"Nunca me preocupei tanto que as instituições não se aguentem, dependendo do que acontecer nas eleições nos EUA"
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Anne-Marie Slaughter é uma advogada norte-americana, analista de política externa, cientista política e comentadora. Foi reitora da escola de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade de Princeton e também a primeira mulher a assumir funções de diretora de planeamento político do Departamento de Estado dos EUA, com Hillary Clinton.
Em entrevista à TSF antes da palestra que deu, na terça-feira, na FLAD, em Lisboa, a agora presidente da fundação e think-tank New America confessa estar muito preocupada, mas paradoxalmente muito otimista com a democracia norte-americana.
Dezassete anos depois do seu livro, ainda é possível acreditar em Manter a Fé nos Valores da América num Mundo Perigoso? Porque, desde aquele seu livro, o mundo mudou tão dramaticamente…
Em muitos aspetos, o mundo é certamente muito mais perigoso do que era em 2007, quando publiquei esse livro. Ao mesmo tempo, há muitas razões para ter esperança neste mundo, partindo do princípio de que podemos, de facto, ser bem sucedidos tanto na mitigação como na adaptação às alterações climáticas. Por isso, vou colocar isso em primeiro lugar e, para mim, esse é o maior perigo do mundo. Um perigo muito, muito maior do que a geopolítica. Mas o que eu vejo é um mundo em que muitas pessoas, em muitas nações, estão finalmente a começar a afirmar-se e a dizer: ‘este mundo também é nosso.’ Não é apenas o mundo dos EUA e o mundo soviético no tempo da Guerra Fria, ou seja, um mundo dividido entre os EUA, a China e a Europa. Sim, um mundo de grandes potências, mas também de potências médias e de potências mais pequenas, todas elas começaram a dizer: vamos perseguir os nossos próprios interesses. Por isso, nesse sentido, penso que os Estados Unidos, podem manter-se fiéis aos seus valores liderando de uma forma muito diferente e, na verdade, em muitos casos não liderando, o que pode parecer uma heresia uma americana a dizê-lo. Mas penso que é importante e estamos numa altura em que é muito mais fácil competir com os nossos rivais ou adversários do que fazer o que é necessário para nos unirmos, para lutarmos contra as alterações do clima, para lutarmos contra o aquecimento global, para reduzirmos as emissões de carbono, mas também para nos protegermos da próxima pandemia que se avizinha e dos enormes problemas que temos com a migração de milhões e, em breve, provavelmente perto de mil milhões de pessoas em movimento. Há todo um conjunto de ameaças realmente grandes no sentido de um mundo perigoso. Para que os Estados Unidos possam manter-se fiéis aos seus valores, teremos de ver o mundo de uma forma diferente, não apenas quem é o nosso adversário, não apenas a democracia contra a autocracia, o que não me parece ser a divisão correta, mas sim como podemos cooperar com os outros e, mais importante ainda, como podemos permitir que os outros liderem a luta contra as grandes ameaças que todos enfrentamos.
Mas em primeiro lugar, será que o país já entendeu que o mundo já não é unipolar?
Bem, os Estados Unidos estão a realizar eleições e, como sabe, nenhum candidato presidencial pode dizer outra coisa senão que somos o líder mundial. Somos o maior país do mundo. Somos um país excecional e, até certo ponto, isso fará sempre parte do ADN americano. Apesar de, até ao século XX, termos sido uma potência em ascensão, mas certamente não éramos o líder mundial. Penso que um número crescente de americanos, tanto à esquerda como à direita, de ambos os lados, pensa que esta ideia de que os Estados Unidos têm de liderar o mundo não é o equilíbrio correto entre as nossas questões internas e as questões globais. E, mais uma vez, que deveríamos estar a estabelecer parcerias com outras nações. Devíamos estar a reconhecer o quanto as outras nações podem liderar. Não se trata apenas de partilhar o fardo. Não se trata apenas de, sabe, terem de se suportar a si próprios, partilhar o fardo. ‘Nós somos o líder. Mas todos vocês pagam 2% do vosso PIB na NATO’. É sim uma visão realmente diferente de vários líderes no mundo. Sim, é um mundo multipolar, mas, mais uma vez, nem sequer penso que um mundo multipolar capte o mundo real em que estamos. O que significa ser multipolar face às alterações climáticas? As inundações, a subida do nível do mar e as secas, as tempestades? Não importa o tipo de poder que se tem. Afeta as pessoas geograficamente e regionalmente de formas que exigem tipos muito diferentes de ação regional e internacional.
