Negacionismo. "A teoria da conspiração que iniciou esta forma de pensar surgiu com o assassinato de Kennedy"
Corpo do artigo
O nome Sagan depressa remete para memórias da ciência contada como história de efabulação. Na série documental "Cosmos", Carl Sagan dizia que "todos nós somos poeiras de estrelas". Foi com o fascínio pelo método científico como fórmula para alcançar a verdade, mais atraente do que os mitos, que Sasha Sagan cresceu. Filha do aclamado astrofísico Carl Sagan e da escritora e produtora Ann Druyan, a autora de "For Small Creatures Such As We" - um livro que é uma caminhada pelos rituais que unem a humanidade e a beleza da ciência que os interliga - conta, nesta entrevista à TSF, como a indagação e o espírito crítico e aberto dão significado à vida.
No seu livro "For Small Creatures Such As We", transmite uma forma de ver a vida e o universo para que certamente contribuiu ter Carl Sagan como pai... De que forma recebeu esta influência?
Cresci num lar em que a ciência não era apenas uma lista de factos para serem confrontados e comparados com outras ideias, não se tratava apenas de fórmulas. Era um caminho para uma compreensão profunda, mas também para o assombro, para a maravilha e para a alegria. Foi uma forma maravilhosa de crescer, porque os meus pais alimentavam a curiosidade. As crianças são naturalmente curiosas, e eles encorajaram-me com muito entusiasmo. Tive muita sorte, porque eles estavam sempre muito dispostos a explorar e a questionar. Tinham sempre tanta alegria relativamente ao mundo natural e ao nosso lugar nele.
Mas, ao crescer, perdi o meu pai quando tinha 14 anos, e avancei, como os outros, para os ritos de passagem, para o luto - nalguns casos -, com o qual todos temos de lidar nalgum momento das nossas vidas. Comecei assim a questionar-me sobre as tradições e os rituais que muitas vezes atribuíamos à religião, essas receitas, sobre o que devemos fazer em situações difíceis ou numa situação maravilhosa, tais como casamentos.
Comecei a pesquisar sobre tradições de todo o mundo, e comecei a entender que, para lá da superfície, há muitas vezes um acontecimento científico.
Comecei a pensar que para nós, que não somos religiosos, que vemos a ciência como a forma de responder às perguntas profundas... Como percorremos esses pontos na vida em que necessitamos de uma celebração, ou de luto, ou de feriados? Comecei a pesquisar sobre tradições de todo o mundo, e comecei a entender que, para lá da superfície, há muitas vezes um acontecimento científico ou um fenómeno que está a ser celebrado. Quando começamos a ver além da mitologia ou teologia que é apresentada para explicar como algo acontece...
Compreender profundamente alguns aspetos torna-se uma forma de amar algo.
E essa visão científica do mundo pode também ser fonte de alegria, em oposição ao peso que muitas vezes a sociedade lhe imprime? O que mais a surpreendeu nesta descoberta?
Penso que temos realmente essa ideia - talvez não em todo o mundo, mas nos Estados Unidos, sim - de que os factos são frios e rígidos, e de que a informação é desagradável. Temos a ideia de que o mistério é melhor, de alguma maneira. Mas compreender profundamente alguns aspetos torna-se uma forma de amar algo. Tentar entendê-lo verdadeiramente, tal como é.
Posso dar alguns exemplos que realmente me arrebatam: temos tantos feriados que estão ligados a equinócios e solstícios, que são eventos que a Humanidade tenta compreender desde os primórdios da História. Além dos eventos astronómicos, há os eventos biológicos.
As diferenças são superficiais, a biologia é a mesma.
