Pela primeira vez em mais de dois séculos, um imperador japonês abdicou do trono. A cerimónia durou apenas 10 minutos. Com o filho, Naruhito, a dinastia mais antiga do mundo entra amanhã numa nova era.
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Este é o ultimo dia de Akihito como imperador do Japão. Aos 82 anos o monarca sente-se cansado e deu indicações de que queria abdicar. Akihito assumiu funções em 1989, após a morte do pai. As cerimónias de entronização duraram quase dois anos.
Akihito é o primeiro imperador a abandonar o trono em cerca de dois séculos. O último tinha sido Kokaku, que reinou entre 1780 e 1817, e que abdicou a favor do filho Ninko.
Esta manhã, a cerimónia de abdicação durou apenas 10 minutos. Akihito agradeceu, de novo, ao povo toda a colaboração nos 30 anos de reinado e manifestou a esperança de que a próxima era seja pacifica e próspera. O agora imperador emérito prometeu que vai continuar a rezar pela paz e felicidade do Japão e das pessoas de todo o mundo.
Akihito tem sofrido com vários problemas de saúde nos últimos anos: foi submetido a uma cirurgia cardíaca e sofre de cancro na próstata.
O reinado de três décadas fica marcado pela aproximação entre a família imperial e o povo. Em 1945, o imperador estava tão afastado do cidadão comum que as pessoas ficaram chocadas ao ouvir, pela primeira vez, a voz de Hirohito a anunciar a rendição do país na Segunda Guerra Mundial.
Os sinais de que Akihito ia ser diferente do pai surgiram logo em 1959, quando anunciou o casamento com uma plebeia: o príncipe herdeiro punha um ponto final numa tradição de 1.500 anos. O namoro entre Akihito e Michiko ficou conhecido como o "romance do court de ténis" porque foi durante um jogo que se conheceram. O casal teve três filhos que foram criados em casa. Akihito, tal como mandava a tradição imperial, tinha sido educado longe dos pais desde os dois anos de idade.
Akiihito viajou pelo país mais do que qualquer imperador anterior e interagiu com a população. Foi também o monarca que mais dignitários estrangeiros conheceu. Em 1998 visitou a Grã-Bretanha e encontrou-se com a Rainha Isabel II, uma visita que provocou muitos protestos por parte dos antigos prisioneiros de guerra. Também nos anos 90 esteve com George Bush pai, com quem jogou ténis duas vezes, conseguindo duas vitórias. Jorge Sampaio está também entre os líderes estrangeiros que Akihito conheceu. Foi ele que recebeu o imperador quando este visitou a Expo 98.
Apesar da modernização e aproximação, o primeiro discurso ao país, feito através da televisão, só aconteceu em 2011, depois do tsunami. A tragédia causou 20 mil mortos e desaparecidos e desencadeou a crise na central nuclear de Fukushima. O casal imperial visitou a zona de desastre um mês depois e foi visto de joelhos a conversar com sobreviventes. Perante as rígidas tradições japonesas, esta nunca vista informalidade do imperador surpreendeu e foi interpretada como uma prova de carinho e simpatia para com o povo.
Já antes, em 1991, depois de uma erupção vulcânica, Akihito e Michiko tinham visitado a zona vestindo roupas casuais e tentando consolar as vítimas. A iniciativa chocou os conservadores japoneses, mas foi adorada pela comunicação social e o povo.
Mais recentemente, o casal imperial também não levantou qualquer problema quando uma adolescente os fotografou e colocou a foto no Twitter. O caso causou alguma polémica, com os mais velhos a considerarem que a divulgação da fotografia foi um sinal de desrespeito.
O reinado de três décadas é conhecido como a era "Heisei", que em japonês significa "alcançar a paz". No último discurso que fez, antes da cerimónia de abdicação, Akihito agradeceu o facto de, durante o tempo em que governou, o Japão não ter vivido uma nova guerra. Reconheceu ainda a importância do apoio do povo e da imperatriz Michiko.
Esta foi uma era em que o Japão viveu uma desaceleração do crescimento económico, posicionou-se atrás da China como a segunda maior economia do mundo, e acumulou uma dívida nacional sem precedentes. O Heisei também foi marcado por alguma turbulência política. O país teve 17 primeiros-ministros, e apenas quatro estiveram no poder mais de dois anos.
Apesar disto, os imperadores Akihito e Michiko foram uma fonte de estabilidade e confiança para a sociedade japonesa. Consolaram vítimas de desastres naturais, deram um exemplo humanitário e tornaram-se um símbolo da consciência moral do Japão, mantendo viva a memória da Segunda Guerra Mundial.
