O que a Finlândia traz à NATO e como Putin fez acontecer "o que não queria"
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Quando forem 14h30 em Lisboa, e já depois de a Turquia entregar ao secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, no quartel-general da NATO em Bruxelas, a sua carta de aceitação sobre o acesso da Finlândia à Aliança Atlântica, a bandeira nórdica vai ser hasteada. A partilhar uma fronteira de 1340 quilómetros com a Rússia, a adesão de Helsínquia significa a duplicação da extensão da fronteira da Aliança com o território da federação russa.
Desde a invasão da Ucrânia, o Governo finlandês aumentou em dois mil milhões de euros o orçamento para Defesa, permitindo às Forças Armadas do país um reforço de 1,74 mil milhões de euros em material militar, incluindo armas, bem como 163 milhões de euros em equipamento de vigilância aérea.
Atualmente, o arsenal finlandês é composto por 239 tanques de guerra, 60 mísseis ar-terra, 2685 lança mísseis antitanque e 62 aviões de caça, além de perto de 400 mil armas de assalto. Com tudo isto na mesa, o que significa afinal, tanto a nível militar como diplomático, a entrada do país na NATO? A TSF conversou com o major-general Arnaut Moreira, especialista em geopolítica, e com Ana Isabel Xavier, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) para o perceber.
A Finlândia chega à NATO já a cumprir, "do ponto vista financeiro", os compromissos com a Aliança. "Tem praticamente 2% do seu PIB em Defesa", assinala Arnaut Moreira, "isto é extraordinário".
Técnicas "praticamente únicas na NATO"
País "muito bem treinado e muito bem equipado", a grande maioria dos seus carros de combate "são Leopard 2, ou a versão A6, ou a versão A4". Herdou também "algum equipamento do tempo soviético, nomeadamente na parte da sua artilharia", mas todos os seus "grandes sistemas já são neste momento ocidentais".
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A isto junta-se uma "Força Aérea equipada com F-18" e, feitas as contas, "do ponto de vista daquilo que é sua capacidade militar", o país "não vai ser um problema para a NATO. Pelo contrário, ela tem ali junto à fronteira com a Rússia um conjunto muito importante de equipamento e está, sobretudo, muito bem treinada".
Com a Finlândia, chega também à NATO um conjunto de competências que a Aliança "até agora detinha com alguma dificuldade na área dos países bálticos e dos países nórdicos", nota Arnaut Moreira: o país "especializou-se numa guerra que tem a ver com a conjugação dos imensos lagos que tem com as múltiplas florestas que tem". A partir daí, "desenvolveu técnicas de utilização de combate em florestas que são praticamente únicas na NATO".
Importante para a NATO, o dia da entrada da Finlândia na Aliança não vai, ainda assim, deixar de marcar também a realidade russa. Comecemos, no entanto, pelo sentimento em Helsínquia, que se despede da imagem de neutralidade.
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"Depois de muitos anos em que ficou muito colada ao aspeto de uma nação neutral - mais pela sua proximidade geográfica à Federação Russa até, do que por uma questão dos seus valores, porque esteve sempre muito ligada ao ocidente -, a Finlândia adere a um sistema que lhe garante, finalmente, segurança face àquilo que tem sido o comportamento recente russo", explicou o major-general.
Já para a NATO, esta vai ser uma terça-feira de frescura e de provas de que é uma "Aliança aberta". A organização "nunca se considerou um clube fechado a terceiros e a novas adesões", mas não deixa de ser "interessante", nota, que uma Aliança que dura desde 1949 "esteja de novo revigorada e que haja e que continue a haver países que pretendem aderir". É, sublinha, "um sinal de vitalidade".
"Não deixa de ser irónico." Putin fez acontecer o que não queria
Em Moscovo o dia também será especialmente importante, mas "diferente, porque, na verdade, a Rússia tudo tem feito para combater aquilo que é a aproximação - diz a Rússia - do sistema do dispositivo NATO junto às suas fronteiras".
Será sobretudo "embaraço" o que sentirão os responsáveis do Kremlin, já que terão de "explicar internamente como é que, para impedir que a Ucrânia aderisse à NATO, conduziram um conjunto de ações que tem por resultado a adesão da Finlândia e, provavelmente, mais tarde, também da Suécia".
Ana Isabel Xavier faz a mesma leitura sobre o abandono da neutralidade finlandesa. Helsínquia primou "durante décadas por uma neutralidade histórica no que diz respeito à adesão a alianças militares, o que fez também com que mantivesse uma relação de relativo apaziguamento com a Federação Russa".
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Tudo mudou quando a Rússia atacou a Ucrânia, alterando "em absoluto esta perceção de segurança e de insegurança". Daí nasceu, assinala o "abandono total da neutralidade finlandesa" e a entrada para a NATO.
"O que nós sabemos é que a Finlândia, já há alguns anos, tinha uma preocupação muito grande com a dimensão das ameaças híbridas - da ameaça ciber em particular -, exatamente pela agressão permanente da Federação Russa nessa matéria", mas a adesão à Aliança "vai reforçar uma agenda que sobretudo os estados bálticos vinham a introduzir desde 2010: a agenda das cibercapacidades em matéria de Defesa".
A investigadora diz ser "muito provável" que a Finlândia se junte à agenda "da Estónia, da Lituânia e da Letónia - mas em particular da Estónia - nesta sinergia para perceber como é que a NATO pode ser mais capaz de responder às ameaças híbridas".
Agora a partilhar mais uma fronteira - por sinal a maior - com a Rússia, os desenvolvimentos geopolíticos dependem, sublinha Arnaut Moreira, do que a NATO fizer a seguir. O major-general não acredita que Moscovo tenha "capacidade de abrir novas frentes de combate", em especial porque as que já tem "são mais do que suficientes e já lhe dão problemas suficientes".
