"O Brexit tem sido bom para mim mas preferia não ter o Brexit e não ter O Coração de Inglaterra", título do livro (com apresentação em Lisboa no dia 21) do romancista Jonathan Coe, atualmente com residência literária em Cascais, no âmbito das Residências Internacionais de Escrita Fundação D. Luís I. A TSF sentou-se com ele na Cidadela. Jonathan Coe não tem dúvidas: no Reino Unido, "tudo pode acontecer". Segue-se a entrevista.
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Middle England é o título original, na tradução para português ficou O Coração de Inglaterra. Como é que bate nesta altura esse coração nestes tempos problemáticos?
De uma forma um pouco errática, no momento. Li um artigo recentemente de um jornalista espanhol em que ele descreve a Grã-Bretanha como 'essa ilha infeliz'. Parece, de facto, um pouco desafortunada e sitiada. Estamos num tempo de grande incerteza política, as pessoas decidiram de forma muito renhida no referendo, há três anos, fazer algo muito difícil e arriscado que é sair da União Europeia, numa altura em que a economia britânica não está particularmente forte. Desde então, os políticos têm discutido muito entre eles, sobre qual a melhor maneira de fazer isto. A forma menos prejudicial economicamente. Neste entretanto, certas franjas do eleitorado, a quem foi dito durante a campanha para o referendo, que sair da União Europeia seria muito rápido e fácil e simples e levaria a aumentar a prosperidade quase imediatamente. Estas pessoas ficaram impacientes. E não entendem propriamente a complexidade da situação que se apresenta aos políticos. Estamos, por conseguinte, num estado de paralisia, é a melhor expressão para usarmos, estamos paralisados.
Mesmo que não tendo violência poderíamos designar esta época como The Troubles, os problemas, como se chamava ao conflito na Irlanda do Norte?
Quem sabe o que lhe chamaremos quando, no futuro, olharmos para trás para este episódio! É verdade que desde a campanha para o referendo, não tenho havido muita violência especialmente num país que está a passar por uma situação destas. É claro que durante a campanha propriamente dita houve um acontecimento chocante de violência política, quando a deputada trabalhista Jo Cox foi assassinada a 2 de junho de 2016, por um terrorista de extrema-direita. Foi um terrível lembrete sobre o que o terrorismo de extrema-direita e tipo lobo-solitário pode significar para os políticos e para as figuras públicas, atualmente.
No entanto, desde essa altura, políticos que querem o Brexit e que para ele apelam apaixonadamente, continuam a estimar que os britânicos vão sair para as ruas e fazer um tumulto se o Brexit não acontecer o mais rapidamente possível. Na verdade, os britânicos conseguem estar muito relutantes em relação a isto. Éramos para ter saído a 31 de outubro, o nosso primeiro-ministro disse que preferia morrer numa valeta do que não sair da União Europeia nessa data, acontece que não saímos...
Ele não morreu...
Ele não morreu, não há valeta, alguns deputados previam que houvesse tumultos a 1 de novembro se não saíssemos. Mas o povo britânico acordou nessa manhã e não se sentiu muito diferente de qualquer outra manhã, os tumultos nunca se materializaram.
A paralisia é mesmo a palavra que descrever as coisas da forma mais rigorosa e há uma certa dose de frustração e a sensação de que outros assuntos políticos internos mais determinantes estão a ser negligenciados por causa o Brexit, mas parece não haver solução para o impasse no momento. Há uma eleição agora, por isso...
Como no livro o jornalista Doug diz ao escritor Benjamin, as pessoas estão furiosas... mesmo se não especificamente com o Brexit, as pessoas estão zangadas com os políticos, de uma forma geral...
Sim, esse é o caso há dez anos, no mínimo. Talvez até vinte. Para mim, o primeiro traço evidente da quebra de confiança entre a classe política e o povo foi Tony Blair na Guerra do Iraque em 2003. Depois, tivemos a crise financeira em 2008 que atingiu as pessoas de forma muito dura - e continua a atingir - e em 2009 tivemos uma espécie de crise local com um escândalo de despesas dos deputados, quando um dos mais conservadores jornais - o Daily Telegraph - publicou uma longa série de artigos sobre despesas de deputados que não deviam existir, exigências de segunda residência a que não tinham direito, despesas pessoais e por aí adiante, e isso não deve ser subestimado e fez com que as pessoas ficassem muito zangadas com a classe política. É apenas depois disso, em 2010, que o meu romance começa. Mas já há três fortes razões para a desilusão com os políticos entre o público britânico. E essa desilusão cresceu e cresceu e manifestou-se - e isto é a peculiaridade da situação britânica - numa decisão específica, que foi a saída da União Europeia.
O tipo de descontentamento que se manifesta no Reino Unido não é muito diferente do que se verifica com os Coletes Amarelos em França, mas aí o protesto não tem foco. Estão nas ruas todos os fins-de-semana, incendeiam coisas, protestam, mas ninguém sabe o que é que realmente querem. Os nossos políticos que apoiam o Brexit, muito inteligentemente na minha opinião, capturaram este descontentamento generalizado e canalizaram-no exatamente na direção que pretendiam seguir.
É um contexto perfeito para um escritor ficcionar a vida, como escreve no livro e viver em ficção...
Bem, como sabe, a vida é cheia de paradoxos e um deles é que o Brexit tem sido bom para a minha vida, nos últimos três anos. Inspirou-me a escrever este romance, um romance muito agradável de escrever, mesmo sendo sobre conflito político, na verdade até muito fácil porque o material estava à mão de semear e veio ter comigo de forma muito rápida, e no meu país e muitos outros países, foi o meu livro melhor sucedido nos últimos vinte anos. Como digo, o Brexit tem sido bom para mim mas preferia não ter o Brexit e não ter O Coração de Inglaterra.
