MNE espanhol: "A flotilha para Gaza é totalmente humanitária e pacífica. Não representa qualquer ameaça para Israel"
Numa entrevista ao programa Aqui Europa, do grupo espanhol Prestomedia, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, José Manuel Albares, destaca o papel pioneiro do país no reconhecimento do Estado palestiniano. O MNE espanhol reitera o apoio à flotilha humanitária a caminho de Gaza
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Entrevistado por Jesus González, diretor do canal Aqui Europa, Albares abre caminho para que outros Estados-membros sigam o exemplo espanhol (e português) no reconhecimento da Palestina. Classifica as incursões russas em países da UE como "uma clara provocação" e destaca a necessidade de uma resposta firme e unida perante estas violações da soberania. O governante também aborda a próxima Cimeira Ibero-Americana, que se realizará em Madrid, onde Espanha colocará o foco na transição ecológica e digital, no fortalecimento da cooperação ibero-americana e na criação de um espaço comum de conhecimento e direitos digitais.
O presidente do Governo, Pedro Sánchez, anunciou o envio de um navio militar de Cartagena para apoiar a flotilha humanitária que se dirige a Gaza. Qual é o sentido desta missão militar? Além disso, sabemos que o Governo de Itália tomou uma medida semelhante.
Estamos a falar de uma missão que é totalmente humanitária e pacífica. O seu único objetivo é entregar ajuda humanitária aos habitantes de Gaza, uma vez que Israel impôs um bloqueio total sobre a Faixa. Os membros desta missão são pessoas pacíficas e humanitárias: não representam qualquer ameaça para Israel. É claro que, desde o primeiro momento, afirmei que eles contam com toda a proteção consular e diplomática do Governo de Espanha, tanto do Ministério dos Negócios Estrangeiros como da minha parte, na qualidade de ministro. Estamos a assistir a demasiados incidentes e ataques relatados na zona e é, por isso, que decidimos enviar um navio da marinha espanhola para fazer face a qualquer possível incidente ou necessidade de resgatar alguém, ou prestar assistência aos nossos cidadãos. Há poucos dias, juntamente com outros 16 ministros dos Negócios Estrangeiros de países cujos cidadãos estão a bordo desses navios, deixámos claro que, em caso de qualquer incidente, agressão ou impedimento à livre navegação, tal como previsto no direito internacional, aqueles que cometerem esses atos terão de responder perante a justiça internacional.
No conflito de Gaza, o Governo espanhol foi um dos primeiros Estados a reconhecer o Estado palestiniano como solução para a situação. A Espanha também liderou a posição de suspender o acordo comercial entre a União Europeia e Israel. Acha que a comunidade internacional seguiu os passos da Espanha? E, dentro da União Europeia (UE), continua a haver falta de unidade?
Sem dúvida alguma, a Espanha está na liderança. No início, quando reconhecemos o Estado da Palestina, havia quem dissesse que estávamos sozinhos, mas agora está claro que não estávamos sozinhos. Fomos pioneiros, abrindo caminho, e rapidamente outros países como a Eslovénia, a Noruega e a Irlanda nos seguiram. Agora, até mesmo membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como a França ou o Reino Unido, e países europeus como Portugal, bem como outros de diferentes continentes, como o Canadá ou a Austrália, assumiram posições semelhantes.
Quanto à suspensão do acordo de associação entre Israel e a UE, a Espanha foi a primeira a solicitá-la de forma imediata e total. Hoje, já somos uma maioria de Estados-Membros que reconhecem o Estado da Palestina, o que deve ter um impacto na UE. Além disso, somos uma maioria que apoia a suspensão parcial do acordo. A Espanha gostaria que fosse total e, por isso, solicitei à Alta Representante Kaja Kallas que procedêssemos a uma votação formal para verificar se já existe uma maioria qualificada para aplicar estas sanções. Sem dúvida, Espanha é o país que mais está a fazer para deter esta violência interminável em Gaza e para que exista um Estado palestiniano realista e viável. Estamos a exercer uma liderança clara na Europa, defendendo os valores fundamentais que constituem a base da construção europeia, e estamos a fazê-lo para salvar a honra e a dignidade da Europa.
Passemos ao conflito que já dura há mais de três anos: a guerra na Ucrânia. A invasão russa teve novidades nas últimas semanas, como as incursões aéreas de drones e caças militares russos no espaço aéreo da Polónia, Roménia e Estónia. Também tivemos dois incidentes durante as viagens da presidente Von der Leyen à Bulgária, cujo sistema de comunicações foi pirateado e o mesmo aconteceu com a ministra da Defesa espanhola na sua viagem à Lituânia. Estamos perante uma nova fase no conflito? Trata-se de um salto qualitativo?
São provocações claras e violações flagrantes da soberania e do espaço aéreo de países membros da União Europeia e aliados da NATO. A nossa resposta tem de ser firme e unânime. Não devemos cair nas provocações, mas também não na inação. O que está claro é que a segurança dos europeus é uma segurança indivisível. A Espanha participa ativamente na segurança da ala leste da NATO, com quase três mil soldados, e vamos reforçar ainda mais a nossa participação. Esta é mais uma prova de que a Rússia não busca a paz, mas sim está numa tentativa contínua de provocação e escalada.
Preocupa-o que esta unidade que a UE tem mantido em relação à defesa da Ucrânia no conflito possa ruir, não só do ponto de vista político, mas também na opinião pública europeia?
