar porque houve um ataque com um drone com determinadas características que pode pôr em causa a soberania e integridade. Ou seja, eu acho que também funciona neste momento como mensagem dissuasora
Tal como o lançamento deste deste novo míssil hipersônico de médio alcance?
Claramente, claramente, foi a resposta. Aliás, isto já tinha sido tudo aprovado em Julho, ele estava à espera era da resposta que ele sabia que ia haver relativamente às tropas norte coreanas estarem em Kursk. Putin sabia que ia haver uma resposta do Ocidente. A resposta tardou devido às eleições norte-americanas. Nós sabemos o que é que foi o último mês e, portanto, quando veio a resposta, ele já tinha esse documento prontinho a assinar em cima da mesa e assinou. Mas, depois tinha que ser coerente com o documento e a coerência com o documento era fazer uma ameaça de guerra convencional, porque até à intervenção nuclear ainda vai uma distância muito grande para a Rússia, porque tem armas termobáricas porque tem armas de médio e grande alcance e, portanto, tinha que fazer uma ameaça, digamos, com armamento convencional, numa arma que tinha capacidade nuclear. Porque ele não precisa disso para bater a Ucrânia, não precisa de ter armas de alcance de quatro mil quilómetros. Nós sabemos que basta ter armas com 300 km de alcance que não são batidas pelas armas da Ucrânia, mas ele quis fazer uma demonstração de força, dizendo: ‘aqui está a doutrina e aqui está a possibilidade de eu utilizar estes mísseis com ogivas nucleares. Por enquanto, vão com ogivas convencionais’.
Embora o míssil transportasse apenas ogivas convencionais, a sua utilização sinalizava que a Rússia poderia atacar com armas nucleares se assim o desejasse. Ou seja, o míssil de alcance intermediário não carregava armas nucleares, mas faz parte de um arsenal estratégico capaz de as lançar. Ao dizer que a Rússia se outorga ao direito de atacar as instalações militares de países “que permitem que as suas armas sejam usadas contra as nossas instalações”, contra a Federação Russa, não está Putin a fazer uma declaração de guerra aos países da NATO?
Se estivéssemos em 1945, era uma declaração de guerra. Depois de tantos anos de paz até 1991, digamos que toda a conceptualidade de relações internacionais foi sendo alterada e não há declarações de guerra, como sabemos. Aliás, isto não é uma guerra, diz Moscovo. Para a Rússia é uma operação militar especial, o que é muito interessante. Aliás, há contradições todos os dias no discurso…
Mas, entretanto, o próprio, o próprio poder político em Moscovo começou a referir-se à operação militar especial como guerra…
Sim começou, mas continua a prender quem usa um papel branco e quem usa a palavra guerra nas redes sociais e, portanto, ninguém pode chamar guerra. Só os dirigentes políticos que se descuidam para a verdade quando são interpelados sobre estas questões, todos nós sabemos que é uma guerra, mas não há declarações de guerra. Há sim, digamos o escalar da crise que tem várias dimensões até à guerra. E depois, aquando da guerra como estamos a ver, até porque é uma situação nova, é muito diferente o que se está a passar no Médio Oriente, desta situação que se está a passar na Ucrânia. Portanto, temos uma potência nuclear a destruir e a invadir uma potência vizinha a quem foi retirada a sua capacidade nuclear por um acordo assumido pela própria Rússia, o que é muito interessante, neste caso.
Mas pensa que estamos num momento de escalada nuclear e devemos preparar-nos para isso?
Não estamos em escalada nuclear, estamos em escalada da guerra, mas devemo-nos preparar para o cenário mais perigoso. Nós militares, trabalhamos naquilo que são os cenários mais prováveis, mas salvaguardamos o cenário mais perigoso; e neste caso, aqui, entra a componente nuclear, certamente nas suas várias dimensões. Atenção que a componente nuclear tem algo que nunca foi experimentado em teatro de operações, que é o nuclear tático. O nuclear tático tem a ver com a potência das bombas e tem a ver os vectores, com aquilo que normalmente se espera que seja utilizado no teatro de operações, numa linha da frente, até para não haver consequências para as próprias tropas russas, é exatamente a utilização de armas de artilharia que têm capacidade, mesmo aquelas com capacidade só até 40 km, tem capacidade de ter granadas com capacidade nuclear e, portanto, e outros vetores como mísseis. Há-de haver drones também com essa capacidade no futuro, mas que têm uma capacidade de 0,5 kg toneladas até 1,5 ou 2 quilotoneladas, ou seja, que tem uma capacidade de destruição de uma aldeia grande, de uma vila grande, não de uma cidade, mas com consequências enormes em termos políticos para a comunidade internacional.