É muito fácil olhar para o bar mitzvah ou para a festa de debutantes ou para a celebração de confirmação como acontecimentos culturais, e não como marcos biológicos. Em Vanuatu, no Sul do Pacífico, os jovens rapazes fazem naghol, quando atingem a idade adulta. Eles saltam de uma torre, amarrados pelos tornozelos a um tipo especial de galhos de árvore. Há também lugares na Amazónia onde os homens jovens colocam as mãos em luvas cheias de formigas, que representam a dor de ser líder, e é assim que são apresentados à vida adulta. É muito fácil ver estas coisas como muito diferentes, muito culturais, mas a ideia de passar da infância à idade adulta requer algum nível de confronto dos medos, seja falar em público ou o pavor de alturas, ou o medo de formigas. O que estamos a celebrar é a proximidade da maturidade biológica. Passaram a ter as características, físicas, emocionais e psicológicas, que lhes permitem avançar e, eventualmente, criar a próxima geração do grupo. Podem agora transmitir o legado dos que vieram antes.
Na maior parte da História da nossa espécie, isto nem sempre foi fácil. Se pensarmos nas variações hormonais, nas mudanças de voz, no aparecimento de pêlos e bigodes, como aspetos intrinsecamente ligados à nossa biologia, não deixa de ser algo bonito e ajuda a derrubar alguns muros que criámos entre os grupos em que nos inserimos e a forma como vemos os outros. As diferenças são superficiais, a biologia é a mesma.
Têm sido tempos muito obscuros e assustadores aqui, e muito tem que ver com a incapacidade do atual ocupante da Casa Branca de olhar para a realidade
Para uma pessoa que assenta toda a forma de conhecer e interpretar o mundo na ciência como foi assistir à administração Trump?
Muito difícil, e ainda não acabou. Neste momento, ele continua a recusar-se a abandonar o cargo e a admitir que perdeu. É assustador. Crescer num país onde nos ensinam na escola que uma transição pacífica é algo de que nos devemos orgulhar e que inspira o nosso patriotismo... É muito doloroso ver alguém que é tão inseguro que não consegue colocar o país acima das suas necessidades emocionais.
O meu pai dir-me-ia que "é perigoso acreditar nas coisas porque queremos que elas sejam verdade".
Têm sido tempos muito obscuros e assustadores aqui, e muito tem que ver com a incapacidade do atual ocupante da Casa Branca de olhar para a realidade, de seguir as evidências, de usar o pensamento crítico para compreender o que está a acontecer com a pandemia e de muitas outras coisas. Eu escrevi isto no meu livro: o meu pai dir-me-ia que "é perigoso acreditar nas coisas porque queremos que elas sejam verdade". Gostava de poder falar com ele sobre este momento da História dos Estados Unidos da América, porque acredito que temos alguém a liderar - espero que por apenas mais um mês - que prefere acreditar em coisas que o fazem sentir bem do que encarar a realidade como ela é. Nenhum avanço na História da Humanidade foi conseguido através dessa lógica. Olhar para a realidade, compreendê-la e usar o método científico são complementares de ter compaixão e compreensão pelas pessoas, porque trata-se de perceber que alguém estar a sofrer em nada é diferente de estarmos nós a sofrer. A combinação da ciência com a compaixão é o que há de mais elementar na Humanidade.
Neste momento, quem está à frente do país mais poderoso do mundo não tem nenhum desses fatores. Tenho esperança de que, a 21 de janeiro, teremos um Presidente que, não sendo perfeito, tem compaixão e ouvirá as pessoas que dedicaram as suas vidas a estudar. Esse será um grande passo numa nova e melhor direção. Mas temos uma questão ainda maior a que fazer face, que é: como ensinamos as crianças a pensar criticamente? Como encorajamos as pessoas a sentirem-se confortáveis para fazer as perguntas difíceis, mesmo que não sejam cientistas, mesmo que a ciência não seja a sua melhor disciplina na escola? Não era a minha melhor disciplina, mas ter as ferramentas para utilizar o método científico torna as pessoas menos passíveis de serem enganadas.
TSF\audio\2020\12\noticias\22\x_catarina_maldonado_vasconcelos_sasha_sagan
Como tem uma filha pequena, de três anos, pergunto-lhe como se transmite esse legado de pensamento crítico...