Akihito teve que lidar com o legado do pai, em cujo nome o Exército Imperial ocupou metade da Ásia durante a Segunda Guerra Mundial. Até hoje, as elites conservadoras não assumem a responsabilidade ou pedem desculpa pelo sofrimento causado pelo Japão, mas o imperador tem uma atitude diferente. Embora esteja proibido de fazer declarações políticas, fez questão de visitar a Indonésia e a China durante as primeiras viagens oficiais. Na China, lamentou a agressão do Japão e elogiou a cultura chinesa.
Quando o primeiro-ministro, Shinzo Abe, evitou usar a palavra "arrependimento" durante o discurso, em 2015, para marcar o 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, o imperador fez o próprio discurso e falou sobre a "profunda autocrítica" do Japão.
No início de março, Akihito participou num rito, no Palácio Imperial, que deu inicio às cerimónias de abdicação. Este ritual serviu para informar os ancestrais de que decidiu abandonar o trono e as cerimónias relacionados com a sucessão vão desenrolar-se durante algumas semanas.
O herdeiro
Com a saída de Akihito, cabe ao filho mais velho, Naruhito, assumir o trono. A nova era passa a ser conhecida por "Reiwa", um nome constituído por dois carateres japoneses: "rei", que significa "comando e ordem", e "Wa", que simboliza "harmonia e paz".
Naruhito tem agora 59 anos e tornou-se príncipe herdeiro em 1989, quando o avô morreu. Foi o primeiro elemento da família imperial a estudar no estrangeiro: depois de se formar em História numa Universidade do Japão, esteve em Oxford entre 1983 e 1985. Na Grã-Bretanha conseguiu escapar, pela primeira vez, às rígidas regras do Palácio Imperial. Conviveu com outros estudantes e também com a família real britânica.
Em 1993 casou com Masako Owada, filha de um diplomata, e também ela formada em Oxford e em Harvard. Na altura com 29 anos, abandonou uma promissora carreira no Ministério dos Negócios Estrangeiros para casar com o príncipe herdeiro. Naruhito prometeu protegê-la durante o período de transição, mas a nova princesa teve muita dificuldade em adaptar-se ao isolamento do Palácio Imperial.
Submetida a uma enorme pressão para ter um filho, Masako isolou-se cada vez mais e tornou-se conhecida como a "princesa triste". Em 2001 nasceu a princesa Aiko, a única filha do casal. O alívio para Masako só chegou em 2006, quando a cunhada teve um rapaz: o Japão já tinha um novo herdeiro para o trono.
Em 2004, preocupado com o estado de saúde da mulher, Naruhito acusou aqueles que administram a vida da família imperial de estarem a asfixiar a personalidade de Masako. Em declarações pouco habituais, o príncipe herdeiro defendeu que a mulher estava "esgotada por, nos últimos 10 anos, ter feito todos os esforços para se adaptar à vida da realeza. Há uma tentativa de apagar e negar a antiga carreira profissional dela. A angústia de Masako aumenta porque quase não lhe permitem visitar outros países apesar de ela ter sido uma diplomata". Nesse mesmo ano, o Palácio revelava que a princesa estava em tratamento quase desde o início do casamento, por causa de uma depressão profunda causada por stress.
Mais tarde, Naruhito pediu desculpa pelas declarações, mas apelou a uma modernização da família real, defendendo que as funções que lhes são atribuídas devem adaptar-se aos tempos modernos.
Com a chegada do casal ao trono, Masako vai ter um desafio maior porque até agora tem tentado manter-se, o mais possível, fora das luzes da ribalta. Durante os últimos anos, esteve presente em poucas cerimónias oficiais e só saiu do país uma vez, para assistir à entronização de Guilherme e Máxima como reis da Holanda.
Em dezembro de 2018, Masako divulgou uma declaração em que garantia que, apesar de se sentir insegura com as novas funções, tudo fará para ajudar o país. A princesa adiantou que está a recuperar e, por isso, poderá desempenhar mais funções.
Naruhito vai ser o primeiro imperador japonês nascido depois da Segunda Guerra Mundial. Tal como o pai, no entanto, ele dá grande importância a esse período histórico e recusa qualquer tentativa de revisionismo. Numa conferência de imprensa em 2015, afirmou que "numa altura em que as memórias da guerra começaram a desaparecer, é importante olhar para trás de forma humilde e transmitir corretamente as trágicas experiências da guerra".