E com efeitos radioativos também…
Os efeitos radioactivos, de sopro, efeitos de temperatura. Todo esse tipo de efeitos com essa utilização, obviamente, será novidade porque nunca foi utilizado e tal como quando foi Hiroshima e Nagasaki, não havia consciência dos efeitos, porque uma coisa são os testes, outra são os efeitos…
Mas agora, já há...
Agora já se fizeram muitos testes, já vai havendo, mesmo para as armas nucleares táticas. Mas ainda há muitas dúvidas porque uma coisa é a realidade. Depois são os testes e a teoria, e portanto, como nunca foi utilizada a arma tática nuclear, portanto, vamos ver, esperemos que não seja utilizada. E eu tenho confiança que não venha a ser utilizada.
Ao longo da guerra, os pedidos da Ucrânia por sistemas de armas avançados encontraram meses de hesitação antes da deliberação por parte dos Estados Unidos, com uma Administração Biden apostada em reforçar o esforço de guerra de Kiev sem ser arrastado para uma espiral de escalada potencialmente catastrófica com Moscovo. Isso aconteceu repetidas vezes, desde os pedidos de Kiev de caças F-16, do Sistema de Mísseis Táticos do Exército (ATACMS) e da permissão para usar armas dos EUA para atacar o território russo.
Isso foi originando críticas de todos os lados: daqueles que argumentam que o apoio da administração não foi suficientemente longe e daqueles que temem o risco de um confronto direto com outra potência nuclear.
Sexta feira da semana passada ficámos a saber que a administração Biden tinha dado finalmente luz verde para a Ucrânia utilizar ATACMS de longo alcance para ataques em território russo. Embora as armas tenham um alcance de cerca de 300 quilómetros, espera-se que Kiev as utilize principalmente na região russa de Kursk, partes da qual estão sob controle das forças ucranianas desde que lançaram uma contra-ofensiva transfronteiriça surpresa no verão.
Acredita que, olhando para trás, se os Estados Unidos tivessem fornecido alguma dessas autorizações antes, isso teria feito alguma diferença substancial a favor da Ucrânia na guerra?
Teria uma alteração substancial a nível tático e operacional. Até porque esta é uma guerra diferente de todas as outras. Nós, que até acompanhamos esta guerra, sabemos que é muito complicado entender determinados fenómenos, designadamente o facto de uma das potências não poder pedir autorização ao inimigo para utilizar determinado tipo de armas. Isto não devia ser uma discussão. Em termos militares, a introdução dos Leopard no teatro de operações, dos HIMARS, dos F-16 antes, agora dos mísseis de longo alcance, não devia ser alvo, de maneira nenhuma, de qualquer discussão. Mas nós chegámos a um ponto, a determinada altura em que se discutia na praça pública o tipo de armas, a quantidade de armas e o local onde é que elas iam ser colocadas. Portanto, os serviços de informações russos já nem precisavam de ter especialistas. Bastava ter jovens a acompanhar o que se dizia no Ocidente, aquilo que vinha nas notícias para imediatamente saber ou dar indicação aos decisores militares para destruir essas mesmas armas no transporte. Portanto, isto é uma guerra mesmo muito diferente. O Ocidente trabalhou muito mal esta guerra em termos do apoio à Ucrânia e trabalhou muito mal politicamente e estrategicamente e, portanto, isso que acabou de me questionar, obviamente que a resposta é: nunca deveria ter sido questionada a utilização das armas; deviam era ter sido fornecidas, em tempo, as armas e as munições, e a guerra seria completamente diferente.