É uma ótima questão, porque é difícil. Adultos, professores, pais, nós que criamos as crianças temos esta ideia de que temos de saber tudo, e que, se uma criança faz uma pergunta difícil, o mais importante é oferecer uma resposta firme, em vez de uma resposta verdadeira. Isso é muito perigoso. As crianças ficam mais confortáveis com a ambiguidade do que aquilo que pensamos. Quando elas formulam uma pergunta muito profunda, dizer "eu não sei, eu também me questiono sobre isso; a tua avó pensa isto, mas o teu tio pensa outra coisa; essa é uma pergunta muito complicada, e terás de compreender por ti mesmo", em vez de dizer "esta é a forma como me explicaram, e, portanto, vou transmiti-la, porque não quero ter de confrontar estas sensações desconfortáveis de não sabermos", que todos nós experienciamos, porque é normal.
Todos nós almejamos prever e ter um ritmo de vida, marcar as mudanças e celebrar, fazer o luto.
A minha filha está naquela fase por que todas as crianças passam de perguntar sempre "porquê? Porquê? Porquê?" É muito fácil responder "bláááh" ou "pára", mas é mais importante encorajar esse espírito. Às vezes, ela pergunta-me por que dizemos algo quando alguém espirra mas não quando se tosse. Apetece-me dizer "isto é apenas uma norma social que aceitámos, e eu não sei se está certa ou errada, é apenas o que a sociedade decidiu". Tratar as crianças com respeito e tratá-las como seres capazes de compreender o que vamos dizer, mesmo que seja algo um pouco além da sua esfera de conhecimentos - porque fazer isso apenas as torna mais argutas -, é estar a altura da situação. Quando enfrentamos as perguntas das crianças com seriedade, e quando conseguimos reconhecer o desconforto que é não ser detentor da resposta certa, damos-lhes as ferramentas que mais tarde lhes permitirão lidar com as perguntas difíceis.
Qual é a importância do slow living e das pausas para apreciar os detalhes nesta compreensão do significado da vida?
Falar sobre a forma como interagimos com a informação e os factos, e dar um passo atrás para pensar nas coisas que aprendemos nos primeiros anos das nossas vidas e que se tornaram tão normais que já nem parecem especiais.
A minha filha demonstra muito interesse pela lua. Ela adora a lua. Quando a vê, fica muito entusiasmada, e é muito fácil desvalorizar: 'Sim, é a lua...' Mas é preciso dar um passo atrás. Tentar ver a lua pelos olhos dela e mergulhar nesse espanto em relação às coisas que são banais para nós só nos traz alegria.
É importante praticar o slow living, apreciar uma garfada de comida. Para nós, que não somos religiosos e que não temos uma oração para dizer antes de comer, há algo de muito valioso em tirar um momento para nos apercebermos de que alguém plantou algo na terra para que pudéssemos ter alimentos, alguém teve de o levar para a loja. Há animais que morreram para que eu pudesse ter determinada refeição. É importante criar momentos em que enquadramos um plano mais geral do tecido de que todos somos feitos. Ter a perspetiva de que nós somos uma parte pequena de um mundo mais vasto e pensar nas ligações invisíveis torna a vida ainda mais especial.
A minha esperança é que consigamos atingir um ponto em que nos sintamos ligados uns aos outros, ligados aos nossos antecessores e ao nosso lugar no universo, sem termos de evitar perguntas difíceis e profundas.
Considera a religião, a espiritualidade a e ciência mutuamente exclusivas? E se não são, como podem conviver tranquilamente, sem incoerência?
Todos nós almejamos prever e ter um ritmo de vida, marcar as mudanças e celebrar, fazer o luto... Aquilo que mais foi evidenciado durante a pandemia foi a perceção do quanto sentimos falta da comunidade, dos rituais, dos jantares de feriado.
