México elegeu magistrados em processo inédito, com participação reduzida e dúvidas sobre a autonomia do poder judicial
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Milhares de mexicanos foram às urnas no último domingo para escolher quase 2700 autoridades federais e locais nas primeiras eleições para o poder judicial da história. Embora países como os Estados Unidos e Bolívia adotem um sistema parecido, somente no México o voto popular foi aplicado para todas as instâncias.
Às 11h30, no fuso horário local, 79.931 zonas de votação já estavam em funcionamento. Durante a manhã, a presidente Claudia Sheinbaum deixou o Palácio Nacional em direção à secção eleitoral instalada no Museu de Arte do Departamento do Tesouro. Ela foi uma das primeiras a depositar o voto na urna. Ao deixar o local, ergueu o punho para a multidão aos gritos de “Vida longa à democracia!”.
Entre os 7700 candidatos, serão eleitos nove ministros para a Suprema Corte de Justiça da Nação, dois magistrados para a Sala Superior do Tribunal Eleitoral, quinze regionais do Tribunal Eleitoral, 386 juízes de distrito, 464 de circuito e cinco para o Tribunal de Disciplina Judicial, órgão criado para fiscalizar o desempenho dos juízes, magistrados e ministros.
A votação aconteceu após uma reforma judicial iniciada durante o mandato do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador e continuada pela atual presidente Claudia Sheinbaum. Segundo ambos, o principal objetivo é combater o nepotismo e a corrupção no judicial.
Apesar de ser considerado um processo totalmente democrático, a falta de informações sobre os candidatos durante a campanha e os seis cartões diferentes para votar levantaram muitas dúvidas em relação ao resultado da eleição. Opositores da iniciativa argumentaram questões como a possibilidade de serem eleitos figuras ligadas ao narcotráfico, além de críticas sobre o risco de politização da Justiça e o fim da imparcialidade nas decisões.
População dividida
A TSF encontrou a Praça da Constituição, na Cidade do México, tomada por tendas instaladas por movimentos sociais e sindicatos de todo o país. Essas organizações mantiveram-se acampadas em frente ao Palácio Nacional, local onde a presidente Claudia Sheinbaum exerce funções desde o início da semana.
Segundo Agustín Vargas López, secretário-geral de uma das delegações ligadas ao Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação (SNTE), o país passa por uma transformação importante e sem precedentes na história, mas, de acordo com ele, as decisões para essas eleições foram tomadas sem participação popular.
"Quem será responsável por validar o processo eleitoral? Porque, normalmente, quando essa tarefa é realizada por partidos políticos, cada candidato tem um representante na mesa de votação, o que não foi o caso. Isso é complicado. Existem muitas incertezas. Não é que sejamos contrários às eleições, não somos, mas há dúvidas existentes", destacou.
Enrique González, advogado pela Universidade Autónoma de San Luis Potosí e doutor em Ciência Política pela Universidade Autónoma de Zacatecas, disse que essas eleições representam um avanço democrático para o México, um país onde o judicial é caracterizado pela corrupção.
“É um grande desafio. Estamos numa fase interessante, tentando criar processos saudáveis e eficazes para levar ao poder aqueles que o povo decidir. Não é fácil, mas é necessário após anos de um antigo regime que endureceu a política nacional ao ponto de cometer crimes contra a humanidade e fraude especializada em eleições”, explicou.
Segundo o magistrado, que também foi reitor da Universidade Autónoma de Guerrero, a ‘Quarta Transformação’, como é conhecido o atual governo, possui um alto nível de aceitação, já que a desigualdade entre os mexicanos foi aprofundada sob o neoliberalismo. “E muitos juízes contribuíram para isso ao favorecerem os acumuladores de bens públicos, decretando sentenças escandalosas que os protegem”, avaliou.
Enrique acrescenta ainda que a essência da autoridade jurisdicional reside na imparcialidade. Contudo, isso não diminui a qualidade do juiz como ser humano, reconhecendo a sua condição de falibilidade. Em relação às críticas dos opositores, ele reconhece a existência de candidatos com ficha criminal suja como acontece em qualquer eleição.
“Realmente pode acontecer, e esse é o perigo de um processo democrático como a eleição judicial. O Morena e todo o novo governo enfrentam o dilema de buscar uma purificação ou, infelizmente, acabar como o Partido da Revolução Democrática [centro-esquerda], onde López Obrador também foi militante antes de ingressar para a sua atual legenda.”