A Federação Russa não estaria na posição de proeminência, se lhe quisermos chamar assim, de uma posição ganhadora, como parece que está nesta altura?
Certamente que não. Aliás, quando houve o contra-ataque e havia problemas com os mercenários, nós vimos a situação gravosa em que se encontrava a Rússia. Era nessa altura. Aliás, Prigozhin quase que chegou a Moscovo, portanto era nessa altura que se devia fornecer todo o tipo de equipamento e material à Ucrânia. Perdeu-se uma oportunidade única de ela chegar às suas fronteiras. Não era obviamente, atacar a Rússia. Isto, agora, a situação de Kursk, é uma situação para ganhar liberdade de ação negocial, porque se sabe que as negociações estão perto, seja com Trump, ou fosse com qualquer outra administração. A guerra não se poderia prolongar muito mais tempo, porque quem ganha com o tempo, como ganhou sempre, é a Rússia. Ao longo da História nós sabemos isso e, portanto, a Rússia é que está a ganhar com o passar do tempo e, portanto, era logo no início restabelecida a fronteira, renegociada - como nós escrevemos isso mais do que uma vez, já o escrevi nos meus livros - era renegociada a partir daquilo que foi a invasão do dia 21. Essas é que deviam ser negociadas. A questão do Donbass, que era o grande objetivo inicial e a questão da Crimeia, ponto. Permitimos que houvesse ocupação de outros territórios e impedimos a Ucrânia de se defender com as mesmas armas do inimigo. A Ucrânia está a lutar numa guerra injusta, primeiro em termos de direito Internacional, porque é um Estado de direito que foi invadido e ocupado; ao abrigo do direito Internacional obviamente, no caso do artigo 51, a Ucrânia tem todo o direito de se defender, mas defendeu-se sem as mesmas armas que a Rússia e continua a defender sem as mesmas armas que a Rússia. Isto tem consequências, depois, no teatro de operações e a situação vai continuar a agravar-se, porque, obviamente, a Rússia não tem problemas com baixas. A Ucrânia, e quem pensa da maneira do way of life ocidental, obviamente tem problemas com uma baixa, quanto mais cem mil. A Rússia nunca teve esse problema, continua a não ter problemas em morrerem mais cem mil ou terem mais quatrocentos mil feridos. Não tem problema nenhum; interessa é conquistar, atingir os objetivos, seja de que maneira for.
Mas se não tivesse esses problemas, porque é que teria recorrido à Coreia do Norte?
Recorreu à Coreia do Norte por duas razões, uma primeira razão que tem a ver com o facto de já ter mais de quinhentas mil baixas. E digamos que as fontes de recenseamento que vêm das zonas mais pobres do país, já começam a ter alguns problemas, porque não vão recrutar em Moscovo nem a São Petersburgo nem nas outras grandes cidades e, portanto, a grande questão era, que a Rússia começava a ter problemas, em parte com o recrutamento modelo de gente pobre que ganha 300 euros e que assim vai ganhar 2000 por mês e que se morrer as famílias recebem 5 mil. E, portanto, depois toda a censura trabalha de maneira a que não haja funerais em simultâneo, que não haja notícias sobre os mortos, que as campas não digam que morreu na guerra. Portanto, esse é o trabalho das autocracias. É típico. Agora estava a atingir um ponto, com tantas baixas, que obviamente a informação - nem que seja dos bloggers, começa a aparecer e começa a incomodar. E nesse sentido, era importante ir buscar não só da Coreia do Norte, vêm do Cazaquistão, vêm mercenários de todos aqueles países de zona de influência russa. Agora a questão que se coloca ali foi trabalhada por Putin. É um calculista, sabia que era importante que aquela operação militar, que obviamente seria para negociar era, digamos, algo que punha em causa a soberania e a integridade territorial da Rússia. E isso, ao abrigo mesmo da anterior doutrina, era possível fazer um ataque nuclear a essas forças que invadiram o seu território. Não era preciso a nova doutrina, bastava só a doutrina anterior para o fazer relativamente às tropas da Ucrânia e, portanto, entendeu que havia legitimidade ao abrigo do acordo, de ter a Coreia do Norte e de pôr tropas no terreno para mostrar que, efectivamente, quem esteve mal foi a Ucrânia ao invadir a Rússia e que isto era inaceitável. E, portanto, vai buscar um aliado exatamente para criar um outro precedente calculista, que é este que estamos a assistir agora. Tudo isto está calculado, faz parte. Eu tenho a certeza absoluta de que foi tudo calculado, ou seja, ‘vamos meter tropas em Kursk que não noutro espaço para vermos a resposta do lado de lá. Se a resposta for forte, nós vamos argumentar com a alteração da doutrina da guerra nuclear’. E essa é que é a verdadeira dissuasão, não só para a Ucrânia, mas para os aliados.