Todos somos movidos pela curiosidade e pela vontade de perceber a que lugar pertencemos no grande esquema das coisas, o que fazemos aqui, como chegámos até aqui. Essas necessidades podem ser satisfeitas de formas que nem sempre são claras. Uma ortodoxia, de ambos os lados, impede a compreensão do outro lado. Já conheci pessoas muito laicas que diziam não ter necessidade de rituais nenhuns por não serem religiosos, mas apercebem-se de que ainda há muito para celebrar e homenagear. Também há pessoas que estão menos confortáveis em relação a fazer as perguntas maiores, mais filosóficas, que talvez contradigam as crenças religiosas. A minha esperança é que consigamos atingir um ponto em que nos sintamos ligados uns aos outros, ligados aos nossos antecessores e ao nosso lugar no universo, sem termos de evitar perguntas difíceis e profundas.
Aquilo que nunca ultrapassarei enquanto viver é que há um código secreto no nosso sangue que nos conecta com os nossos ancestrais.
Há algum espaço para o sagrado na ciência?
Sem dúvida! Eu penso que tudo é sagrado. A ciência é a fonte das ideias mais sagradas. Aquilo que nunca ultrapassarei enquanto viver é que há um código secreto no nosso sangue que nos conecta com os nossos ancestrais. É real, e conecta-nos com todos aqueles que já viveram e com a vida primitiva na Terra. Está no nosso sangue, no nosso corpo, acreditem nele ou não. Mas a forma como o ADN nos é ensinado é tão seca por vezes que não nos parece sagrado. Se viesse escrito num livro muito, muito antigo que há um código secreto no nosso sangue que nos liga aos nossos ancestrais, pareceria místico e maravilhoso. E há tão mais na ciência... A ideia de que temos estações do ano neste planeta porque existe um eixo axial, porque não é uma esfera perfeita, e de que isso poderá ter sido uma dádiva fruto de uma colisão com a lua, é tão bonita! Sem isso, teríamos a meteorologia, o estado do tempo, mas não estas transições.
A beleza de ver as árvores alterarem as suas cores ou de ter um dia longo de verão no Sistema Solar é algo que a minha mãe e o meu pai sempre me apresentaram cientificamente. As provas científicas são também sagradas.
As pessoas perguntavam-lhe muitas vezes o que ele pensava do assunto, e ele dizia 'não sei, porque sustento crenças com provas'.
Quais são os maiores mistérios que a ciência quererá ver resolvidos nos próximos anos?
Todos os dias há algo de novo e algum mistério que é desvendado. Ou alguma pergunta que nunca pensaríamos fazer. O meu pai sempre foi muito curioso acerca da questão de estarmos, ou não, sozinhos enquanto formas de vida no universo, e se estamos sozinhos enquanto seres inteligentes, pelo menos na dimensão da nossa inteligência. Essa é uma questão muito profunda. As pessoas perguntavam-lhe muitas vezes o que ele pensava do assunto, e ele dizia 'não sei, porque sustento crenças com provas'. E as pessoas voltavam a perguntar-lhe: "Sim, mas o que é que pensa? O que é que o seu instinto lhe diz?" E ele dizia que tentava não usar o instinto para responder a estas questões, que tentava usar o cérebro. Esta ideia de que até uma pessoa tão sedenta de saber a resposta não se deixa levar pelas suas expectativas e desejos é até heroica.
Há passagens da escrita dele que preveem isto, de uma forma que é quase inacreditável.
Esta é unanimemente uma das questões que mais curiosidade motiva: "Seremos os únicos? E, se se somos, ou não somos, o que é que isso significa para nós?"
Outra área de grande interesse, e estamos muito longe de decifrar, é o porquê de tomarmos as decisões que tomamos, por que compreendemos as coisas como as compreendemos. Talvez seja algo do plano das ciências sociais, mas eu tenho fascínio por isso. Por que é que interpretamos o mundo da forma como interpretamos? Que controlo temos sobre isso? Todos os dias fico fascinada com o que conseguimos conhecer e compreender da realidade.
Não sei em que medida isto é um grande mistério para si, mas como acha que o seu pai interpretaria este tempo de pandemia?
