"Na Hungria, estamos a pagar sete vezes mais pelo gás e o dobro pela eletricidade"
Uma crise energética sem precedentes numa democracia amordaçada, vista já como "autocracia eleitoral". Um retrato da Hungria atual. Entrevista com Kata Tutto, vice-presidente da Câmara de Budapeste.
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Da última vez que falámos, estávamos quase nas eleições na Hungria e esperava-se que a Coligação Democrática pudesse ter um desempenho melhor do que acabou por ter. O que correu mal? Será o sistema? Foi a escolha da Plataforma, o que correu mal?
Provavelmente, muitas coisas. É algo multifatorial, porque estamos na política. Não é como um medicamento onde se pode fazer uma experiência muitas vezes. Na política, só se pode fazer uma experiência uma única vez. Assim, nunca descobriremos qual foi o elemento principal, mas se eu recuar no tempo à última eleição, depois da que tivemos em 2018, depois disso, a oposição tirou conclusões. Por isso, dissemos 'ok, cometemos um erro, não concorremos em todos os círculos eleitorais, por isso não havia sempre um candidato contra o Fidesz'. Desta vez, tínhamos um candidato em cada círculo eleitoral contra o Fidesz. Da última vez, tirámos também a conclusão de que não tínhamos um candidato comum para primeiro-ministro. Desta vez, tínhamos um candidato comum para primeiro-ministro, até mesmo uma inovação que nunca tínhamos tido antes, que foram as eleições primárias na Hungria. Foi um processo aberto, qualquer pessoa na Hungria podia aderir a este ato de escolher o candidato comum a primeiro-ministro. Portanto, esta foi uma inovação, algo que nunca antes se tinha feito.
E da última vez dissemos, 'Ok, não tínhamos um programa comum'. Desta vez, todos estes partidos da oposição trabalharam em conjunto, apresentaram um programa sobre como reinstalar a democracia na Hungria, tínhamos um programa detalhado para cada campo: para os cuidados de saúde, educação, energia. Da última vez, dissemos 'ok, não formámos governo porque não tínhamos as pessoas para controlar as mesas eleitorais'. Agora, tínhamos 20.000 pessoas, voluntárias, que contavam os votos em cada pequena aldeia, em cada cidade para garantir que as eleições eram livres e transparentes.
E, no fim de tudo isto, obtivemos o mesmo mau resultado. E depois, claro, pode-se pensar no que correu mal? Provavelmente muitas coisas correram mal...
A população quer o Fidesz...
Sim, mas porque é que a população quer Fidesz? Depois, claro, é sempre especulação. Mas vimos que houve uma mudança muito, muito abrupta depois de a guerra ter começado. Quer dizer, depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia. E o governo, com todas as oportunidades de ter e possuir a maioria dos meios de comunicação social na Hungria, controlar os meios de comunicação social públicos, controlar e possuir jornais locais, rádios locais, temos todos os jornais locais com a mesma capa a aparecer...
É verdade que o candidato a primeiro-ministro teve apenas cinco minutos de antena na televisão pública na terça-feira 830 da manhã ou algo assim?
Isso é verdade. Só tinha cinco minutos por conta própria, mas tinha horas todos os dias quando os media públicos estavam contra ele. Portanto, sim, ele podia falar cinco minutos, mas todos os dias, recebia horas de notícias dos meios de comunicação social públicos contra ele.
Mas como é que a guerra mudou o sentimento? O que Viktor Orban começou a comunicar aos húngaros em todos os canais que o governo pode utilizar - não foi o Fidesz, foi o governo a comunicar - que... se querem paz, se não querem que os nossos filhos sejam mortos numa guerra, então votem em Viktor Orban. Se votarem no candidato da oposição, Peter Marki-zay, então ele enviará os vossos filhos com armas para a Ucrânia e eles morrerão. Assim, 'se queres que os teus filhos estejam a salvo, se queres ficar fora da guerra, então votas em Viktor Orban, se queres estar na guerra porque a oposição quer que a Hungria esteja na guerra, então escolhes a oposição'.