Foi a primeira mulher a assumir funções de diretora de planeamento político do Departamento de Estado dos EUA, de janeiro de 2009 a fevereiro de 2011, sob a alçada da secretária de Estado Hillary Clinton. Imaginaria que menos de 15 anos depois, os EUA poderão eleger a primeira mulher e indiana e negra como presidente do país?
Neste momento, estou muito assustada com a nossa democracia e muito orgulhosa da nossa democracia. Ao mesmo tempo, acho extraordinário o facto de Kamala Harris estar lado a lado na corrida para a Presidência. Obviamente, Hillary Clinton estava lá em 2016 e, por isso, tivemos uma mulher candidata que a maioria das sondagens pensava que iria ganhar em 2016, mas isto agora é ainda mais notável devido ao percurso de Kamala Harris, filha de imigrantes e membro de duas comunidades diversas nos Estados Unidos. Mas também como procuradora e como uma forte candidata política, independentemente do facto de ser mulher. Portanto, para mim, tudo isto diz que esta é uma democracia que se pode adaptar a uma população em mudança radical. As instituições manter-se-ão? Ao mesmo tempo, nunca me preocupei tanto com isso, com a nossa democracia, que essas instituições não se aguentem, dependendo do que acontecer nestas eleições.
Então, pensa que desta vez as instituições podem não aguentar…
Podem não aguentar. Quero dizer, não foi...
Porque as instituições foram enfraquecidas…
Porque tem havido um esforço muito deliberado por parte de Donald Trump e dos seus apoiantes para substituir as pessoas que dirigem a maquinaria eleitoral que, da última vez, mesmo sendo republicanas, disseram: ‘a eleição foi justa. Estes votos foram contados. Joe Biden ganhou.’ Muitas dessas pessoas foram substituídas por pessoas que não o fazem, que acreditam que as eleições de 2020 foram roubadas. O vice-presidente, já o ouviram, não reconhece que se tratou de uma eleição legítima. Portanto, quando se sabe. Em 2020, ninguém dizia que o próprio sistema eleitoral era corrupto. Agora temos um candidato a insistir que é e a tentar deliberadamente enfraquecer essas instituições.
Já houve muitas dezenas de ações judiciais apresentadas para contestar os resultados das eleições, que ainda nem sequer aconteceram…
Exatamente. Os tribunais vão aguentar-se como da última vez? Sim, creio que o Supremo Tribunal o fará. Penso que o Supremo Tribunal ainda tem uma maioria a favor do Estado de direito, independentemente das suas divisões noutras áreas. Acredito mesmo. Mas não tenho a certeza quanto a muitos tribunais de recurso, aos tribunais distritais… Mais uma vez, tiveram muitos juízes nomeados durante o período de Trump. Se olharmos para a forma como os processos de Trump estão a ser conduzidos, mas também em termos de legislaturas estatais e burocracias estatais, que no final é onde isto vai acontecer, não creio que saibamos, penso que as instituições estão mais fracas e a polarização parece ainda pior porque… Bem, parece ainda pior!
O seu artigo intitulado “Por que as mulheres ainda não conseguem ter tudo” foi publicado na edição de julho/agosto de 2012 da The Atlantic. Nos primeiros quatro dias após a publicação, o artigo atraiu 725 mil leitores únicos, tornando-se o mais popular já publicado naquela revista. Para a maioria das mulheres houve realmente uma mudança transformadora na última década? Existe um longo caminho para alcançar a verdadeira igualdade de género nos EUA?
