Vinte anos após a transição da administração portuguesa para a China, Macau é a capital mundial do jogo e ainda um mar de oportunidades. Mas os problemas já bateram à porta e não precisam de licença de Hong Kong para entrar.
Corpo do artigo
O general Garcia Leandro foi o primeiro governador de Macau, após a revolução de 25 de abril de 1974. Governou o território entre 1974 e 1979. Faz questão de rejeitar um certo revisionismo da história macaense: "verdadeiramente, a história de Macau não começou em 2000 ou em 1999, vem de trás. O que nós deixámos à China já foi uma joia em termos de capacidade, infraestruturas e prestação de serviços. Naqueles últimos vinte e cinco anos, fez-se muito". Depois, já sob administração chinesa, Macau, que ainda conserva o estatuto orgânico do tempo português, cresceu e fez-se à vida. E ao jogo. Na altura, eram meia-dúzia de casinos, hoje são 35. Geridos por empresas chinesas e americanas. Há muito que o território do Rio das Pérolas ultrapassou a norte-americana e californiana Las Vegas como Meca do jogo no mundo.
Ilídio de Ayala Serôdio, empresário da Profabril, empresa de engenharia há 40 anos com obras em Macau, destaca a profunda mudança "num sítio que tinha uma vivência tradicional chinesa, passou para um mundo de jogo. Trinta e cinco milhões de pessoas visitam Macau todos os anos e cada uma deixa, em média, mil euros nos casinos do território. O governo de Macau cobra 35% das receitas do jogo, o que dá uma quantidade de dinheiro enorme" para obras como o aeroporto, hospital, uma série de investimentos só possíveis devido às receitas do jogo, afirma o presidente do conselho de gestão do grupo que esteve envolvido na construção do aeroporto de Macau.
Pedro Cortés, advogado a viver no território da RAEM há quase duas décadas (Região Administrativa Especial de Macau), admite que, apesar das dores de crescimento, "vive-se bem em Macau". Reconhece que há "muitos mais problema do que tínhamos anteriormente", sendo "o custo de vida para as pessoas que vão de cá para lá é muito elevado, viver numa casa em Macau em 2002 quando cheguei era uma coisa relativamente barata e, hoje em dia, os preços da habitação são superiores aos praticados em Lisboa". Mas, refere, "a verdade é que se continua a viver bem". Macau continua a ser "um mar de oportunidades", para além de constituir "uma porta de entrada para a República Popular da China".
A defesa do património português
Chegar a Macau é dar de caras com marcas do legado português, desde logo as placas de sinalética urbana, espalhadas pela cidade-capital de território. Cortés afirma que o respeito pelo património, nomeadamente religioso, deixado pelos portugueses, da Igreja de São Domingos ao Teatro D. Pedro V, "é uma preocupação essencialmente chinesa". Quem o tem mantido desde 1999 "é o governo de Macau, na sua maioria, cerca de 95% com chineses". O advogado não tem dúvidas: "os chineses têm mantido o legado português, se calhar até mais do que nós, portugueses, o fizemos".
Veja aqui o debate "20 anos da passagem de Macau" na íntegra:
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2019/12/debate_tsf_macau_v2_20191219120616/hls/video.m3u8
Fala-se mais português hoje em Macau do que em 1999. As autoridades chinesas compreenderam rapidamente o potencial do português, para o relacionamento com países como o Brasil e Angola. Pedro Cortés recorda que, hoje em dia, muitas "universidades chinesas ensinam português" e não apenas no território macaense, mas também na chamada China continental. O domínio do português ainda é um fator diferenciador para uma carreira na função pública, por exemplo, nomeadamente no setor judicial. O advogado que foi um dos participantes no debate promovido pela TSF e pela Plataforma (site noticioso em português, mandarim e inglês do Global Media Group) considera que "tudo isso foi protegido, divulgado e promovido pela República Popular da China e concretamente, pelo governo de Macau".
Reforço das ligações aéreas?
