
O Brexit vai cumprir-se esta sexta-feira
Tolga Akmen/AFP
Esta noite, quando os ponteiros acertarem nas 12, a bandeira será arreada nas instituições de Bruxelas e o Reino Unido deixará de ser membro da União Europeia.
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"É tempo de olhar para a frente", dirão os que ficam. Mas, a página não será ainda virada. O dia de hoje ainda não é o "fim da estrada", no percurso britânico na União Europeia. A expressão é de Nigel Farage, o "vilão" de Bruxelas, principal rosto do Brexit no Parlamento Europeu, a instituição que abandona esta sexta-feira, ao fim de 21 anos e cinco legislaturas.
É, isso sim, tempo de "tudo reconstruir", para desenhar um acordo que possa regular a chamada relação futura entre Londres e Bruxelas. Por agora, é preciso fazer vingar o acordo de retirada, garantindo que o Brexit não atropela direitos e as liberdades subjacentes ao mercado único. E, principalmente, não põe em causa a paz na ilha da Irlanda.
Ao mesmo tempo, nos 11 meses que restam até ao final do ano, será preciso debater, negociar e concluir um acordo comercial, que possa entrar em vigor a 1 de janeiro de 2021. O tempo que resta pode ser "insuficiente" para fechar um acordo que vai regular divergências, quando o comum num acordo comercial é regular a convergência.
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Os avisos do lado europeu sucedem-se, a antecipar os percalços de uma negociação difícil de fechar, com "consequências complicadas, do ponto de vista social, humano ou financeiro, que foram sempre subestimadas". Neste caso, o aviso vem do homem que mais bem conhece os meandros das negociações do Brexit, Michel Barnier.
Agora é uma nova etapa que consiste em negociar tudo, em matéria de comércio, pescas, cooperação universitária - no caso do Erasmus, que deverá continuar aberto aos estudantes britânicos -, segurança interna, política externa, são alguns dos exemplos.
Mas há mais a fazer. Será preciso uma reflexão interna, que ajude a encontrar respostas para as causas do Brexit. No debate em que os eurodeputados cumpriram a última formalidade da retirada, o coordenador do Brexit, Guy Verhofstadt, questionou-se "como foi possível, que mais de 40 anos depois de uma enorme maioria ter votado para entrar na família europeia", tenham agora "decidido deixar o projeto europeu".
Ele próprio foi ensaiando respostas, durante a sua intervenção. Por exemplo, "o medo dos britânicos, de perderem a sua soberania", quando, para Verhofstadt, a construção europeia foi "a forma de reganhar a soberania", após as duas grandes guerras. Outra das causas possíveis para a opção pelo Brexit seriam "as migrações", quando "na verdade", os migrantes são "cidadãos europeus, como são [europeus] os cidadãos britânicos, que pagam impostos no Reino Unido, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade britânica.
Outra das razões possíveis remete para o homem que, na realidade, esteve na origem de tudo: David Cameron, o ex-primeiro-ministro, que convocou o referendo, para cumprir uma promessa eleitoral que muitos apelidaram de populista.
O sarcasmo de Verhofstadt leva-o a criticar os que lhe disseram que "não foi dado o suficiente a David Cameron, quando ele veio a Bruxelas solicitar novos regimes de exceção". Para Guy Verhofstadt, as causas do Brexit são exatamente as "exceções" concedidas principalmente ao Reino Unido. A exceção mais comummente citada em Bruxelas é o chamado "rebate britânico", através do qual Margaret Thatcher, numa negociação concluída em 1985, conseguiu que, a partir daí, o Reino Unido recuperasse uma grande fatia da sua contribuição para o orçamento comunitário.
"Foi naquela altura" que começou o Brexit, "no dia em que começámos a conceder exceções. Não foi há três anos e meio", acredita Guy Verhofstadt, para quem "a causa do descontentamento com a Europa", são "todas essas exceções". Para o ex-primeiro-ministro belga, estes regimes de diferenciação "tornaram a União Europeia incapaz de atuar de forma efetiva, agindo sempre pouco e demasiado tarde", ou seja, adaptando medidas só quando a situação se degradou, e sem resolver o problema.