Não há dúvida de que ainda temos um longo caminho a percorrer. Basta olhar para a Fortune. Nas 500 maiores fortunas nos Estados Unidos, penso que há 30, talvez 35 mulheres CEO em 500. É um longo caminho a percorrer. E, mais uma vez, no Senado, penso que temos agora 20 senadoras, mas isso é um uma quinta parte, 20%, não é 50%. Por isso, poderíamos ir a outras áreas e ver o caminho que ainda temos de percorrer. Mas também vejo o quanto já avançámos. Quer dizer, eu penso nisso. Tenho 66 anos. Quando tinha 20 anos, não podia imaginar o número de mulheres, médicas, advogadas, engenheiras, políticas, muito menos três mulheres secretárias de Estado e duas mulheres candidatas à presidência. Quer dizer, tudo isso aconteceu durante a minha vida. Portanto, percorremos um longo caminho. E penso que é importante reconhecer esse facto, bem como reconhecer que ainda temos um longo caminho a percorrer, porque, caso contrário, não se considera o poder das nossas instituições e a sua capacidade de fazer mudanças realmente dramáticas ao longo de um período de décadas.
Olhando para estes dois candidatos presidenciais, quão diferentes podem eles ser?
Bem, aqui eu começaria com uma semelhança. São ambos patriotas. E penso que isso é de facto muito importante. Kamala Harris está a concorrer como uma patriota. Sabe, ela é - como acontece frequentemente com a segunda geração, filha de imigrantes - profundamente patriota e não tem medo de o mostrar, e isso nem sempre foi verdade para os candidatos da esquerda. Além disso, eles, sabe, são radicalmente diferentes. Radicalmente, acho que estão ambos preparados para serem duros com o crime, mas a sua visão de onde está o crime e do que é preciso dar prioridade é radicalmente diferente.
Mesmo sobre o que é um crime…
Mesmo sobre o que é crime. E Kamala Harris salienta, e é verdade, que os crimes graves estão a diminuir nos Estados Unidos. Portanto, esta visão da América, de uma carnificina americana, simplesmente não é apoiada em factos. A sua visão do que o país deveria ser é radicalmente diferente. Uma visão de inclusão e pertença e diversidade contra uma visão de uma nação maioritariamente branca, maioritariamente cristã, que é radicalmente diferente. E no que diz respeito às questões económicas, é difícil saber, em parte porque é realmente muito difícil saber o que Donald Trump irá de facto fazer. E porque Kamala Harris, agora, sabe, ela ainda está a concorrer como vice-presidente. E nós não sabemos realmente quem é que ela vai ser quando estiver sozinha. Como Presidente, não sabemos quem é que ela vai nomear. Podemos saber que ela vai basear-se na estratégia industrial de Biden. Vai ser a favor da renovação da indústria transformadora americana, mas será que vamos saber exatamente qual é a sua posição em matéria de comércio? Eu não sei. Não sei. Por isso, é difícil saber em muitas áreas mais específicas. Pode dizer-se que divergem em termos gerais, mas não é possível ver muito os detalhes.
O que pode ser um problema para a campanha dela…
Sim e não. Quer dizer, quando se pensa que se vai ganhar, como para se ganhar nos Estados Unidos tem de juntar e unir muitos grupos diferentes, não é a primeira vez que os candidatos presidenciais são relativamente vagos quanto aos pormenores. Penso que a escolha geral é muito clara. E tu sabes, Kamala Harris, diz que é o futuro contra o passado, penso que é verdade. Ela está a abraçar a nação em que nos estamos a tornar demograficamente. Dentro de 20 anos, seremos uma nação pluralista. Não teremos uma maioria. Portanto, para um país que foi 80% europeu-americano durante 250 anos, é uma mudança incrivelmente grande, e ela está a aceitar isso e está a dizer: “Olha, isto ainda é a América. Vai continuar a ter valores americanos. Vai continuar a ter uma América com uma cultura distintamente americana”. E penso que os apoiantes de Donald Trump estão muito mais confortáveis com a América que temos sido do que com a América em que nos estamos a tornar.
E Trump representa uma espécie de reação a essa tendência sociodemográfica...