E houve uma outra promessa - e penso que isso é realmente excitante agora, porque Viktor Orban prometeu a todos os húngaros que, se o Fidesz permanecer no poder, ninguém terá de pagar mais pela eletricidade ou pelo gás. Porque antes havia um sistema de preços fixos na Hungria, que vigorou durante 10 anos. Assim, os consumidores nunca sentiram nada sobre a alteração dos preços.
Portanto, será basicamente uma promessa quebrada...
Mas esta foi a sua principal promessa. Ele tinha duas promessas principais: que a Hungria estaria fora da guerra, e que os húngaros nunca pagariam mais pelo gás e eletricidade. Esta era a sua principal promessa. E no Verão, em Julho, quebrou a promessa e agora os consumidores pagam sete vezes mais caro pelo gás e o dobro pela eletricidade. Mas para os municípios e serviços públicos, este aumento de preço é entre oito e 14 vezes maior para a eletricidade, para o gás, para a manutenção do serviço público. Assim, neste momento, a cidade de Budapeste - sou responsável pelos transportes, luz pública, resíduos, água - tem zero quilowatts de eletricidade para o próximo ano para a luz pública, para a manutenção dos transportes públicos, para a manutenção do serviço de água nas habitações.
Como é que vai fazer?
Neste momento não sabemos, porque os nossos orçamentos são cortados pelo governo. Muitos dos nossos orçamentos tinham sido centralizados. Fomos expulsos da faixa de preços protegidos ou os serviços públicos locais foram expulsos deste escudo protetor. E agora temos de pagar o preço do mau contrato que a Hungria fez com a Gazprom no ano passado, que é um dos piores contratos de gás em toda a Europa.
Portanto, não se trata de um aumento de preços, de 18 para 14%. É de oito para 14 vezes...
Sim, isso significa 10 ou 11, 12 vezes, até 14 vezes mais. Paguei por luz pública no ano passado 4, agora teria de pagar 55.
Isso está refletido na conta que pagam os consumidores individuais?
Ambos. Ou seja, aconteceram duas coisas. Viktor Orban quebrou a sua promessa porque prometeu a todos os húngaros que nunca teriam de pagar um preço mais elevado. E depois, em Julho, disse que, devido às más sanções da UE, teríamos de pagar mais. Há uma quantidade de energia protegida que pode ser utilizada por um preço mais barato. Mas todos os que a ultrapassam - e que é a maioria da população - tem de pagar sete vezes mais pelo gás e o dobro pela eletricidade. Portanto, não 2%, não 20%, o dobro para a eletricidade, e um aumento de sete vezes no preço do gás depois de alguma quantidade de gás utilizados. Para os municípios, a situação está fora de controlo, atiraram todos os municípios para o deserto para procurarem eletricidade e comprarem se puderem, por qualquer preço, após 10 anos de um sistema de preços fixos.
Então, todos estes problemas que a política nacional está a trazer aos consumidores, será que de alguma forma faz com que as pessoas venham para as ruas ou... Quer dizer, será que a sociedade civil ainda está viva?
A sociedade civil tem vindo a ser estrangulada há muito tempo na Hungria. As pessoas não estão nas ruas porque existe uma comunicação húngara muito única sobre a razão pela qual isto está a acontecer.
Por causa da UE e das sanções à Rússia...
