Biógrafo de Gurion e Peres, ex-deputado, professor de História, coautor de Não Há Missões Impossíveis, diz que é preciso acabar com o Hamas cuja mentalidade Israel não entende, mas admite "arrogância israelita".
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Michael Bar-Zohar, israelita, é um dos maiores especialistas em espionagem e biógrafo oficial de Ben Gurion e de Shimon Peres. Foi membro do Knesset, o parlamento israelita e representante do país no Conselho da Europa. Coautor do livro Não Há Missões Impossíveis, sobre as grandes operações das forças especiais israelitas (e agora publicado em Portugal), este Professor de Ciência Política e História na Universidade de Haifa, na entrevista à TSF, saudou a trégua que então estava a permitir a libertação de reféns mas não tinha dúvidas: Israel iria voltar à ofensiva porque precisa de acabar com o Hamas
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Não pensa que com o modelo de troca de reféns por prisioneiros, cada vez que um grupo de prisioneiros chegava à Cisjordânia ocupada, isso de alguma forma aumentava a popularidade do Hamas?
Não acredito que Israel possa parar a operação militar. Você não gostaria de ter alguém que o quisesse matar, e declarasse isso abertamente, a cerca de 400 metros da sua fronteira, das vossas cidades e aldeias. Portanto, o objetivo de Israel é destruir o Hamas, que é uma organização terrorista. Mas diga-me, diga-me, se queremos realmente recuperar os nossos reféns, e estamos dispostos a pagar qualquer preço, o que é que podemos fazer se não for a troca de reféns por prisioneiros? Mulheres, crianças, os bebés, têm lá um bebé de nove meses. Recebemos de volta uma criança de dois anos e outra de quatro. Podemos deixá-las lá a apodrecer com o Hamas? Estamos a pagar um preço muito alto. E sabemos, como você disse, que isso certamente aumentará a popularidade do Hamas na Cisjordânia, em Gaza, mas é esse o preço que estamos a pagar.
E esse preço inclui pôr em perigo o objetivo de retirar o Hamas do poder em Gaza?
Acho que não porque existe uma espécie de consenso nacional, consenso do Exército e do governo. A nossa convicção é sólida de que devemos seguir em frente e lutar, a fim de obter o maior número possível dos nossos reféns. Penso também que devemos fazer todos os esforços possíveis para não provocar danos aos civis. É por isso que lhes oferecemos que se deslocassem do norte para o sul, para não ficarem na linha de fogo, porque é muito, muito difícil levar a cabo uma operação militar num local repleto de civis. O problema é que o Hamas, na verdade, usa os civis como escudos humanos em todos os lugares. Sabe, pouco antes da trégua começar, as forças israelitas ocuparam uma escola e nessa escola encontraram armas e Kalashnikov, e minas e explosivos, que eles usavam como fortaleza. É muito, muito difícil. E sei que o preço que os civis estão a pagar por esta guerra é muito, muito elevado. E temos de fazer todos os esforços possíveis para minimizar o número de vítimas entre a população civil.
Em relação ao seu livro Nenhuma Missão é Impossível coescrito com Nissim Mishal, sobre as mais espetaculares, corajosas, heroicas ou ansiosas, digamos, operações das Forças Especiais Israelitas, pergunto-lhe se é um livro como este, ou mais amplamente uma memória que existe no país das operações militares do passado que pode ter influenciado ou impulsionado uma operação tão grande como esta que está a ser realizada em Gaza ?
Desta vez não, desta vez a reação foi ao massacre pelo Hamas de todas estas pessoas, 1200 pessoas nos Kibbutz e nas aldeias no sul de Israel, que foi algo tão atroz, tão terrível, que criou um sentimento terrível. Em primeiro lugar raiva, e, em segundo lugar, um modo de pensar novo. Porque todos nós sonhávamos um dia ter paz com o povo de Gaza. Foi por isso que evacuámos Gaza, há 20 anos. E pela primeira vez percebemos que não podemos continuar a viver assim e sendo atacados desta forma bárbara. E, além disso, não mencionei os lançamentos diários de foguetes contra nós, vindos de Gaza, sem qualquer motivo. E acreditem, temos um campo enorme de paz, um movimento de paz com os palestinianos. Mas depois temos estes tipos que matam e decapitam bebés à frente das suas mães e mulheres! Estes tipos não são parceiros para a paz, o porta-voz deles diz que o farão de novo. Portanto, desta vez, Israel sentiu que não tinha outra escolha senão lutar contra o Hamas até ao seu fim.
Mas, para evitar a destruição do território e para evitar a catástrofe humanitária em Gaza, Israel não poderia ter feito antes uma operação especial apenas para eliminar a liderança do Hamas em Gaza ou até em Doha, como fizeram com os reféns no Uganda, esse episódio tão famoso que conta no primeiro capítulo do livro?