Ou, como afirmou o Conselheiro Nacional de Segurança de Joe Biden, Jake Sullivan, “a nossa opinião é que não existe um sistema de armas que faça diferença nesta batalha. Trata-se de mão de obra, recursos humanos, e a Ucrânia precisa de fazer mais, na nossa opinião, para firmar as suas linhas em termos do número de forças que tem na linha da frente”, disse Sullivan. “Trata-se de munições e de todas as outras coisas que contribuem para a força nacional de um país – a sua moral, a sua coesão, a sua base industrial.” Isto até soa a crítica à forma como a Ucrânia tem conduzido a guerra…
Sim, sim, porque a Ucrânia tem 44 milhões de habitantes, dos quais se calhar menos de 30 milhões estão no território nacional e tem grandes dificuldades em termos de recursos humanos. Basta ver as linhas da frente e a média de idades da tropa que se encontra, alguns deles desde o início do conflito, na linha da frente está a viver problemas enormes em termos de pessoal, em termos de recrutamento, não consegue fazer recrutamento a não ser forçado nas grandes cidades, com consequências diretas naquilo que é depois o mundo do trabalho, a mão-de-obra, que é também indispensável para a produção de armamento e munições. E, portanto, a Ucrânia está a viver problemas gravíssimos em termos de pessoal. E em termos de material, chegamos todos à conclusão que, com estas exceções dos mísseis de longo alcance, digamos na linha da frente, há um equilíbrio muito grande. Aliás, aquilo que é o grande estandarte da guerra em termos de armamento, neste momento não são os carros de combate, não são as aeronaves, como tradicionalmente numa 2ª Guerra Mundial, são os drones. Ao longo de 1200 km de fronteira, os vários combates que há por dia, que normalmente são entre 50 e 120, combates com 1500 baixas de cada lado, isto é o que se passa dia-a-dia. E, portanto, nós depois o que fazemos é uma análise do que se está a passar e a análise é que o grande estandarte desta guerra é o drone, que é utilizado com inteligência artificial do lado da Ucrânia, mas também do lado da Rússia. Portanto, não é só o drone inicial, depois o kamikaze; não, já há outro tipo de drones, aquilo que são as maiores baixas que se estão a verificar na linha da frente são decorrentes da utilização de drones, de novas unidades que estão incorporados nos dispositivos dos dois países na linha da frente. E isto é que tem contribuído que na linha da frente, mais ou menos, haja um congelamento, apesar dos avanços que tem havido nos últimos dois ou três meses da Rússia relativamente à Ucrânia. Portanto, as conquistas em três meses foram superiores às conquistas num ano e isso também se demonstra exatamente o que o Sullivan tinha dito, ou seja, a Ucrânia já está a viver grandes dificuldades também em termos em termos humanos, já não é só em termos de armamento, e isso é uma pressão para a negociação. Mas que não seja uma pressão para a capitulação, porque as falhas foram no apoio que não teve. Porque resiliência e resistência e capacidade de combate não há ninguém como os ucranianos.
Qual deve ser o papel da NATO e dos países da União Europeia no quadro da Aliança neste momento político e geopolítico?
