De nome incontornável da sétima arte a personagem tóxica em Hollywood, Kevin Spacey enfrenta a justiça após mais de 30 acusações de assédio e agressão sexual.
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É o mais difícil papel da sua vida: a estrela de cinema que se senta no banco dos réus. O ator Kevin Spacey comparece, esta segunda-feira perante um juiz para ser formalmente acusado de agressão sexual a um jovem num restaurante no Estado norte-americano do Massachusetts.
Spacey, de 59 anos, responde por acusações de agressão sexual e lesão corporal ao filho de uma jornalista televisiva de Boston, alegadamente praticadas num restaurante da ilha de Nantucket em julho de 2016.
Esta é apenas uma das mais de 30 acusações de crimes sexuais feitas por vários homens contra Spacey. E a sua (longa) carreira já se ressentiu: Spacey não vai fazer parte da sétima temporada de "House of Cards", série da Netflix na qual o ator interpretava Frank Underwood, personagem que teve de morrer no final da sexta temporada.
Foi precisamente a partir dessa personagem (o ambicioso político, disposto a tudo, que chega a Presidente dos Estados Unidos) que Spacey parece ter feito, ainda que de forma dissimulada, um ato de defesa pública: na véspera de Natal, publicava o vídeo "Let Me Be Frank".
Em pouco mais de três minutos de vídeo, Spacey faz um monólogo que não deixou ninguém indiferente. Apresenta uma série de perguntas que dão a entender ao público - principalmente ao norte-americano - que esta não é uma mensagem qualquer: "Não acreditariam no pior sem provas, pois não? Não julgariam sem ter acesso aos factos, pois não? Posso prometer-vos o seguinte: se não paguei qualquer preço pelas coisas que sabemos que fiz, não o pagarei pelas que não fiz".
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A denúncia
Este foi, então, o mais recente episódio de um caso que terá ocorrido em julho de 2016, embora só tenha vindo a público em 2017. A suposta vítima de agressão sexual é o filho de uma jornalista e pivot americana, Heather Unruh. O filho da jornalista terá estado com Kevin Spacey num bar em Massachusetts, local onde o ator terá tocado as partes íntimas do jovem, então com 18 anos.
"O meu filho tinha 18 anos, mas disse a Spacey que tinha idade legal para beber [21 anos no Massachusetts]. Mesmo que ele tivesse mais de 21 anos, Kevin Spacey não tinha o direito de atacá-lo sexualmente. Spacey pagou-lhe bebida atrás de bebida até o embebedar. Quando isso aconteceu, Spacey colocou a mão dentro das calças do meu filho e tocou-lhe nos genitais. Não houve consentimento, foi um ato criminoso. O meu filho tentou mudar de posição, mas Spacey continuou. Depois, foi à casa de banho e o meu filho correu o mais rápido que pode até casa da avó", contava Unruh em conferência de imprensa.
Segundo a mãe do jovem, uma mulher que estava presente no bar terá notado algo de estranho com o rapaz, pelo que se aproximou dele aproveitando uma ausência do ator. Terá sido nessa altura que o aconselhou a fugir do bar.
"Ele não reportou o crime na altura, muito devido a vergonha e medo", acrescentou a jornalista norte-americana, contado que alguns meses depois, quando o filho contou o episódio, ligou para o xerife do Condado de Nantucket para denunciar o caso. "'Devia ter vergonha do que fez ao meu filho", acrescentava.
Uma bola de neve
A denúncia de Heather Unruh gerou uma sucessão de testemunhos de abuso sexual cometido por Kevin Spacey sobre outros homens. A primeira foi feita por Anthony Rapp, de 47 anos, que contou ter sido abusado por Spacey numa festa em casa do ator em 1986, quando tinha apenas 14 anos. Segundo o testemunho de Rapp, Kevin Spacey ter-se-á deitado em cima do então adolescente para o tentar seduzir.
Na reação a esta acusação, Spacey alegou não ter qualquer memória do episódio, mas pediu desculpa pelo "comportamento profundamente inapropriado" que lhe era imputado. Nessa mesma reação, optou por revelar que, ao longo da sua vida, tinha mantido relações com homens e mulheres, mas que escolhera viver a sua vida enquanto gay.
As reações da comunidade LGBT não se fizeram esperar e o editor da revista Gay Times, Josh Rivers, reforçava na altura, em declarações à BBC, que Spacey "não é absolvido (das eventuais acusações) porque é gay".