Sim, sim, isso foi em Entebbe. Mas aí todos os reféns estavam num só lugar, certo? Fomos lá, lutámos e retirámos os reféns. Agora você tem pessoas escondidas em túneis subterrâneos. Existem pelo menos 500 quilómetros de túneis e prisões subterrâneas, não sabemos quem são as pessoas. Não sabemos quem são os reféns, não sabemos onde estão os líderes. Então é necessária uma operação militar, que leva muito tempo, muito tempo para chegar a todas essas pessoas. Adorávamos poder tê-lo feito com uma operação cirúrgica e não tocar em mais ninguém.
E então com esse tipo de ambiente dentro de Gaza com os túneis, como mencionou, teme que ainda possa produzir enormes perdas militares para as Forças de Defesa de Israel?
Até agora, não tivemos muitas pessoas mortas, creio que menos de 100. Cada um deles é, claro, uma tragédia para ele, sua família e para toda a nação de Israel. Mas é possível que ainda tenhamos perdas nesta luta. Mas o que podemos fazer? O problema é que não temos outra opção.
O que é que falhou nos serviços de informações de Israel a sete de outubro?
Posso dizer-lhe que houve três razões. Uma delas foi a arrogância. Pensámos que éramos imbatíveis. O segundo foi o conceito. Construímos este muro entre nós em Gaza. E que era tecnicamente e cientificamente maravilhoso. Mas eles foram lá e destruíram-no em cinco minutos. Então o conceito era tão que enquanto tivéssemos este longo muro, eles não atacariam por nenhum motivo. E além disso, trabalharam muito bem ao acalmar as nossas suspeitas. Por exemplo, aumentámos o número de trabalhadores de Gaza que estão autorizados a ir a Israel todas as manhãs para trabalhar. Antes eram 18.000 e apenas cerca de um mês antes do ataque, aumentámos para 20.000. Ou seja, mais 2.000. Mais 2.000 famílias viverão melhor agora porque o marido ou filho estava em Israel. E temos certeza de que é isso que o Hamas quer. E isso leva-me ao terceiro ponto: não soubemos entender a mentalidade do Hamas. Neste mundo multicultural que temos, as pessoas dizem "bem, afinal somos todos iguais. Tudo o que queremos é, sabe, um bom emprego, uma boa casa, uma boa família, uma boa escola para as crianças e bons cuidados médicos para todos. Nós queremos em Israel esse tipo de vida agradável, certamente o povo de Gaza, e o Hamas, quer o mesmo. Não, eles não querem isso. O que eles querem é matar-nos, é o sonho que têm. Quando entraram em Israel no dia 7 de outubro, os comandantes deles ficaram nas fronteiras e disseram a cada um deles: Não te esqueças, vais tornar-te um mártir do Islão, irá direto para o céu. O Hamas é uma organização política, mas também religiosa. E eles acreditam firmemente que o martírio para o Islão é a coisa mais bonita que lhe pode acontecer. Portanto, há duas mentalidades que se chocam. Não compreendemos que eles não queriam apenas viver bem em Gaza. Eles queriam matar-nos, destruir-nos. Essas são as três razões pelas quais, quer saber, tínhamos todas as informações, toda a inteligência sobre o que eles planeavam, mas não acreditávamos. Pela nossa arrogância, porque era contra o nosso conceito e porque não entendemos a mentalidade do Hamas, tudo isso custou aquele ataque.
Quem pagará essa fatura, politicamente falando?
Acredito principalmente que os serviços de informações e os serviços secretos depois da guerra. Há também, é claro, a liderança política. Mas foram principalmente o que os líderes da inteligência e os líderes do Exército que não perceberam. E agora, com o passar do tempo, ainda hoje recebemos mais informações sobre oficiais e soldados que previram o que ia acontecer. Relataram isso aos seus superiores, disseram que algo estava para acontecer em Gaza. Vimo-los a prepararem-se, tiravam fotografias, as pick-ups deles demasiado perto do muro, eles estavam a preparar alguma coisa. E o oficial do exército disse: "Bem, isso é fantasia. Eles são incapazes. Eu falei sobre a arrogância, certo? É isso. E eles não acreditaram. Ainda hoje, recebemos a informação de uma mulher que trabalhava na unidade 8200, que é a melhor unidade de escuta do mundo, chegou aos oficiais dela e disse: aqui está, estão a preparar-se para atacar Israel, para passar pelo Muro, desarmar os Kibbutz e matar toda gente, tudo, tudo. E eles disseram, "é um trabalho muito bom. Mas isso é fantasia. Eles nunca serão capazes de fazer isso. E eles não têm razão para isso, nós demos-lhes mais 2.000 autorizações a pessoas para trabalhar em Israel, eles vão ficar quietos e pacíficos. Foi um mau entendimento total da situação. Sabe o que isso me lembra muito? O que aconteceu há exatamente 50 anos, com a Guerra do Yom Kippur. A mesma coisa, a mesma arrogância, o mesmo mau entendimento do rival e da situação. A mesma coisa.