Não vejo risco de desunião. Todos estamos conscientes de que uma guerra de agressão não pode ter recompensa para o agressor, porque não resolveríamos nada. Se permitíssemos isso, o mundo ficaria mais inseguro e o agressor ficaria encorajado, continuando a atacar. Juntamente com o presidente do Governo, tivemos um encontro com o presidente Zelensky, no qual reiterámos todo o nosso apoio. Esse apoio é claro por parte de todos os membros da UE, porque todos compreendemos que está em jogo a segurança da Europa, que está intimamente ligada à segurança da Ucrânia, e também estão em jogo os nossos valores. Não devemos esquecer que o que provavelmente não perdoam à Ucrânia é o seu desejo de fazer parte da UE, ou seja, de ser uma democracia, uma sociedade tolerante e diversa.
Neste mundo de alta tensão, com dois conflitos de grande gravidade, incerteza e polarização, os laços entre a UE e a América Latina ganharam maior protagonismo e tornaram-se mais necessários do que nunca. No próximo ano, Espanha acolherá a trigésima Cimeira Ibero-Americana. Qual é a agenda e quais são as prioridades do Governo de Espanha para esta cimeira?
A Espanha é uma peça fundamental na relação entre a Europa e a América Latina, e em tudo o que representa a comunidade ibero-americana. Os laços com a América Latina não são apenas uma questão de política externa para nós; eles fazem parte de quem somos, de como nos sentimos e de como nos projetamos no mundo. Acredito firmemente em uma forma genuína de ser e de se projetar no mundo que é ibero-americana. Durante a nossa presidência, fomos fundamentais para levar a relação entre a Europa e a América Latina, entre a União Europeia e a CELAC, ao seu ponto máximo. Estamos a poucas semanas de uma nova cimeira na Colômbia e, esta mesma manhã, estive numa reunião entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da CELAC e os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia. Este é um momento decisivo para estreitar laços não só entre Espanha e a América Latina, mas também entre a Europa e a América Latina, porque finalmente contamos com o instrumento financeiro adequado: o Global Gateway. Esse fundo, criado precisamente para reforçar a relação entre a UE e a América Latina durante a nossa presidência, é fundamental neste momento tão complexo.
Vivemos num cenário em que há quem aposte em respostas unilaterais para problemas globais, em que o multilateralismo e a paz são desafiados. Neste contexto, tanto os europeus como os latino-americanos partilhamos os mesmos valores: a paz, a crença nas Nações Unidas nesta semana da Assembleia Geral em Nova Iorque, o multilateralismo e a cooperação. Acreditamos firmemente que a cooperação é sempre mais forte do que a confrontação. É isso que define a nossa Secretaria Pro Tempore da Comunidade Ibero-Americana e que irá orientar a cimeira em Madrid no próximo ano: um reforço e uma reafirmação da comunidade ibero-americana como um fórum permanente de diálogo e cooperação face às tentações unilaterais e de confronto.
Estamos a viver uma dupla transformação: a ecológica, rumo à sustentabilidade, e a digital. Neste quadro de relações entre a União Europeia e a América Latina, e na próxima Cimeira Ibero-Americana, o que podem a Espanha e a Europa oferecer à América Latina para que essa dupla transição se realize de forma equitativa, equilibrada e justa no continente?
Claramente, apoio financeiro. A UE, neste momento, tem o poder financeiro necessário para nos apoiar nesse sentido. Em segundo lugar, é fundamental concluir todos os acordos comerciais com o México, o Chile e o Mercosul, para criar mercados que sejam benéficos para ambas as regiões. No que diz respeito a Espanha, durante a Cimeira Ibero-Americana, temos objetivos claros. Um deles é desenvolver mecanismos de proteção civil, especialmente agora que as alterações climáticas estão a afetar duramente tanto Espanha, como vimos com os incêndios deste verão, como a América Latina, com fenómenos como as inundações. Há muito que podemos partilhar e aprender mutuamente. Outro ponto fundamental é a criação de uma carta de direitos digitais ibero-americanos. Devemos trabalhar para garantir que esta carta alcance todo o seu potencial. E, por último, um pilar fundamental da nossa agenda será a mobilidade. Queremos facilitar a mobilidade de estudantes e professores, habilitar diplomas e criar um espaço comum de conhecimento.
Reúne-se frequentemente e mantém conversações com os MNE ibero-americanos e os embaixadores dos seus respetivos países na Espanha. Qual é o clima que percebeu em relação à trigésima Cimeira Ibero-Americana? Como vê as relações e a disposição para esse diálogo, cada vez mais imprescindível?
Neste momento, todos temos claro que a unidade e o reforço da cooperação entre Espanha e a América Latina, com Portugal e Andorra também, são fundamentais dentro da comunidade ibero-americana. No âmbito do fórum União Europeia-CELAC, a nível das relações birregionais, essa cooperação será fundamental para enfrentar os enormes desafios que temos pela frente, como a transição que mencionámos, mas também a instabilidade mundial e os recuos que estamos a assistir no domínio comercial. O clima atual, portanto, é de reafirmar esse diálogo e essa concertação. Um dos mandatos da Secretaria Pro Tempore Espanhola, com vista à Cimeira Ibero-Americana, é reafirmar o nosso sistema e melhorar os canais de diálogo, para garantir que possamos continuar a avançar e a tomar decisões de forma eficaz. Queremos criar um novo plano de cooperação ibero-americana, que será uma das grandes conquistas dos próximos anos, e ampliar as nossas áreas de colaboração. Também queremos avançar na proteção civil, com a criação de um mecanismo ibero-americano nesta área, e continuar aprofundando a habilitação de títulos académicos para criar uma comunidade ibero-americana do conhecimento. Além disso, continuaremos a trabalhar na Carta Ibero-Americana dos Direitos Digitais e garantiremos que a Ibero-América tenha uma voz unificada nos fóruns internacionais, tal como fizemos na Conferência sobre Financiamento do Desenvolvimento de Sevilha, para que a nossa região possa ter o mesmo peso que outras regiões do mundo.