Exatamente, por causa das estúpidas sanções da UE. Esta é a única razão: não pelo mau contrato da Hungria com a Gazprom, não porque Viktor Orban ou o Ministro dos Negócios Estrangeiros Peter Siarto tenha voltado no ano passado da Rússia a dizer que a Hungria tem o melhor contrato de gás a longo prazo com a Gazprom. "Estamos a pagar o preço mais baixo. Isto irá garantir preços baixos do gás para todos os húngaros durante muito tempo", dizia. Mas é um contrato secreto, eles não podem dizer exatamente o que está no contrato. Por esta altura, vemos que provavelmente este é o pior contrato que já foi assinado. O que vemos sobre os preços e o que está a acontecer, é um preço que mais ninguém tem tão mau. Assim, se eu olhar aqui na UE para outras cidades, o que está a acontecer, todos têm aumentos de preços, mas não 10 e 13 vezes mais. Portanto, o que vejo agora na Hungria é que os municípios enfrentam todos a mesma situação. Portanto, não é só Budapeste, não são só as cidades da oposição. Todos as municípios foram como que afastados, em poucas semanas, de todos os sistemas protegidos. E a maioria deles não tem o orçamento porque o seu orçamento foi centralizado e cortado nos últimos dois anos. Assim, agora, muitos municípios estão a pensar em cortar muitos serviços públicos como cortar a luz da rua, fechar instituições, fechar creches, pensar em reduzir os transportes públicos. Vejo isso também noutras cidades de outros países, mas ainda tem solução. Portanto, o que penso é que à sombra da atual crise dos preços da energia, o governo húngaro terminará o seu trabalho de matar as autoridades locais na Hungria, porque não se pode falar da autoridade local, se esta não tem orçamento, se não tem...
Se não se pode garantir a eletricidade pública...
Se nem sequer pode garantir as luzes de rua. Tenho a certeza que haverá luz de rua, mas sabe, a autoridade local não se trata apenas de luz de rua e outros serviços públicos, mas sim da liberdade da comunidade local para decidir pelo menos sobre uma pequena proporção dos seus impostos pagos, o que gastar, como gastar, como desenvolver a forma de mudar a cidade. Agora, atingimos o limiar em que nem sequer podemos prestar serviços públicos básicos porque as nossas receitas fiscais estão centralizadas. Mas todos os nossos custos são muito mais elevados, e não devido às sanções da UE, mas devido a decisões muito más tomadas pelo governo.
Temos um próximo aniversário de 23 de Outubro, data da invasão soviética em 1956. E em comparação com o que disse há cerca de 15 anos, o discurso público de Viktor Orban sobre a Rússia mudou muito. Como vê essas mudanças?
Não sei do que é que ele vai falar este ano. Mas sim, absolutamente. Ele está na política desde... desde 1988. Está no palco há muito tempo. Foi um político muito anti-Rússia, anti soviético no início. E agora o que vemos é algo em que eu nunca pensaria porque nasci na era soviética. Desde então, senti que o caminho da Hungria nunca mais poderia ser olhar para o Oriente. Éramos todos europeus, sempre soubemos que pertencíamos à União Europeia e à família europeia. Vendo que Viktor Orban diz que o seu amigo é Vladimir Putin, que está a atacar outro país, e não a família europeia a que todos nós queríamos pertencer e ele queria pertencer e todos os húngaros queriam pertencer a esta família, mas agora ele está a proteger uma guerra ilegal. É muito difícil compreender realmente o que está a acontecer.
Mas as pessoas não protestam muito nas ruas...
O que vejo nos protestos, são os professores que temos finalmente nas ruas, porque os seus salários são, penso eu, agora os mais baixos entre os mais baixos do serviço público húngaro. E com esta crise energética, e uma inflação que nunca tinha visto antes - provavelmente os meus pais já a viram ou os meus avós, mas nunca tinha visto uma inflação como esta - o preço dos alimentos aumentou com 30, 40 50 60%... Se olharmos para o preço do pão, este aumentou 60% num ano. 60! Portanto, nunca tínhamos visto algo assim antes. O que é que isso significa? Significa que aqueles salários, que eram realmente baixos, há um ano atrás, agora nem sequer se pode comprar comida com aqueles salários que os professores ganham nas nossas escolas. E agora protestam abertamente, porque o governo estava a punir os professores que diziam que tem de haver uma mudança. Foram castigados. Por isso, agora, cada vez mais professores, pais e crianças estão a manifestar-se pelos professores, pela educação, pelo futuro da Hungria, para que haja uma mudança nisto, e para que tenham melhores salários.