O reforço da cooperação entre Portugal e o território, logo, também com a República Popular da China, "passará" pelo reforço das ligações aéreas entre Lisboa e Macau, assume o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva: "esse é um dos compromissos que nós firmámos no memorando de entendimento com a República Popular da China que celebrámos no ano passado aqui em Lisboa, no ano passado. O incremento das ligações aéreas e das ligações aéreas diretas que está prevista; há já uma ligação aérea, mas se houver mais, melhor, até porque Portugal é um país que não desconhece que o seu principal setor económico de exportação é o das viagens e do turismo, toda a gente saber quão instrumental é uma ligação aérea para o fomento do turismo e toda a gente sabe que a China tem quase 1,5 mil milhões de pessoas e, na última vintena de anos, aumentou a sua classe média em centenas de milhões". Mas ao desejo e compromisso políticos, o empresário Ilídio Serôdio, no debate promovido pela TSF, acrescenta uma nota de realismo: "já houve, como sabe, a TAP teve essa ligação mas não conseguia encher os aviões. Os voos vêm cheios é da China para Macau e hoje há também voos de e para Singapura, Tailândia, Filipinas e Taiwan. Mas para a Europa não há voos. Não há atrativo para encher aviões para ir para lá".
Serôdio afirma que a economia macaense se expandiu "para todo o lado" além do jogo, mas todos concordam que o território que esteve sob administração portuguesa até dezembro de 1999, tem um problema de falta de diversificação da economia. Garcia Leandro chama a atenção para o problema das saídas profissionais em Macau: "com a economia completamente concentrada no jogo, qual é o futuro? Ir para um hotel ou ir para o jogo. É um problema grave". Quem lá está profissionalmente, já o sente, assume Pedro Cortés: "qualquer pessoa que não queira estudar na universidade, pode ir dar cartas para um casino e ter um salário razoável. Depois, estamos a falar de 1,6% de desemprego", ou seja, praticamente zero.
Efeito de contágio de Hong Kong
Há ou não impacto dos acontecimentos de Hong Kong em Macau? O advogado admite que a crise no antigo protetorado britânico tem impacto evidente no quotidiano de Macau: "costumava ir quase todos os fins de semana a Hong Kong e agora não vou. Tenho um filho pequeno e ir passear com ele para uma zona que está quase em guerra urbana, é algo que não deixa nada satisfeito. Vamos ter algum efeito na economia que muitos dos turistas que vêm são pessoas que vêm de Hong Kong, vai refletir-se nos serviços e numa quantidade de coisas, no nosso próprio escritório já tivemos um decréscimo nos pedidos de prestação de serviços jurídicos, na sequência destes seis meses de instabilidade em Hong Kong". Para o primeiro governador de Macau no Portugal democrático, o "efeito de contágio pode existir teoricamente", mas não na realidade. Garcia Leandro admite que "há ali um problema comum, independentemente da massa crítica ser completamente diferente (não podemos comparar já que a força de Hong Kong é muito maior), que é o problema da habitação. Há uma especulação imobiliária brutal e os governos ainda não resolveram isso. As receitas que o governo tem do jogo, dava para resolver o problema da habitação, até nos bairros sociais. Mesmo os europeus que vão daqui para lá, muitos de colarinho branco, marido e mulher com empregos", têm dificuldade em suportar os custos da habitação em Macau. É usual um apartamento T1 chegar aos 1500 ou 2 mil euros mensais. Leandro identifica o problema da habitação como aquele que leva o problema de Hong Kong além do mero protesto estudantil. Mas também entende que os estudantes levaram os protestos "longe demais". Para o general, o mimetismo na forma como decorrem os protestos em vários pontos do mundo, parece mostrar que "tem de haver uma mãozinha a empurrar" por detrás.
Portugal, Macau e a China
O que é que Macau conta hoje para as relações de Portugal com a China? Responde Garcia Leandro: "não conta nada, na História nunca contou nada". Um general, um advogado e um empresário conhecedores de Macau, no debate promovido pela TSF e Plataforma Média.com, para assinalar os vinte anos da transição de Macau.