Sim. A nova América é um país demograficamente radicalmente diferente, tecnologicamente diferente, as mudanças tecnológicas vão ser irreconhecíveis e o nosso papel no mundo, como já referimos, quando há ameaças globais como as doenças, as alterações climáticas, a segurança alimentar e da água e o clima, não podemos isolar-nos ou intervir contra elas. É uma situação muito diferente que temos no mundo. Penso que os apoiantes de Donald Trump estão a reagir contra a velocidade da mudança. Estão também a reagir contra o sentimento de que não são representados pelas elites, de que muitas pessoas foram deixadas para trás. Isso não está errado. E não é surpreendente que se sintam assim. Que não reconhecem o seu próprio país, e esse é um sentimento poderoso. Não é o mesmo que racismo. E também o vemos na Europa, não é o mesmo que pensar que as pessoas de outra cor de pele ou de outra religião são inferiores. É um sentimento de que este não é o meu país. E eu quero o meu país de volta e isso é uma reação muito poderosa.
E isso explica porque é que, por exemplo, Donald Trump está a liderar as sondagens quando se trata de migrações? Porque é que as pessoas consideram a imigração um tema tão relevante?
Sim. Essa é outra área em que Kamala Harris e Donald Trump estão de acordo. Porque Kamala Harris está a dizer que precisamos de proteger as nossas fronteiras. Precisamos de um sistema ordenado de migração legal. Ambos concordam com isso. Podem discordar quanto a quem deixar entrar e quantos deixar entrar. Mas Kamala Harris está a apontar para isso. O Congresso conseguiu um acordo redigido por conservadores e liberais, todos concordando que precisamos de mais agentes da Polícia de Fronteiras. Não estamos a controlar a nossa fronteira no Sul. É terrível para os migrantes. É terrível para os requerentes de asilo. E, definitivamente, não é a maneira correta de lidar com a imigração. Penso que há um verdadeiro consenso sobre isso. O desacordo é que Donald Trump quer usar a ameaça de criminosos que atravessam as nossas fronteiras, e não de pessoas desesperadas que procuram uma vida melhor, como uma ferramenta política, como uma ferramenta de ódio, de fomento do ódio. Enquanto para Kamala Harris, é no sentido de que temos de rever o nosso sistema de imigração. Mas depois, sabe, somos um país de imigrantes e vamos continuar a ser um país de imigrantes, mas de uma forma legal e ordenada. E, claro, ela não iria deportar 12 milhões de pessoas. Já pensou no que isso faria à nossa economia, a escassez de mão de obra que traria e, quero dizer, tanto em termos económicos como humanos, seria simplesmente horrível.
Qual é o impacto que a eleição de um ou de outro pode ter nas relações transatlânticas?
Hum… Bem, Kamala Harris irá certamente apoiar fortemente a tradicional Aliança Atlântica. Espero que a vejam alargar essa aliança. Penso que ela apoiará a parceria para o Atlântico, criada durante a administração Biden-Harris, mas penso que ela vê o nosso futuro no Atlântico, incluindo a América Latina e África, tanto quanto a Europa e os Estados Unidos, com o que concordo plenamente. Ela será uma forte apoiante da NATO. Donald Trump não está a falar em abandonar a NATO desta vez, o que faz sentido. Mas não tem de o fazer. Tudo o que ele tem a dizer é o que disse, ou seja, não estou necessariamente preparado para defender outros países da NATO porque ele é o comandante-em-chefe. Portanto, o Presidente decide se vai atuar de acordo com a cláusula do artigo 5.º, por isso a mudança, em termos da nossa relação com a Europa será dramática, dependendo de quem for eleito.
