Zelensky no Vaticano. "No calendário da guerra este encontro é tardio, mas foi o timing que o Papa escolheu"
Investigadora do IPRI (Instituto Português de Relações Internacionais) da Universidade Nova de Lisboa, Paula Borges Santos analisa para O Estado do Sítio, da TSF, a importância da visita de Zelensky ao Papa Francisco.
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A Paula Borges Santos tem estudado o Vaticano de um ponto de vista político e diplomático. Que importância tem este encontro? Será o de reafirmar do potencial diplomático do Vaticano, que já ficou consagrado pelo papel que teve, por exemplo, a Comunidade de Santo Egídio no processo de paz de Moçambique?
A concretização do encontro entre Zelensky e o papa Francisco terá inequivocamente essa leitura de reafirmação do papel diplomático do Vaticano, num dos principais conflitos militares da atualidade. É, no entanto, um momento mais simbólico do que de negociação efetiva. Representa a confirmação pública, ao mais alto nível, dos esforços diplomáticos da Santa Sé, quando muitas outras tentativas de mediação já falharam ou estão em curso. Podemos especular se as negociações, que segundo se sabe, já têm oito meses, estão bem encaminhadas, e se será por essa razão que o papa Francisco se encontra agora com Zelensky. Significará que, para além de qualquer manifestação de solidariedade do Papa para com a Ucrânia, os dois chefes de Estado preferiram ter resultados substanciais antes de se encontrarem? Inclino-me para uma resposta positiva.
É um encontro que vem tarde, embora se possa dizer que mais vale tarde do que nunca?
No calendário desta guerra, este encontro é tardio, por comparação com os encontros dentro e fora da Ucrânia, de Zelensky com muitos outros líderes. Recorde-se que este foi um sinal de apoio à Ucrânia sucessivamente adiado pelo Vaticano - embora se tenham estabelecido outras pontes, como as missões do cardeal Konral Krajewski àquele país para apoio de comunidades católicas locais, onde testemunhou também evidências de crimes de guerra. É preciso não esquecer que existiram ações que, desde o começo da guerra, desagradaram a Kiev. Por exemplo, dois dias depois da invasão da Rússia à Ucrânia, o Papa deslocou-se à embaixada russa na Santa Sé. Também algumas declarações do papa Francisco, parecendo estabelecer uma equivalência entre o sofrimento experimentado por russos e ucranianos neste conflito (como, por exemplo, na Páscoa de 2022), geraram incómodo. Ora, foi este clima que começou a mudar, muito discretamente há cerca de oito meses atrás. Desde então, o papa tem regularmente pedido a paz e assumido a disponibilidade para a diplomacia vaticana atuar como mediadora. Parece, como tal, que este encontro tem o timing que o Papa escolheu e não aquele que foi insistentemente esperado e até reclamado pela generalidade da Igreja Católica e parte da comunidade internacional.
Um líder de uma igreja católica pode ter sucesso a mediar uma guerra entre dois países ortodoxos, com as respetivas igrejas alinhadas com os respetivos governos e divergentes entre si?
O sucesso desta mediação do Vaticano dependerá de vários fatores, como sucede aliás com todas as outras mediações para este conflito. Dependerá, sobretudo, do teor do acordo que estiver a ser discutido. O sucesso poderá também alcançar-se de forma fragmentada e com interrupções. Por exemplo, uma realização importante poderá ser a Santa Sé conseguir recuperar crianças ucranianas levadas para a Rússia, por meio de trocas de prisioneiros através de embaixadas. Possibilidade que o Papa, para já, não declinou. Uma grande vantagem neste caso são as relações florescentes que existem entre a Santa Sé e a Igreja Ortodoxa Russa, depois de décadas de normalização com os papas João Paulo II e Bento XVI. Não é supérfluo dizer que o Papa e os seus diplomatas têm relações de proximidade com a Igreja Ortodoxa Russa e com o patriarca Kirill. Na sua viagem a Budapeste, em abril, o Papa encontrou-se com o arcebispo metropolitano ortodoxo russo, Hilárion, com quem tem um excelente relacionamento. Mais recentemente, avistou-se com o presidente das relações externas da Igreja Ortodoxa Russa, o metropolita Antónji, através do qual está em contacto com Kirill. Ainda quinta feira, por exemplo, Francisco adicionou os mártires ortodoxos coptas mortos pelo Estado Islâmico em 2015 à lista oficial de santos da Igreja Católica. São ações como esta que têm servido para diluir hostilidades e gerar compromisso entre os atores religiosos. Isto é muito importante, porque tem evitado a eclosão de uma guerra religiosa, dentro de um feroz conflito militar. Outro elemento positivo está no facto da neutralidade de posição que a Santa Sé projetou neste conflito, começar por fim a dar frutos. Está aqui em reconstrução o estatuto da Santa Sé como ator diplomático de primeira água. Esta imagem pode agora começar a prevalecer sobre uma dimensão bem conhecida que é a da extensa crítica de Francisco ao militarismo norte-americano ou aos imperialismos.
Estima que esta media;ao do Vaticano possa ter sucesso?
Considero que seria surpreendente assistir ao fim desta guerra pela via religiosa. Seria um triunfo absoluto e inesperado do Vaticano (e da Igreja Ortodoxa), que se imporiam a diversos outros mediadores que, no terreno, buscam soluções políticas e diplomáticas.