A NATO é uma organização política. A NATO não está empenhada diretamente, não pode estar empenhada diretamente nesta guerra. Senão, teríamos uma terceira guerra mundial. E, portanto, tem sido a dimensão política. E atrás da dimensão política, de pressão sobre a Rússia, vem a dimensão militar no sentido de preparar os países da NATO, agora os 32 países da NATO, para um cenário adverso de a NATO ser obrigada, ao abrigo do artigo quinto, intervir neste cenário. Esperemos que não, mas tem que estar preparada para tal e não estava preparada para tal, nem a NATO em si no seu conjunto e da sua organização de forças, nem muito menos os países. Grande parte deles não tinha sequer 2% de investimento do PIB, mas mais importante do que isso, não tinha capacidades para fazer face a uma guerra desta dimensão, não há indústria de guerra. E portanto, a NATO o que faz agora é pressionar e estar preparada para dar resposta ao abrigo do artigo quinto. Não vai ter resposta de outro tipo, a não ser que haja países como a Polónia, como a Roménia, ou como países Bálticos que queiram participar diretamente no conflito com botas no terreno. E essa é uma outra dimensão, que obviamente havia legitimidade e autoridade para o fazer depois de haver tropas coreanas ali na Rússia. Obviamente aqui havia autoridade para o fazer, mas isso é uma escalada da guerra com uma dimensão ainda muito maior, como todos sabemos e a pressão que vai haver é política e de negociação no sentido de respeitar o direito Internacional, que vai ser difícil porque obviamente as cedências da Rússia e as cedências da Ucrânia serão em muito maior número da parte da Rússia, em função daquilo que nos diz o teatro de operações, por culpa da NATO, por culpa do mundo ocidental em geral.
Tem acompanhado certamente as nomeações de Donald Trump para a próxima Administração americana, é militar…
Pete Hegseth, escolhido para o cargo de secretário de Defesa, foi acusado de agressão sexual em 2017, após discursar num evento de mulheres republicanas em Monterey, Califórnia, mas não foi acusado após a investigação policial. O advogado, Timothy Parlatore, descreveu o encontro sexual como consensual e confirmou que Hegseth pagou uma quantia à mulher como parte de um acordo confidencial. Hegseth fez isso para evitar uma ameaça de processo, segundo Parlatore, que disse que o cliente foi vítima de “chantagem”. João Vieira Borges, os militares americanos não ficarão incomodados com um perfil destes à frente do Pentágono?
Os militares americanos já estão incomodados, em particular o Pentágono e em especial os oficiais generais que ele acusa de serem pouco criativos. E que vai despedir alguns. Já o disse antes e disse-o como jornalista que se fosse ministro, despedia. E para além de dizer isso, disse outras coisas bem mais complexas, como a intervenção das forças armadas em determinadas situações que são inconstitucionais, designadamente relativamente à intervenção na expulsão, entre aspas, dos imigrantes ilegais; e portanto, aqui a questão põe-se a vários níveis: primeiro, porque é uma pessoa que não tem condições pessoais para ser uma referência numa instituição como as forças armadas, portanto, não é referência de valores, não é referência de princípios. Segundo, por ter, como jornalista, sistematicamente criticado as chefias militares norte-americanas e ter defendido as posturas de Trump, mesmo que fossem inconstitucionais. Em terceiro lugar, o facto de ter sido militar e foi até major, tem duas grandes condecorações, foi um militar de excelência no trabalho que fez, isso aí ligou-o aos antigos combatentes, criou duas organizações, mas organizações essas que são extremistas, muito próximas de nazis. Aliás, as cruzes que ele diz não são certamente da ordem de Cristo.
As cruzes que tem tatuadas?
Não são e já foram alvo de muitas críticas. Mas mais importante do que isso, foi tudo o que ele disse e escreveu e que está registado e portanto não é uma pessoa que venha a ser bem vista, vai haver muitos problemas naquele Pentágono. Na primeira administração Trump, houve demissão de 4 generais de 4 estrelas, do National Seguited Advisor, do próprio Ministro ou Secretário da Defesa, foram 4 durante uma Administração. Eu, neste momento presumo que haverá muitas mais demissões de generais e haverá muitos mais conflitos, independentemente depois do Senado e da Câmara dos Representantes, ter maioria republicana e poder eventualmente tomar partido. No entanto, acredito que quando estamos a falar de Constituição, seja na Câmara dos Representantes, seja no Senado, alguns desses republicanos irão ter posturas diferentes. As divisões dentro da administração serão uma certeza, na minha perspetiva.