Tenho pensado muito nisso. Há passagens da escrita dele que preveem isto, de uma forma que é quase inacreditável. Estamos numa sociedade que é totalmente dependente de ciência e tecnologia. Aqui estamos, com um oceano a separar-nos, a falar, a comunicar [esta entrevista foi realizada numa plataforma de videoconferência online], como muitas pessoas têm feito neste momento. Querem falar de magia? Os telemóveis e computadores fazem isto e são reais. Aqui está esta coisa quase impensável naquilo que é e foi a escala da vida humana.
A minha mãe costuma dizer 'não conseguimos chegar a Marte por um caminho de mentiras'.
Apesar de sermos completamente dependentes da ciência e da tecnologia, muito poucas pessoas compreendem como funcionam e, nalguns casos, têm medo de decifrar entre o que lhes é dito o que é verdadeiro e o que não é.
Penso que seria um momento muito difícil para ele. Ele ficaria desolado ao ver no que nos temos tornado, mas também acredito que, se ele estivesse aqui, estaríamos um pouco melhor. Talvez não estivéssemos tão mal porque a voz dele era muito poderosa e significativa para muitas pessoas. Penso que ele teria uma visão muito clara daquilo que nos está a escapar e de como o poderíamos ultrapassar.
Como disse, os avanços da tecnologia e da ciência têm sido fundamentais para permitir que o momento não seja tão insuportável como poderia ser...
É verdade, mas é incrível como nos habituamos rapidamente às coisas. Aquilo que era ficção científica quando era criança está agora disponível. Eu lia-o em livros... Quem me dera poder mostrar um smartphone ao meu pai! Ele morreu em 1996 e não havia nada disto. Ele ficaria muito impressionado.
Tudo aquilo com que podemos contar existe porque é testado e sobrevive ao escrutínio com os nossos olhos bem abertos.
Somos muito rápidos a esquecer as coisas especiais a que nos habituamos, como a lua ou a internet. Também nos esquecemos que a tecnologia é resultado do método científico. A minha mãe costuma dizer 'não conseguimos chegar a Marte por um caminho de mentiras'. Tudo aquilo com que podemos contar existe porque é testado e sobrevive ao escrutínio com os nossos olhos bem abertos. Temos de investigar como funcionam as coisas, e porquê, não o que gostaríamos que fosse verdade. Isso tem estado na base de todos os avanços médicos e tecnológicos. É essa a receita.
Que verdade conta à sua filha sobre a pandemia?
Ela tem sido maravilhosa, e porta-se muito bem em relação a usar a máscara e lavar as mãos. Dizemos-lhe que existe um vírus e que estamos a ser muito cuidadosos porque não queremos ficar doentes e não queremos que ninguém fique doente por nossa causa. Poderíamos ficar bem, mas temos de ser cuidadosos para acautelarmos a nossa comunidade. Não a queremos aterrorizar, mas também não queremos mentir. Essa é sempre a linha que tento fazer passar na agulha. Quero dizer a verdade, quero ser clara, mas não quero que ela tenha medo do mundo.
Ela às vezes diz-me: "Quando as coisas voltarem ao normal, podemos fazer isto ou aquilo?" As crianças adaptam-se, os seres humanos adaptam-se. Ela tem muitas perguntas, e, quando ela tem uma pergunta, eu e o meu marido tentamos apenas responder-lhe no máximo detalhe que conseguimos. Também a encorajamos a fazer mais perguntas, porque quando uma questão começa a borbulhar à superfície provavelmente já esteve às voltas na cabeça dela durante horas. É tão difícil quando se é pequeno: tudo é confuso, principalmente durante este tempo tão difícil. Mas, até ao momento, ela tem lidado muito bem com isto, estou muito impressionada.
Não me lembro de alguma vez ter sabido de todos os testes e de qual era a metodologia, e hoje é uma história mundial todos os dias.
Ela lembra-se de como era a vida antes da Covid-19?