E os dois casos têm um efeito multiplicador. Ari Behn, ex-genro do rei da Noruega, queixava-se de que Spacey lhe terá tocado por debaixo de uma mesa durante a cerimónia do prémio Nobel da Paz de 2007; um homem revelou à BBC que, aos 17 anos, acordou com Spacey deitado em cima de si no apartamento do ator em Nova Iorque nos anos 80; o ator Roberto Cavazos revelou ter passado por situações "nojentas" com Spacey e que se aproximavam muito da definição de assédio.
Pouco tempo depois, a procuradoria de Los Angeles informava que Spacey não seria acusado por um episódio de abuso sexual, ocorrido em 1992 e denunciado na altura, porque o crime entretanto prescrevera.
Mais recentemente, uma série de pessoa que trabalharam com Spacey na série House of Cards - da qual o ator já foi descartado - revelavam à CNN que ele criava um ambiente tóxico no trabalho - e surgiu mesmo mais uma acusação de abuso sexual.
Fim de carreira?
A série de acusações contra Kevin Spacey levaram não só à sua saída forçada da série House of Cards, como também fizeram com que fosse cancelada a sua participação no filme "All The Money In The World", de 2017. O problema é que o filme já estava gravado, o que levou o realizador Ridley Scott a ter de regravar mais de 400 novas cenas com Christopher Plummer na pele de J. Paul Getty, personagem inicialmente interpretada por Spacey.
A carreira de Kevin Spacey é uma das mais respeitadas no mundo cinematográfico: a multiplicidade de papeis a que deu vida e o carisma das interpretações criaram alguns dos mais memoráveis personagens da história do cinema (quem não se lembra de Keyser Söze, em "Os suspeitos do costume"?). No ano de 2000, a Academia concedeu-lhe o Óscar de Melhor Ator pelo papel de Lester Burnham, em "Beleza Americana".
Em Hollywood, o ator não é o único a enfrentar acusações de abuso ou agressão sexual: no último ano, dezenas de homens na indústria do entretenimento - e mesmo na política - têm sido denunciados por crimes de índole sexual, principalmente em resultado do nascimento do movimento #MeToo.
Uma hashtag que abriu a Caixa de Pandora
Eu também. Me too. #MeToo. A pequena expressão foi utilizada pela primeira vez há mais de 10 anos, em 2006, por Tanara Burke, na altura na rede social MySpace. A ideia era juntar mulheres que não fossem caucasianas e que tivessem sido vítimas de abuso sexual, principalmente em meios desfavorecidos.
A expressão voltou à ribalta - de vez - a 15 de outubro 2017, através de um tweet da atriz Alyssa Milano, no qual pedia a todas as mulheres que tivessem sido agredidas sexualmente que respondessem com um #MeToo. A própria deu o exemplo, tweetando #MeToo.
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No final desse mesmo dia, a expressão tinha sido utilizada 200 mil vezes. No dia seguinte, o número subiu para 500 mil. Este foi o início de um movimento que já envolveu dezenas de milhares de pessoas: mulheres, homens, anónimos e celebridades.
Além das vítimas, houve também agressores a admitirem ter tido, em algum ponto da sua vida, comportamentos impróprios. Os que se mostraram arrependidos começaram a usar a expressão #HowIWillChange (como vou mudar).
Gwyneth Paltrow, Ashley Judd, Jennifer Lawrence e Uma Thurman foram algumas das atrizes de Hollywood que admitiram ter sido atacadas, mas da indústria cinematográfica não chegavam só vítimas. Precisamente em outubro de 2017, o nome de Harvey Weinstein, um proeminente produtor da indústria cinematográfica norte-americana, era associado pelo New York Times a dezenas de denúncias de abuso, agressão sexual e até mesmo de violação.
As consequências não se fizeram esperar: Weinstein foi despedido da sua produtora, suspenso pela British Academy of Film and Television Arts (BAFTA), expulso da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, demitido da Directors Guild of America, abandonado pela mulher, Georgina Chapman, e denunciado por importantes políticos que tinha apoiado.
Em maio de 2018, a polícia de Nova Iorque acusou formalmente Weinstein de "violação, crime de ato sexual, má conduta e abuso sexual em incidentes com duas mulheres". Nesse mesmo dia, entregou-se às autoridades.
Weinstein foi depois libertado - mediante o pagamento de uma fiança de meio milhão de dólares -, entregou o seu passaporte, foi obrigado a usar pulseira eletrónica e proibido de abandonar as áreas de Nova Iorque e do Connecticut. Segundo o seu advogado, Benjamin Brafman, Weinstein vai continuar a declarar-se inocente.
Quanto a Kevin Spacey, a batalha jurídica só agora começa. E como diria a sua personagem Frank Underwood: "Para aqueles que de entre nós chegaram ao topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só existe uma regra: caçar ou ser caçado."
Uma coisa é certa: vai ser um papel difícil mesmo para um ator aclamado.