Joshua Cohen: Netanyahu é um "megalómano". "No caso do Irão pode estar certo", mas "é um parvalhão"
Joshua Cohen, um escritor meticuloso, mas mordaz, divertido, com um talento enorme para integrar géneros não-narrativos num romance escrito a partir de factos reais. Mas também o escritor judeu que é profundamente crítico para com Netanyahu e a guerra. O Prémio Pulitzer de Ficção 2022 em entrevista à TSF
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Joshua Cohen, pode apresentar aos nossos ouvintes o seu livro "A Família Netanyahu"? Tanto quanto sei, é baseado em acontecimentos reais que lhe foram contados pelo académico literário Harold Bloom, certo?
Sim, sim, no final da vida de Harold Bloom. Ele foi inesperadamente simpático para mim. Escreveu um ensaio sobre um outro romance meu, acho que foi o último ensaio que ele escreveu sobre um romancista vivo. E depois, claro, porque todas as boas ações exigem um favor em troca, pediu-me para ir a New Haven, no Connecticut, e ajudá-lo a escrever as suas memórias. Então fui lá e fiquei a ouvi-lo contar histórias. E a meio de me contar uma história sobre andar a passear com Derrida dá qualquer coisa na televisão, aparece Bibi Netanyahu na televisão, na CNN, e o Harold diz, ‘oh, aquele tipo, eu conheci aquele tipo’. Perguntei-lhe quando é que tinha conhecido o Bibi Netanyahu. E ele disse, ‘acho que ele tinha apenas 10 anos. Conheci o pai dele’. E eu disse: ‘o quê???’. E ele contou-me uma pequena história. Conheceu-o quando Benzion Netanyahu, o pai de Bibi, foi a uma entrevista para um emprego em 1959, 1960. E então Jean Bloom, a mulher de Harold, que ainda é viva, entra na sala e diz: "Não, Harold, não foi assim". E então eles estão a discutir sobre esta coisa que aconteceu, 60 anos antes. E depois o Harold morreu, talvez uns meses mais tarde. E essa pequena história ficou-me na cabeça. E depois de ele ter falecido, comecei a escrever este livro.
É também um livro de reflexão sobre a identidade judaica?
Sim, acho que começou com a questão de como é que a família Netanyahu chegou aos Estados Unidos, certo? Quer dizer, isso foi algo que… sabe, eu cresci em Atlantic City, Nova Jérsia, que é relativamente perto de Filadélfia, que é onde os Netanyahu estiveram durante algum tempo. E eu sempre achei que ele tinha uma espécie de sotaque de Filadélfia em inglês. Era muito difícil perceber porque é que eles estavam lá. O que é que eles estavam a fazer ali? E assim, o livro parte dessa questão. Mas sim, depois torna-se uma exploração da formação da identidade judaica ou da reforma da identidade judaica na sequência do Holocausto e na sequência da saída dos judeus dos países árabes com a fundação do Estado de Israel.
A edição portuguesa acaba de sair agora, ou seja, alguns meses depois do dia 7 de outubro, mas o livro foi publicado pela primeira vez em 2021, foi Prémio Pulitzer. Sentiu algum tipo de necessidade de escrever sobre religião nessa altura? Qual foi a motivação para, digamos, incorporar a religião em todo o romance, digamos assim?
Bem, quero dizer, penso que a motivação fundamental para isto foi, ou a causa disto, a morte de Harold Bloom. E eu quis fazer uma espécie de homenagem ao Harold. Mas, sabes, não o vejo necessariamente como um livro religioso. Quero dizer, vejo-o como uma questão de identidade política. E eu estava muito interessado em explorar a identidade política numa altura em que Netanyahu estava mesmo a sair do poder. Este livro foi publicado no final do governo de Naftali Bennett e numa altura em que Trump era presidente dos Estados Unidos.
Queria escrever sobre estas tendências políticas que fundiam o populismo e o nacionalismo de forma perigosa.
A certa altura do livro, escreve que a tendência saudável de aceitação do outro se transformou numa cultura de queixa. Vê os tempos atuais dessa forma? Transformámos a aceitação numa espécie de cultura da queixa?