É por isso que Verhofstadt considera que "o Brexit é também um fracasso da União", ao permitir que o Reino Unido "estivesse com um pé dentro e outro fora", apenas a olhar "para as vantagens, e nunca para as obrigações".
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Haverá lições a tirar, mas "não passam por desfazer a União", mas por "reformá-la profundamente", considera o federalista, que vai nos próximos anos presidir a conferência sobre o futuro da Europa, apontando pistas sobre as reformas que pretende apresentar.
"Será uma União sem "opt-out", rebates, exceções e, acima de tudo, sem regras de unanimidade e direitos de veto", defende, considerando que só assim se "pode agir e defender os valores europeus". À primeira vista, sem o parceiro eurocético sentado à mesa, pode pensar-se que será mais fácil de fazer as reformas.
Esta forma de "olhar para frente" parece carpir um passado aparentemente distante - não tivesse havido, entretanto, três governos diferentes no Reino Unido -, mas que é, na realidade, recente, quando David Cameron prometeu uma campanha a favor da permanência, em troca de novos regimes de exceção para Londres.
A União Europeia ofereceu, na altura, cortes nos apoios e benefícios para os filhos dos imigrantes no Reino Unido e retificações aos tratados, para clarificar que o requisito de estreitamento de laços entre Estados-Membros não se aplicaria ao Reino Unido. Soube-se recentemente que o plano envolvia também a promessa pessoal do então presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, de não envolver os meios de Bruxelas na campanha para o referendo. "Arrependo-me", veio a confessar Juncker, há poucos meses, num discurso de balanço do mandato.
Theresa May sentou-se aos comandos, quando Cameron abandonou o barco, mas "foi uma deceção". Às cimeiras chegava "sem uma única ideia" que permitisse perceber "o seu pensamento político", limitando-se a "ler um papel" e a permanecer "calada até ao fim da reunião". Isto dito por um membro da cúpula da União Europeia pode parecer uma inconfidência. É, porém, o desabafo fruto do cansaço, pelas inúmeras cimeiras em Bruxelas, a que a antiga primeira-ministra chegava sem resultados.
Pelo menos, este sábado, "marcará um novo amanhecer para a Europa", é a convicção do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que passou o dia de ontem, num retiro em Bazoches, França, na Casa Jean Monnet, com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o presidente do Parlamento Europeu.
É dali que esperam ter trazido o pragmatismo com que o antigo proprietário foi impulsionado a ideia de uma Europa unida. "Temos uma visão comum de para onde queremos ir e um compromisso de ser ambiciosos nas questões marcantes dos nossos tempos", anunciou já esta manhã Charles Michel. Esta pista sobre o que serão as conclusões do dia de reflexão dos três presidentes vem ainda acompanhada da vontade de "sabermos que só podemos fazer isto juntos".
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Este dia sempre pareceu distante. Tão distante que muitos acreditaram que talvez não chegasse, e o Brexit pudesse ter outro desfecho, tantos foram os adiamentos, tanta foi a indefinição e indecisão em Londres. Mas ele aí está. Dentro de poucas horas, o Reino Unido deixará de ser membro da União Europeia.
Se se concretizar o desejo de algumas dezenas de eurodeputados britânicos, o Reino Unido regressará um dia a "uma Europa reformada". Não se sabe ainda o que isso quererá exatamente significar.
Fica, porém, a mensagem com que encerraram a sessão parlamentar desta semana, simbolicamente de despedida, em que muitos contestaram o "good bye" de Nigel Farage. E, em vez do adeus de uma despedida de algo que se torna passado e se prolonga na eternidade, preferiram dizer "au revoir", que é mais um até à próxima. Outros mostraram a esperança de que a ausência seja curta, com um "a bientôt".