Ela lembra-se e refere-se a esses momentos. Nós começámos a fazer coisas que antes não fazíamos. Aos fins de semana íamos ao oceanário ou ao museu, e, quando tudo fechou, começámos a fazer longas caminhadas na floresta do parque nacional que fica a 20 minutos ou meia hora, e onde não circulam muitas pessoas. As instalações estão fechadas, mas os trilhos foram abertos. Às vezes, ela diz-nos: "Quando as coisas voltarem ao normal, podemos continuar a ir à floresta?" E nós dizemos-lhe que o podemos fazer durante o tempo que quiser.
As nossas memórias são maleáveis, e, à medida que o tempo passa, as coisas tornam-se menos claras. Espero que, quando o dia chegar - e espero também que não demore muito -, quando não tivermos de usar máscara todos os dias, talvez ela ache tudo isto esquisito.
Tem havido muita pressão dirigida à comunidade científica nesta fase. Acredita que é dado o tempo necessário a que se testem todas as hipóteses e que sobreviva ao escrutínio a que é melhor?
A corrida à vacina está a ser feita de uma forma tão pública que eu nunca vi nada semelhante. Não me lembro de alguma vez ter sabido de todos os testes e de qual era a metodologia, e hoje é uma história mundial todos os dias. Claro que existe uma enorme urgência e deve haver uma grande pressão em relação aos cientistas, mas há algo aqui que a longo prazo se revelará muito valioso. As pessoas tornarem-se interessadas em perceber como isto funciona, darem-se conta, quando recebem uma injeção no braço, do que foi necessário para chegar até ali, entre ensaios e grupos de controlo... Todos os avanços médicos devem-se a isto. Houve uma altura na História em que não tínhamos estas ferramentas.
A pandemia prova-nos mais uma vez que as fronteiras são arbitrárias.
Se tivéssemos vivido há mil anos e tivéssemos uma doença, não tínhamos pequenas cirurgias para a reparar, e a nossa vida ficaria em risco. Tudo isto se deve ao método científico, que nos permite testar e ver o que sobrevive ao escrutínio.
Esta é uma daquelas doenças que obrigaram o mundo inteiro, ao mesmo tempo, a procurar intensamente uma cura... Todos com o mesmo objetivo.
E a pandemia prova-nos mais uma vez que as fronteiras são arbitrárias. Nós estamos no mesmo planeta, somos a mesma espécie, estamos nisto juntos, para o melhor e para o pior. As separações que criamos nas nossas cabeças são artificiais.
É muito assustador olhar para o mundo como um lugar onde tudo pode acontecer e onde acontecimentos aleatórios são a causa de imensas consequências.
E a ciência prova-nos o mesmo...
Exatamente, os nossos destinos estão interligados. A pandemia tornou mais clara a ideia de um planeta único para todos. Nada que façamos num lugar fica isolado do resto de nós.
Como explicaria a existência de negacionistas e de teorias da conspiração?
É muito assustador olhar para o mundo como um lugar onde tudo pode acontecer e onde acontecimentos aleatórios são a causa de imensas consequências. Pequenas decisões podem ter repercussões enormes. Nós não estamos realmente no controlo, e isso é assustador. As pessoas que criam teorias da conspiração e que acreditam que há uma máquina enorme a controlar tudo isto, que há pessoas a controlar e a planear tudo isto, são pessoas que querem acreditar que alguém está no comando, mesmo que esse alguém seja terrível. Querem acreditar que há um plano, que há uma razão maior para as coisas que acontecem e que não é tudo um caos.
Ironicamente, as pessoas sentem-se mais confortáveis a pensar que alguém está a controlar tudo.
Não estou a dizer que não haja coisas neste mundo que não sejam segredo, mas a ideia de que tudo isto é uma fachada, de que há grandes mentiras ditas a milhões de pessoas...