Bem, penso que isso foi escrito em resposta à política de identidade, que muitos europeus consideram ser um fenómeno muito americano, embora seja bom salientar que, na verdade, deriva dos franceses, mas a que eles chamam wokismo. Mas penso que foi uma tentativa de historicizar a política de identidade. Penso que muitas pessoas acreditam que aquilo a que chamamos política de identidade, não sei qual é a expressão em português, mas penso que é provavelmente muito próxima, penso que muitas pessoas acreditam que as origens da política de identidade seriam os anos 80, digamos, ou pelo menos a seguir a 68, certo? E temos esta ideia de que a política de identidade – ou política identitária - é a representação dos grupos minoritários na academia, na cultura, nos meios de comunicação social, etc. E o que eu achei realmente marcante, é que a história da política de identidade pode realmente ser rastreada neste livro, pelo menos, até aos movimentos nacionalistas que surgiram em torno da Primeira Guerra Mundial e que, de facto, o sionismo é um movimento político de identidade, um movimento político de identidade fundamental. E achei muito interessante que as pessoas que estão envolvidas na política de identidade condenem agora o sionismo, quando o sionismo é, de facto, a expressão mais pura da política de identidade, que diz que precisamos de um espaço seguro no qual as nossas identidades possam ser respeitadas. Por isso, a contradição de que os proponentes, os apoiantes da política de identidade parecem agora ser esmagadoramente contra o exemplo historicamente mais proeminente da política de identidade que fundou um Estado, tornou-se atraente para mim.
Mas o livro é também uma espécie de sátira política...
Eu tento torná-lo engraçado. Sim, sim. Quero dizer, mais uma vez, essa comparação, não estou a tentar encontrar uma história para a política de identidade. Acho muito engraçada a ideia de que a ala esquerda mais avançada agora, sabe, vê as políticas de identidade do passado como profundamente de direita quando, na verdade, não eram.
Mas agora são...
Agora são. Pois é. E eu acho que, para um romancista, essa genealogia, essa genealogia política, é um terreno rico.
Em que medida é que a guerra em Gaza, nos últimos meses, tem prejudicado a imagem dos israelitas e dos judeus em geral em todo o mundo?
Quer dizer, acho que tem sido terrivelmente prejudicial, mas também não acho que, de certa forma, haja um sentido em que, para um grande número de judeus, isso não importa. A ideia de que o mundo tem de gostar do povo judeu é hilariante, não é? Israel foi fundado porque nós, judeus, sabíamos que não conseguíamos convencer os outros países a respeitar a existência dos judeus. Por isso, a ideia de que a opinião mundial está contra os judeus não é um fenómeno novo. Mas devo dizer que a minha principal preocupação não é o estatuto, a posição ou a opinião mundial sobre os judeus. Penso que a minha principal preocupação é a perda abissal, o luto e a morte que, em primeiro lugar, aconteceram do lado israelita após os ataques do Hamas a 7 de outubro e, em segundo lugar, a enorme resposta militar israelita, que matou dezenas de milhares de pessoas. Há uma parte de mim que quer dizer que estes ciclos de violência resultam quase sempre numa condenação de Israel e numa defesa da insurreição palestiniana, pelo menos na opinião europeia. Mas a verdade é que preocuparmo-nos com a forma como o mundo vê qualquer um dos lados numa altura de tanta dor e perda é, penso eu, uma preocupação barata.
Neste momento que estamos a viver, com o Conselho de Segurança da ONU completamente bloqueado, haverá uma saída política para tudo isto?
Gosto sempre de ouvir falar da ONU, porque, como alguém que vive em Nova Iorque, penso na ONU como alguém que vive no lado leste, são apenas pessoas ricas que não pagam as multas de estacionamento, mas... haverá uma saída? Eu… bem, podemos morrer todos. Há uma saída para todos nós. Mas para além dessa saída definitiva, não vejo nenhuma.
Quer dizer, acho que, como romancista, se tenho alguma responsabilidade, não é a de encontrar soluções, ou de proclamar, ou mesmo de me iludir com a possibilidade de encontrar uma solução. Mas é, de facto, insistir em recordar às pessoas a completa circularidade e repetibilidade da nossa estupidez. Continuamos a cometer os mesmos erros vezes sem conta.
Quando diz "nós", é "nós humanidade", "nós judeus", "nós povo"?
Humanidade, sim.
Já que escreveu sobre o pai dele, qual é a sua perspetiva sobre Bibi Netanyahu enquanto figura política atual?