Alguns líderes europeus, como Emmanuel Macron e Pedro Sanchez, questionaram a justeza da decisão dos EUA de continuar a enviar armas para Israel, como este último sistema de defesa aérea de Alta Altitude. Mas, neste domínio, penso que não haverá muitas diferenças entre Donald Trump e Kamala Harris…
Não. Quero dizer. Acho que Kamala Harris provavelmente enviaria esse sistema para Israel para se defender do Irão. Ela disse que o Irão é um dos adversários com que mais nos devemos preocupar. Penso que há um verdadeiro consenso de que o povo israelita precisa de se sentir seguro. E se isso for uma questão de armas defensivas contra o Irão, não vamos ver muita discordância. Além disso, há um enorme desacordo em termos de acabar com a guerra em Gaza, na criação do Estado palestiniano. Kamala Harris dirá, tal como disse a Netanyahu, que o grau e a proporção do sofrimento são importantes. Na guerra em Gaza, que está agora a abrandar, é o senhor Netanyahu que tem de parar que temos de pensar tanto na segurança dos palestinianos como na segurança dos israelitas. Isso não é Donald Trump. Donald Trump permitiria, penso que os membros mais à direita da coligação israelita, anexar efetivamente Gaza e a Cisjordânia. É uma diferença radical. A questão será: onde está a Arábia Saudita?
Agora o Líbano...
Bem, começando pelo facto de Donald Trump ter muito orgulho nos Acordos de Abraão. Penso que os Acordos de Abraão foram a coisa certa a fazer. Este é um dos domínios em que eu diria que sim, que foi um verdadeiro passo em frente. Ele quis isso com a Arábia Saudita, tal como a administração Biden-Harris gostaria de fazer um acordo com a Arábia Saudita. Mas, mais uma vez, a diferença é que a administração Biden-Harris também insistirá num Estado palestiniano. Não tenho a certeza onde é que a administração Trump estaria com o Líbano, com a Jordânia, é difícil saber onde está a administração Trump. Mais uma vez, é consensual que o Irão é o adversário. Mas a administração Harris estaria provavelmente disposta a isso. Bem, eu não sei, nesta altura, dado o papel que o Irão está a desempenhar, não sei qual seria o ponto de partida das negociações nucleares. Sei que haveria diferenças, mas é difícil ver onde estaríamos.
E a questão é: será que o Irão estará onde está nesta altura? Estaria o Irão onde está neste momento em termos de posicionamento político e estratégico, se Donald Trump não tivesse saído do acordo nuclear? Não teríamos um Irão diferente nesta altura?
Quero dizer, penso que foi um grande erro sair do acordo com o Irão. Olha, Obama, Biden, eles sabiam que o acordo não era perfeito e sabiam que o acordo não iria impedir o Irão de obter uma arma nuclear. Mas também sabiam que o Irão estava muito perto e que o acordo nuclear Joint Comprehensive Plan of Action (JPCoA) atrasava drasticamente o progresso iraniano. E acordo também criou espaço político no Irão. A retirada do acordo apenas reforçou a linha dura no Irão, o que é contrário aos nossos interesses. Portanto, essa foi uma das áreas em que a administração de Trump, na minha opinião, cometeu um erro grave e uma diferença real para onde estamos agora. Isso e o seu apoio incondicional e ao trabalhar para que o governo israelita faça coisas como mudar a embaixada para Jerusalém e, basicamente, apoiar os israelitas de direita.
Relativamente à Ucrânia e a Putin, acha que as coisas podem evoluir nesta altura?
Se Donald Trump for eleito, isso não será bom para a Ucrânia. Ele disse que vai fazer um acordo, que não vai continuar a enviar armas e apoio à Ucrânia. Será interessante ver o que acontece se ele for eleito presidente e se o Congresso for democrata. E certamente terão, penso eu, uma Câmara dos Representantes democrata. Então, há pressão para tentar continuar a apoiar a Ucrânia, mas, no fim de contas, ele seria de novo comandante em chefe e já deixou bem claro que não pensa que Putin tenha feito mal em invadir o país ou que faria um acordo.
Uma vitória da vice-presidente e também uma maioria do Congresso democrata, o que é que isso significará para a evolução da guerra na Ucrânia? Pergunto porque pode não significar muito para os ucranianos, ou podemos simplesmente continuar nesta espécie de impasse...