Nos Estados Unidos, a teoria da conspiração original que realmente iniciou esta forma de pensar nasceu com o assassinato de John F. Kennedy. Mais uma vez: não digo que não haja coisas que desconheçamos, mas o desejo de que uma pessoa aleatória que não está bem pudesse mudar todo o curso da História é assustador para as pessoas. De alguma maneira, ironicamente, as pessoas sentem-se mais confortáveis a pensar que alguém está a controlar tudo. Eu não acredito que alguém esteja a controlar tudo. Não acredito que as pessoas consigam guardar segredos destes. As pessoas não conseguem sequer esconder segredos de quem namora com quem. Isso é muito difícil para nós. Não conseguimos manter isto em segredo para milhares de pessoas.
O medo é uma força muito intensa e mobilizadora. As pessoas têm medo de enfrentar uma série de circunstâncias tão assustadoras, como a existência de um vírus mortal em todo o mundo - que já matou um quarto de milhão de pessoas neste país [EUA]. Não ter capacidade para aceitar tal coisa vem de um lugar de desejo e ilusão.
Não nos estamos a alistar para ir para a guerra, só estamos a usar um pedaço de tecido à volta do rosto durante as poucas horas em que estamos fora de casa.
As pessoas que rejeitam as máscaras terão então muito medo de enfrentar que podem realmente causar a morte de alguém, e por isso recusam essa responsabilidade?
A algum nível haverá também egoísmo, porque não querem ter a inconveniência mínima em troca do bem-estar dos seus vizinhos. Não sei como é a dinâmica em Portugal, mas aqui muitas das pessoas que não querem usar máscara são as mesmas pessoas que estão constantemente a falar de patriotismo. Para mim, um país é feito das pessoas desse país. Falar de patriotismo mas ser-se incapaz de enfrentar o pequeno inconveniente de usar uma máscara, pelo bem dos restantes cidadãos e das pessoas em redor, é tão paradoxal!
Se a ideia é a de que temos de fazer sacrifícios pelo bem maior, se isso é que é o patriotismo, este é mesmo um pequeno sacrifício. Não nos estamos a alistar para ir para a guerra, só estamos a usar um pedaço de tecido à volta do rosto durante as poucas horas em que estamos fora de casa.
A História mostrará que essa decisão de não usar máscara é a errada.
Isto também tem muito que ver com a forma como as pessoas validam a informação e escolhem os especialistas a ouvir. Talvez algum dia alguém escreva uma grande tese universitária sobre isto, mas não temos distância suficiente agora para o analisarmos.
A História mostrará que essa decisão de não usar máscara é a errada.
As diferenças entre nós seriam invisíveis para alguém que chegasse de outro lugar.
E voltamos à questão de a pandemia nos mostrar o quão pequenos somos neste vasto universo...
A interconectividade no nosso planeta, dos nossos recursos, dos seres humanos e de outras formas de vida, é tão clara quando somos atirados para uma emergência global. As diferenças entre nós seriam invisíveis para alguém que chegasse de outro lugar. Esta perspetiva não é só útil para resolver grandes problemas comuns. É também emocionalmente, espiritualmente - se puder usar esta palavra -, e filosoficamente cheia de significado. Se estamos todos aqui e não há sinal ainda de que haja mais alguém neste vasto universo, e se a nossa estadia aqui acaba num piscar de olhos, a pandemia acaba por revelar o nosso melhor e o nosso pior.
Esta clareza deveria mais tarde ajudar-nos a resolver problemas como as alterações climáticas, o racismo e o preconceito, os quais temos sido resistentes em aceitar.
Quando as futuras gerações aprenderem sobre isto nas escolas aquilo que não será possível comunicar nunca é o quão chocante isto foi enquanto o vivemos.
A ciência é então uma forma de atingir a igualdade?
Sim! As nossas diferenças são demasiado pequenas, em comparação com aquilo que partilhamos e podemos enfrentar juntos.
Penso que quando vivemos estes grandes momentos históricos... Quando as futuras gerações aprenderem sobre isto nas escolas aquilo que não será possível comunicar nunca é o quão chocante isto foi enquanto o vivemos. Sabemos como acabou, mas nunca nos apercebemos do quão próximo esteve de correr terrivelmente pior.