Mas a mentalidade palestiniana não poderia ser diferente se não houvesse uma ocupação de Gaza e da Cisjordânia? Ou o cerco de Gaza e a ocupação da Cisjordânia?
Mais uma vez, Gaza foi libertada, em 2005. Com uma evacuação completa. E o meu amigo Shimon Peres, o primeiro-ministro e presidente, costumava dizer: agora Gaza está livre, pode tornar-se uma nova Singapura. E em vez de se desenvolver, com aquelas lindas praias, eles poderiam desenvolver o turismo também. Mas, em vez de fazer isso, eles começaram a disparar contra nós logo na primeira noite. Porquê? Nenhuma razão. Começaram a disparar, porque essa era a convicção deles. E quando você lê o que o Hamas disse e decide durante todos esses anos, o tempo todo, eles sempre disseram a mesma coisa: matar israelitas. Eles nunca aceitaram, mesmo por escrito ou em proclamação, que fariam a paz com Israel, nenhuma paz. A única coisa que eles estão dispostos a aceitar é como eles chamam uma trégua temporária. Foi por um tempo, um ano, dois anos, cinco anos. E eles queriam fazer isso, entrar em Israel e matar-nos, pelos túneis que tinham, eles cavaram cerca de 38 túneis, que iam de Gaza a Israel, por baixo do muro. Queriam fazer pelos túneis aquilo que fizeram agora. Mas em 2014 descobrimos estas valas e destruímo-las. Então eles decidiram que a operação seria feita por terra em vez de por túneis, destruíram a vedação e conseguiram isso. E entraram e nós não estávamos preparados. Não havia ninguém. Havia muito poucas unidades do exército. Muitos soldados dormiam nas camas nas camaratas porque a situação era completamente pacífica. E o Hamas preparou muito bem a sua operação. Acreditámos que tínhamos paz. E um dos nossos líderes, o chefe do Conselho de Segurança Nacional, disse: vamos ter uma trégua com o povo palestiniano de Gaza durante 15 anos, enquanto na verdade eles preparavam-se.
Esse dirigente já pediu a demissão?
Não, no momento, ele apenas admitiu. Apareceu na televisão e disse: eu cometi o erro. Ele é um homem muito bom. Mas sabe, toda a gente pensava como ele. Toda a gente vê sempre o seu rival, como se vê no espelho, é uma imagem espelhada. Mas não, isso não é assim, eles não têm a mesma lógica.
Portanto, ao contrário do título do seu livro, alcançar a paz com os palestinianos e a solução de dois Estados, é uma missão impossível...
Sim, veja, acredito que podemos ter uma solução parcial, mas não podemos obter a paz.
O que é uma solução parcial?
Uma solução parcial, na minha opinião, estaria na Cisjordânia, para nós decidirmos, quais são exatamente os pontos que temos que manter em qualquer acordo de paz, garantir esses pontos e deixar todo o resto para os palestinos fazerem o que quiserem. Se eles quiserem criar um estado, ou quiserem fazer uma confederação com a Jordânia, tudo bem, mas temos de nos divorciar dos palestinianos, mesmo que eles não queiram a paz oficial connosco, como os jordanos, e os egípcios, e os Emirados e Marrocos e todos estes países árabes, se não quiserem fazer a paz, então deixemo-los, vamos divorciar-nos. Temos de terminar esta guerra em Gaza e temos que entregar Gaza a uma organização árabe, a uma coligação de nações árabes, às Nações Unidas, não precisamos envolver-nos no governo de Gaza. Não queremos a Faixa de Gaza. Até mesmo David Ben Gurion, o homem que fundou o Estado de Israel, quando atacámos o Egito em 29 de outubro de 1956, foi há quase setenta anos. E ele disse ao governo: "temos que tomar Gaza. Não a queremos mas temos de a tomar. Mas se eu acredito em milagres, vou orar a Deus para que uma onda enorme venha do oceano e leve Gaza inteira.
Gaza é o que se pode chamar de ninho de vespas. Nós não queremos isso. Infelizmente, quando se fez a paz com o Egito em 1977, entre o Primeiro-Ministro Begin e o presidente Sadat, Begin disse: "Gaza faz parte da terra histórica de Israel. Então não queremos entregá-la. Aquilo foi um grande erro. Se o Egito tivesse ficado com Gaza, teríamos hoje um mundo diferente.