Sabe, penso que sim. É muito difícil saber, em parte porque isto depende realmente tanto da Europa como dos Estados Unidos. Os Estados Unidos ofereceram a maior ajuda militar, mas a Europa forneceu a maior ajuda global, combinando militar, económica e política. Portanto, e penso que isto é correto porque a Europa tem de garantir a sua própria segurança, não porque os Estados Unidos o queiram, mas porque isso é correto. É isso que vai manter os europeus mais seguros. Porque vai ser uma questão de divisões no seio da União Europeia em termos de saber se vão insistir nas negociações, se vão tentar congelar o conflito, o que penso ser o cenário mais provável, ou seja, como já fizemos antes, não reconhecer a legitimidade da invasão ou do território que a Rússia ocupou. Tal como fizemos com a Alemanha, a Coreia ou outros Estados divididos, mas será muito difícil para mim saber, mesmo com uma administração Harris, se vamos continuar a oferecer o máximo de apoio possível e continuar a lutar, caso em que a situação se assemelha à Primeira Guerra Mundial, em que os lados se opõem e muita gente morre. Penso que estamos, definitivamente, numa administração Harris, e na Europa, penso que vão apoiar a Ucrânia que deve ser reforçada tanto quanto possível, provavelmente aderindo à UE, com alguns tipos de garantias da NATO, mas no que se refere ao conflito propriamente dito, é muito de saber.
O Secretário-Geral da ONU é português. Tem sido muito criticado, sobretudo pelas suas posições em relação ao Médio Oriente pelo Governo israelita. Mas a minha pergunta sobre a ONU será algo diferente. Como pensa que a ONU deve ser adaptada ao mundo actual, especialmente no que respeita ao Conselho de Segurança?
Sim, eu apoio Guterres. Penso que ele tem feito um trabalho muito importante e estive na Assembleia Geral da ONU em setembro passado e na aprovação do Pacto para o Futuro, no pacto digital global e numa declaração para as gerações futuras, penso que é o pacote mais importante de resoluções da ONU, certamente desde os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio ou até desde 1945. Constituem um verdadeiro esforço para reformar as Nações Unidas para este século. Poderá ser fraco, mas é melhor do que qualquer outro. Penso que se não houver uma reforma do Conselho de Segurança, este será completamente irrelevante em 2040. Cem anos depois, refletirá a política de 1945 e o mundo não vai tolerar isso. Se vamos conseguir essa reforma, penso que ainda é uma questão muito em aberto. Os Estados Unidos têm-se manifestado fortemente a favor da reforma. Mas, mais uma vez, isso depende da Europa, porque a Alemanha não vai aceitar uma reforma sem ter lá um assento. Não consigo imaginar um mundo em que a França, a Alemanha, a Europa como União Europeia e o Reino Unido sejam membros permanentes e todos os outros no mundo não. Isso não vai acontecer. E o resto do mundo não vai aceitar que esses três Estados tenham assentos permanentes sem haver assentos permanentes para África e Ásia. Por isso, a Europa também tem de decidir o que vai aceitar. Se a Europa dissesse que vai ter um lugar para a UE e outro para um país europeu, bem, então estaria numa posição de negociação com outros continentes.
Portanto, é possível conseguir uma reforma. Não estou a suster a respiração. Penso que a maior probabilidade é que a Assembleia Geral desempenhe um papel cada vez mais importante. São 193 Estados, onde se podem fazer acordos. Portugal e muitos Estados mais pequenos e muitas potências médias podem, de facto, construir coligações maioritárias e... É o órgão das Nações Unidas onde uma maioria de votos pode efetivamente governar; e sem maioria de votos, como sabem aqui na União Europeia, nenhuma instituição internacional será verdadeiramente eficaz. Por isso, consigo imaginar um mundo em que entre as organizações regionais e a Assembleia Geral e coisas como a Comissão de Consolidação da Paz e outras entidades das Nações Unidas, é preciso refazer a Organização Mundial do Comércio, o FMI e o Banco Mundial, estou a ver organismos internacionais globais que estão a desempenhar um papel realmente importante, respondendo aos desafios deste século. Não é um dado adquirido, mas eu diria que, sob a direção de Guterres, as Nações Unidas estão posicionadas para tornar possível esse tipo de reforma.