O dia de votação
A TSF visitou um dos colégios eleitorais no centro da Cidade do México para conversar com Arturo Sánchez, advogado que também foi responsável pela organização das secções de votação. De acordo com ele, a eleição para o poder judicial é uma chance real de o país manter a estabilidade e a paz social.
“Neste domingo, as pessoas vão ter o poder de decidir quais serão os representantes que farão justiça neste país. Depois que eu terminar meu trabalho, também farei a minha obrigação como cidadão, conforme previsto no artigo 36 da nossa Constituição”, disse ao afirmar que a expectativa era receber, pelo menos, 10% do cadastro eleitoral presente na lista nominal da secção em que trabalhava.
O tempo médio para cada eleitor preencher as seis cédulas durou entre 10 e 15 minutos. Foi o caso de Carlos Andrade, que aos 70 anos fez questão de comparecer para exercer o seu direito ao voto, que não é obrigatório no México.
“Acho que é muito importante renovar todo o judicial do país. O processo foi complexo e com dificuldades, mas, mais do que tudo, foi necessário votar porque, desde sempre, lidamos com um aparato corrupto e pessoas envolvidas com esquemas não queriam que isso acontecesse. Está fluindo bem e penso que teremos uma boa votação”, disse.
Daniela Vivar, de 29 anos, também se preparou para votar. A caminho do colégio eleitoral, a rececionista conversou com a reportagem sobre as suas expectativas para o futuro. Ela conta que para alguns, a escolha dos candidatos pode ter sido dificultosa, pois não houve apoio e investimento do governo para campanhas. Muitos concorrentes tiveram que investir tempo nas redes sociais ou pedir ajuda à família.
“Mas também acho que foi positivo o governo evitar investir dinheiro desnecessário. É papel do candidato se tornar conhecido. Durante esses meses, muitos distribuíram panfletos, boletins informativos e participaram dos meios de comunicação. Quem estava interessado em votar, poderia pesquisar e encontrar as melhores propostas conforme a sua visão”, esclareceu.
Ela lembra ainda que, historicamente, os homens são mais ativos nos processos eleitorais e que essa seria uma oportunidade das mulheres reverem essa realidade. “Em geral, a população confia mais nas juízas do que em juízes. Como houve aumento no número de candidatas, esperamos que as mulheres se sintam mais inclinadas a votar. Amanhã saberemos.”
Contagem e resultados
Após o fecho das secções eleitorais, às 18h00 (hora local), a conselheira do Instituto Nacional Eleitoral, Carla Humphrey Jordan, informou que aproximadamente 99,98% das secções aprovadas pelos conselhos distritais foram devidamente instaladas. Os resultados finais serão ratificados e divulgados no dia 15 de junho.
Devido à ausência de recursos financeiros, o INE esclareceu que não poderia implementar o Programa de Resultados Eleitorais Preliminares nem realizar contagens com rapidez, como ocorre nas eleições convencionais do México.
A respeito dos incidentes reportados, a autoridade eleitoral esclareceu que foram registadas 1770 ocorrências relacionadas ao andamento do processo. Destas, 500 estavam vinculadas a interferências injustificadas no curso regular das eleições. Outras 313 referiram-se à alteração do local do posto de votação, 236 estavam relacionadas à ausência de funcionários nas mesas de votação e 208 envolveram a suspensão de secções eleitorais devido às más condições climáticas. Em relação à presença de propaganda eleitoral dentro das zonas, foram registadas 144 situações.
De acordo com a autoridade mexicana, 80,4% dos incidentes foram resolvidos de forma satisfatória durante o dia.
Ao término das eleições, o INE ressaltou que este domingo foi um "exercício sem precedentes de transparência e ampla divulgação", com a autoridade eleitoral transmitindo ao vivo as apurações referentes aos diferentes cargos do poder judicial, disponibilizando aos cidadãos um link de acesso facilitado. Destacaram ainda que os 300 conselhos distritais espalhados pelo território nacional podem acompanhar o progresso das sessões de informática por meio de qualquer dispositivo móvel.
As eleições foram consideradas "um êxito", afirmou a líder Claudia Sheinbaum, apesar da elevada abstenção. Aproximadamente 12,5% a 13,3% dos 100 milhões de cidadãos aptos a votar participaram nas eleições, conforme divulgado pelo Instituto Nacional Eleitoral.
Esse percentual equivale a quase 20% do total de votos registados na eleição presidencial de 2024, conquistada pela atual presidente do país.
A votação não estabelecia uma taxa mínima de participação para sua validação.