E O Coração de Inglaterra, sendo sobre o Brexit, é muito sobre o impacto que provoca nas famílias, nas relações entre as pessoas, a forma como divide as pessoas, acaba com amizades; ou seja, o impacto das decisões políticas nas relações individuais...
Um dos factos mais notáveis é que dois anos antes do referendo, quando os britânicos eram inquiridos sobre esse assunto, não queriam saber da União Europeia, estava bem cá para baixo na lista das suas prioridades políticas, estavam mais preocupados com saúde, educação, habitação, defesa, etc. Mas agora, toda a gente discute o Brexit e toda a gente agarra o outro pelos colarinhos por causa do Brexit, o que me faz pensar que o que estamos a discutir não é nada sobre o Brexit! Porque, na verdade, estarão as pessoas mesmo apaixonadamente preocupadas com o facto de pertencermos ou não à União Europeia? Creio que não estão, esta questão incide sobre fraturas mais profundas e descontentamentos mais profundos que têm que ver com identidade nacional e identidade cultural, sentido de pertença, a que país queres pertencer, até mesmo que tipo de pessoa queres ser, quão aberto ou fechado ao mundo queres ser.
Não é a questão daqueles que foram deixados para trás pela globalização?
Certamente que teve um papel no processo, particularmente nas cidades do norte do reino Unido, que nunca recuperaram verdadeiramente da destruição das fábricas nos anos oitenta, nos anos de Thatcher. Mas o Brexit é também um processo de classe média, uma parte muito sólida do voto no Brexit veio das prósperas classes médias do centro de Inglaterra. É muito as pessoas sobre as quais escrevo no livro. Estas pessoas não estão propriamente na penúria nem são pessoas que não tenham voz. Mas sentiram esta fúria generalizada e viraram-se contra Bruxelas e contra o que Bruxelas parece representar.
Em Zagreb, na Croácia, provavelmente devido ao nacionalismo violento, e às guerras de colapso da Jugoslávia e que levaram à independência do país, há um Museu das Relações Partidas. Imagina um museu do género no Reino Unido, daqui a uns anos?
Penso que é uma boa ideia, podia quase ser um subtítulo para o meu livro, porque mostro casais a separarem-se, famílias, as gerações a discordarem violentamente umas com as outras. O nacionalismo é uma força muito poderosa e tende a ser aquilo a que as pessoas se agarram quando tudo o resto parece não ir bem nas suas vidas, uma vez que toca assuntos muito primários. Se começas a discutir sobre que tipo de país queres ter, que tipo de relacionamento queres ter com o resto do mundo, então torna-se uma discussão fundamental e não uma que se possa ter à mesa de jantar ou no leito conjugal.
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O que é que pensa que pode acontecer a 12 de Dezembro?
Honestamente, não consigo prever. É uma situação muito volátil, as sondagens mudam constantemente, é um país onde tendencialmente por larga maioria os britânicos são razoavelmente plácidos a aceitar pessoas, mas estamos a ficar cada vez mais polarizados. Temos duas figuras muito extremistas a liderar os dois principais partidos: temos Jeremy Corbyn, o líder trabalhista mais à esquerda desde os anos oitenta e temos Boris Johnson, que é o líder conservador mais á direita desde Margaret Thatcher; aliás, ele é mais à direita do que Thatcher, tal como Jeremy Corbyn é mais à esquerda do que Michael Foot em 1983.
Então, temos uma situação verdadeiramente polarizada e muita gente que vai votar nestas duas figuras vai fazê-lo de forma muito relutante, e uma das razões porque o fazem é porque não suportam a outra pessoa. E numa situação assim polarizada em que os dois principais líderes partidários são tão impopulares em vastas partes do país, é muito difícil perceber qual será o resultado, ou, uma vez anunciado, como é que o país se vai recompor novamente.
Penso que acordaremos a 13 de junho seja com Boris Johnson a primeiro-ministro ou Jeremy Corbyn a primeiro-ministro mas nenhum dele será capaz de sarar as feridas que estão a fraturar o povo britânico nesta altura.
Mesmo se esses dois principais partidos não são bem claros sobre a forma como encaram o Brexit, especialmente no Partido Trabalhista, mas isso não significa um crescimento sustentável dos partidos que têm posições definidas sobre o assunto, como é o caso do Partido do Brexit e dos Liberais Democratas, que são contra a saída...
Temos um sistema político muito cru e ultrapassado que só permite a um dos dois principais partidos chegar ao poder. Os liberais-democratas tiveram brevemente um pé no poder, entre 2010 e 2015, porque estiveram em coligação com os conservadores. É possível que nenhum partido tenha a maioria desta vez e acabemos de novo com outra situação de coligação, poderíamos ver por exemplo, o Partido Trabalhista em coligação com o Partido Nacional Escocês, seria uma situação interessante. Porque provavelmente teriam de ceder a um segundo referendo sobre a independência da Escócia e, provavelmente, os escoceses votariam pela saída. Mas está aí uma estrada fácil para a rutura do Reino Unido a médio prazo.
Além da Irlanda do Norte...
Além da Irlanda do Norte onde, para algumas pessoas, a união com a República da Irlanda em vez do Reino Unido, começa a parecer mais e mais atrativa. Como já disse, tudo pode acontecer.