É a análise feita pelo diretor do Observare à TSF. Na data em que se assinala os mil dias de conflito, Luís Tomé aborda as mudanças na Europa, as relações políticas da Rússia e deixa uma análise: a NATO pode usar Trump como desculpa para justificar a ausência daquilo "que já devia ter feito"
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Esta terça-feira, 19 de novembro, assinalam-se mil dias do início da guerra na Ucrânia. O conflito às portas da Europa iniciou-se a uma quinta-feira, a 24 de fevereiro de 2022. As tropas russas atacaram várias cidades do país vizinho com mísseis de longo alcance e entraram no território com a intenção de conquistar regiões ucranianas.
Mil dias depois, o ataque continua a ser criticado por vários líderes europeus e mundiais, como a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e o Presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden. No domingo, dia 17 de novembro, este país norte-americano foi notícia por ter autorizado a Ucrânia a usar mísseis de longo em operações cujo alvo está no território russo. Estes mísseis são produzidos pelos próprios Estados Unidos. Seguiu-se, na segunda-feira, a mesma autorização por parte da França e do Reino Unido.
A TSF conversou com Luís Tomé, professor e diretor do Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma (Observare), sobre este assunto. Para o investigador, "estes mil dias aceleraram uma série de transformações no sistema internacional”.
Desde a expulsão da Rússia e da sua satélite Bielorrússia do Conselho da Europa, ao fim da parceria estratégica que, apesar de tudo, havia entre a Rússia e a NATO, e também da União Europeia com a Rússia, que acabou - até ver - com a grande dependência que existia da maioria dos países da União Europeia face à energia proveniente da Rússia.
Novas fronteiras, o afastamento da Europa e a aproximação da Rússia
Definitivamente, as novas fronteiras entre a nossa Europa e a Rússia vão até e incluem a Ucrânia e os países do Cáucaso do Sul, afirma Luís Tomé.
Se do lado europeu houve uma separação da Rússia, o professor universitário realça a aproximação de Moscovo a países "autocratas", em particular a China. "Há um esforço significativo dos laços entre estas duas grandes autocracias que vai ser muito difícil alterar nos próximos tempos."
Luís Tomé destaca ainda a aproximação de Kremlin à Coreia do Norte, “de quem tem estado a receber uma série de munições e agora, mais recentemente, forças armadas”, e ao Irão, “de quem [a Rússia] tem estado a receber drones”.
“As tensões e as ramificações decorrentes da guerra na Ucrânia, nestes últimos mil dias, estendem-se por todo o panorama da geopolítica mundial e da segurança Internacional”, conclui o investigador.
Donald Trump e os dois cavalos de Troia da NATO. “Temo que uma parte dos países europeus venham a utilizar a desculpa Trump para não fazerem aquilo que já deveriam ter feito”
O diretor da Observare considera ainda que a NATO está “expectante” devido à eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. O republicano tomará posse a 20 de janeiro de 2025.
“Estamos à espera de perceber as consequências que a nova administração de Trump, recentemente eleita, traz para este conflito. Agora, é evidente que a NATO está hoje menos coesa do que estava nos primeiros tempos pós-invasão russa da Ucrânia.”
Porém, o professor universitário aponta este declínio da Aliança Atlântica não à eleição de Trump, mas "sobretudo a dois cavalos de Troia", que são a Hungria e a Turquia, cujos líderes nacionais são, respetivamente, Viktor Orbán e Recep Erdoğan. “A Turquia nunca aplicou sanções. Erdoğan tem dito repetidamente que não quer mais sanções à Rússia. Não vale a pena pensarmos que os maus, que venham porventura a existir no enfraquecimento da coesão na Aliança Atlântica, resultam exclusivamente da administração de Trump.”
“Eu devo dizer que temo que uma parte dos países europeus venham a utilizar a desculpa Trump para não fazerem aquilo que já deveriam ter feito e não fazerem mais, do ponto de vista da autonomia estratégica europeia, do investimento e, sobretudo, gastar melhor na Defesa”, sublinha.
Luís Tomé acredita que, por trás da decisão do atual Presidente norte-americano de dar “luz verde” a Kiev para usar os seus mísseis de longo alcance, está a relação russa e norte-coreana, e a eleição de Donald Trump. “Todo este contexto concluiu para que, após insistentes pedidos por parte de Zelensky, finalmente a administração de Biden tenha permitido que a Ucrânia possa utilizar mísseis táticos de profundidade de alcance maior no interior do território russo.” Esta terça-feira, Moscovo acusou Kiev de disparar mísseis de longo alcance dos EUA.
Nesta fase não se afiguram ainda predisposições de ambas as partes para iniciarem essas negociações, porque ambos consideram que poderão estar em melhor posição, do ponto de vista militar, para depois politicamente negociarem um cessar-fogo e uma paz.
"Isto significa que podemos partir para negociações e a Ucrânia estar em melhores condições para discutir com a Rússia os termos desse cessar-fogo, iniciando um processo a uma paz mais geral, ou, pelo contrário, podemos estar à beira de uma intensificação grave”, analisa o investigador. “O próprio Putin tem-no ameaçado e, em setembro, numa reunião do Conselho de Segurança da Rússia, Putin verbalizou mesmo uma alteração na doutrina nuclear da Federação Russa, em que passaria a considerar a participação ou o apoio de um país nuclear à Ucrânia diretamente como um ataque conjunto contra a Federação Russa, ao qual a Rússia naturalmente poderia responder com armas nucleares.”
“Creio que isto faz parte, de uma forma que eu diria bizarra, da maior potência nuclear do mundo persuadir os Estados Unidos, em particular o conjunto NATO, que fracassou, tem falhado rotundamente em dissuadir os ucranianos", remata.