Bem, antes de mais, quero dizer uma coisa porque ainda ninguém me perguntou isto em Portugal. Só quero dizer uma coisa sobre o pai dele. Interessa-me muito saber se o pai dele tem alguma reputação em Portugal, porque o pai dele foi um grande académico das inquisições espanhola e portuguesa. E escreveu um livro de mil e duzentas páginas sobre as origens da Inquisição no século XV. Foi a tese de Benzion Netanyahu de que foram as Inquisições Ibéricas do século XV que transformaram a definição de Judaísmo de uma crença religiosa numa identidade racial, no fundo, foi a tese que racializou os judeus. É claro que há muitos argumentos contra isso. As pessoas disseram que se tratava de uma forma de história revisionista, etc., mas foi esta interpretação das Inquisições do século XV na Península Ibérica que formou a ideia de Benzion Netanyahu de que, independentemente daquilo em que um judeu diz acreditar, independentemente de um judeu se converter ao catolicismo, independentemente de viver uma vida católica, será sempre racializado como judeu e oprimido. E foi esse raciocínio binário, a preto e branco, muito maniqueísta, que influenciou o seu filho. E o filho acredita que os judeus nunca podem estar seguros, que os judeus estão sempre existencialmente ameaçados, que o antissemitismo é um vírus antigo para o qual não há cura. E foi em grande parte através da erudição de Benzion Netanyahu e da sua erudição revisionista que Bibi Netanyahu formou esta ideia de judeus em constante perigo, judeus em constante ameaça. E foi a megalomania de Bibi Netanyahu que o fez acreditar que ele era a única pessoa que podia salvar o povo judeu.
Mas vê isso como uma mentalidade política consolidada ou é muito mais um instinto político de sobrevivência?
Penso que muitas pessoas, especialmente nas democracias ocidentais, na União Europeia, nos Estados Unidos, têm tendência para ver alguém como Bibi Netanyahu nos termos que as democracias ocidentais entendem, ou seja, alguém que está interessado na sua sobrevivência política, alguém que está disposto a fazer qualquer coisa para se manter no poder, que é capaz e está disposto a ser corrompido para se manter no poder. E penso que há alguma verdade nisso. Mas por detrás dessa verdade, está uma outra verdade mais profunda que é o facto de ele ter fundamentalmente uma conceção messiânica das suas próprias capacidades. Ele acredita que é a única pessoa que se interpõe entre a destruição total do povo judeu pelo Irão.
Ele sente que, se não estivesse no poder, o Estado judeu seria destruído. Esse é o grau de megalomania com que estamos a lidar.
Que se agravou depois de ele ter começado a liderar um governo com Ben Gvir e Smodrich?
Não sei se se agravou com esse governo. Acho que sempre foi assim. Quero dizer, acho que ele tem falado sobre o Irão desde os anos 80. Acho que tem sido exagerado desde 7 de outubro? Sem dúvida.
Mas não é verdade que, com o que aconteceu com o Hamas no dia 7 de outubro e as ameaças e a guerra de baixa intensidade, chamemos-lhe assim, embora já com algumas centenas de pessoas mortas no norte com o Hezbollah e o apoio que estes grupos recebem do Irão, não é verdade que Israel continua a enfrentar guerras existenciais?
Penso que é muito difícil falar de uma guerra existencial quando se é uma potência nuclear. Mas é absolutamente verdade que Israel tem sofrido disparos de rockets do oeste e do norte, que dezenas de milhares - agora são mais de 150.000 pessoas - foram evacuadas tanto da região sul, perto da fronteira de Gaza, como do norte. Muitos dos meus familiares vivem atualmente em hotéis e eu vivo em hotéis há meses. Penso que isso é absolutamente verdade. A questão é: haverá uma forma de os fazer regressar e de neutralizar a ameaça do Hezbollah, evitando a guerra? E do ponto de vista do Hezbollah-Irão, isso implica um cessar-fogo em Gaza. Mas isso será apenas uma trégua temporária. Podemos falar de pormenores sobre até que ponto a norte do rio Latani querem empurrar o Hezbollah, etc., etc. Mas penso que, em última análise, a grande e horrível ironia - é quase uma ironia de romancista em relação a Bibi Netanyahu - é que ele tinha razão numa coisa, que era o Irão. Não sei se se pode dizer isto na rádio, mas os meus primos - eles não são realmente meus primos, mas brincamos com isso - mas os irmãos Cohen, conhece o filme "O Grande Lebowski", certo? Há uma frase em O Grande Lebowski que diz: "Não estás errado, és apenas um parvalhão". E, de certa forma, Netanyahu é assim. Ele não está errado. É apenas um parvalhão.