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"Parece-me que vai, nesta primeira fase, procurar desvalorizar isto, que é uma derrota. Do ponto de vista da política e da estratégia, é uma derrota que a Finlândia passe para a NATO." Ainda assim, a Rússia não deixará - ou terá - de estar "muito atenta àquilo que é a presença avançada da NATO na Finlândia" porque, a existir, "a Federação Russa não pode deixar de levantar forças também, para contrabalançar junto da sua fronteira com a Finlândia, a presença das forças da NATO do outro lado".
Apesar desta necessidade de dar respostas, Arnaut Moreira acredita que, neste momento, Moscovo "preferiria não ter de deslocar forças para aquela zona e que a presença avançada da NATO fosse retardada. Mas isso já não depende de si." Acima de tudo, o militar prevê um "diálogo estratégico ao longo da nova fronteira" e espera "desenvolvimentos porque uma das partes não pode deixar que a outra parte fique sem cobertura".
Qualquer ataque à Finlândia, a acontecer, será a partir desta terça-feira um ataque aos 31 Estados que compõem a NATO e isso, defende Ana Isabel Xavier, é o que mais deve preocupar Putin, já que o que líder russo não queria foi o que acabou por acontecer.
"O que eu julgo mais irónico é que, se recuarmos a 24 de fevereiro 2022, um dos argumentos que Vladimir Putin dava para invadir a Ucrânia, e até mais tarde anexar as quatro províncias do Donbass, e de Kherson e Zaporijia, era exatamente o argumento de que se sentia ameaçado pelo alargamento das fronteiras da NATO. Ora, na realidade, na altura, até dezembro de 2021, não havia nenhuma perspetiva de alargamento da NATO para a Finlândia e para a Suécia, a neutralidade histórica mantinha-se." E tudo isso acabou.
A invasão da Ucrânia, sustenta, foi "claramente o que espoletou este processo interno" que é também "absolutamente histórico", dado que "nunca nenhum aliado entrou tão rapidamente para a NATO e em tão pouco tempo de negociação", prova da "unanimidade dos 30 Estados nesse sentido".
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"Não deixa de ser irónico que, um ano e dois meses depois, estejamos a falar exatamente do alargamento da NATO, que era aquilo que Vladimir Putin não queria com invasão da Ucrânia", resume. Agora, a Rússia terá de "ter mais alerta as suas manobras na vizinhança".
Em simultâneo, os aliados da NATO vivem "uma conjuntura em que não queremos diretamente afrontar a Federação Russa", pelo que mesmo que existam manobras russas, os membros da Aliança "vão continuar a ter uma posição relativamente minimalista no diz respeito ao afrontamento direto" e uma postura política e diplomática "que ainda está muito a concorrer para a capacidade de dissuasão, mas sobretudo para a capacidade de diálogo e de resolução da questão ucraniana".
E a questão sueca?
E tudo isto podia ter acontecido ainda mais rápido. "Só não foi, por ventura, mais rápido ainda pela questão turca em relação à Suécia", diz a investigadora. E como está, precisamente, essa questão?
"O caso é efetivamente diferente", reconhece Ana Isabel Xavier, "e aí claramente que a questão principal continuar a residir na Turquia". O cerne da questão é Erdogan e o "elemento que pode ser desbloqueador da questão sueca ou, pelo contrário, pode manter este bloqueio" são as eleições no país, já no próximo mês de maio.
Erdogan quer ser reeleito e terá de avaliar o seu jogo político. Tudo depende, explica a investigadora, de o líder turco perceber "se a cedência da Suécia na NATO vai poder ser instrumentalizada para fins internos". A questão "ainda não é clara, nem na Turquia, nem fora da Turquia", mas a acontecer, "será claramente uma jogada interna de Erdogan e que lhe permitirá atingir aquilo que pretende", a reeleição.
Neste jogo pode ainda entrar o posicionamento da Finlândia e da Suécia face ao sismo que, no início do ano, atingiu a Turquia e a Síria. Os dois países nórdicos "foram os maiores doadores" e, já nessa altura, "tinham como objetivo fazer, de alguma forma, ceder a posição de Erdogan nesta matéria. No caso da Finlândia isso foi sempre muito falado nas negociações".
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Já o caso sueco continua dependente da questão curda, em que tudo o que "foi pedido do ponto de vista do direito institucional" a Estocolmo "já foi cedido".
"Há uma exigência feita pela Turquia de extradição de uma série de elementos da comunidade curda que vivem na Suécia, e a que a Suécia efetivamente não pode atender", analisa antes de explicar. "Não pode atender porque a Suécia considera que, se eles forem extraditados para a Turquia, o julgamento não vai ser justo, que não vai ser de acordo com as regras internacionais e que, muito provavelmente, essas pessoas serão arbitrariamente presas, condenadas de forma arbitrária e até, eventualmente, sentenciadas à pena de morte que, aliás, foi reintroduzida na constituição turca".
A Finlândia e a Suécia solicitaram em conjunto a adesão à NATO em maio de 2022, e procuravam a integração em simultâneo. Devido à oposição da Turquia, a anunciada adesão de Estocolmo apenas poderá ser formalizada quando estiverem resolvidas as disputas com Ancara, já que o Governo turco continua a acusar a Suécia de uma atitude demasiado branda face a grupos que define como organizações terroristas.
O parlamento húngaro também terá de ratificar o acesso da Suécia à NATO e ainda não foi anunciado quando pretende confirmar a adesão. Stoltenberg disse esta segunda-feira esperar que a Suécia se junte nos próximos meses, antes da cimeira da NATO prevista para julho na Lituânia, na presença do Presidente dos EUA Joe Biden.