O futuro imperador já manifestou por várias vezes a intenção de seguir o exemplo dos pais, a quem faz rasgados elogios pela forma como sempre se identificaram com o povo. "Eu gostava de continuar a pensar nas pessoas e rezar por elas, e tal como suas Majestades, estar sempre perto delas, compartilhar as suas alegrias e tristezas", disse o príncipe herdeiro em 2017.
Tal como o pai, Naruhito sempre se interessou pelos oceanos e é um especialista em água. Em 2007 foi nomeado presidente honorário do Conselho Consultivo do Secretário Geral da ONU para Água e Saneamento. Desde então tem participado em várias conferências internacionais sobre gestão de recursos hídricos. Depois do Tusnami que atingiu o Japão em 2011, manifestou a intenção de estudar os sismos e os tsunamis para que os países se possam preparar para estes fenómenos.
Nos tempos livres, Naruhito gosta de fazer alpinismo e tocar viola.
Entronização
Apesar de assumir funções já esta quarta-feira, a entronização do futuro imperador só vai acontecer em outubro. A cerimónia, que vai ter 2.600 convidados, acontece seis meses depois da resignação de Akihito. O Governo japonês, que organiza todo o procedimento, decidiu reduzir para quatro o número de receções que os novos imperadores vão realizar relacionadas com a ascensão ao trono.
Há 30 anos, as cerimónias de Akihito contaram com 3.400 convidados e os imperadores estiveram em sete receções.
Nos próximos meses, e para assinalar a entronização, vão realizar-se vários festejos. Duas das primeiras cerimónias têm lugar esta quarta-feira, no Palácio. O novo imperador vai herdar uma espada, uma joia, e os selos - privado e do Estado - como prova da ascensão. Mais tarde, Naruhito reúne-se com representantes do povo, incluindo o primeiro-ministro Abe, ministros de Estado e chefes de governos locais. Ao todo, maisde 330 pessoas. Estes atos simbólicos não deverão demorar mais de 10 minutos.
A 22 de outubro, a principal cerimónia de entronização será seguida por um desfile. No dia seguinte terá lugar um banquete num hotel situado no centro de Tóquio. O evento será organizado pelo primeiro-ministro e vai ter cerca de 900 convidados, incluindo dignitários estrangeiros.
Livro publicado
O príncipe Naruhito foi o primeiro membro da família real a escrever uma autobiografia. Editado no Japão em 1993, o livro conta as experiências vividas entre 1983 e 1985, anos em que estudou em Oxford.
"O rio Tamisa e eu: uma memória de dois anos em Oxford" é o titulo da obra que foi agora reeditada na versão inglesa. No livro, Naruhito descreve o dia-a-dia na universidade britânica, para além das viagens que foi fazendo no Reino Unido e na Europa.
O príncipe conta, por exemplo, a vez em que foi impedido de entrar num bar porque as calças de ganga que vestia não respeitavam o código de vestuário do local. Numa outra página, surge a descrição de como quase inundou o dormitório quando tentou lavar a roupa sozinho pela primeira vez.
O antigo embaixador da Grã Bretanha no Japão, Hugh Cortazzi, foi o responsável pela tradução da obra para inglês. Defendeu que o livro revela o charme do príncipe, a modéstia, o sentido do humor e a forma conscienciosa como se dedicou aos estudos. Qualidades que, segundo Cortazzi, irão sobressair quando ele se dedicar às tarefas oficiais.
Sucessão
O trono do Japão tem neste momento mais dois sucessores: se algo suceder a Naruhito, o futuro está assegurado. O príncipe Fumihito, irmão mais novo de Naruhito, é o primeiro na linha de sucessão. Tem 53 anos, é licenciado em ciência politica e tem um doutoramento em ornitologia. A partir de quarta-feira passa a ser dele o título de príncipe herdeiro.
O segundo sucessor é o príncipe Hisahito, o filho mais novo de Fumihito e da mulher Kiko, e o único neto de Akihito.
Entre 1965 e 2006 não nasceu qualquer rapaz na família imperial e foi colocada a hipótese de se alterar a Constituição para que a princesa Aiko, filha de Naruhito e Masako, pudesse suceder ao pai. Antes de ser tomada qualquer decisão, nasceu Hisahito e nada foi mudado. Hisahito é, no entanto, o único garante da continuidade da família imperial. Tudo depende de um rapazinho de 12 anos, da saúde dele e de estar ou não disponível para no futuro casar e ter filhos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a organização, obrigações e privilégios da família imperial foram alterados. A árvore genealógica foi reduzida, com a vasta maioria das antigas casas nobres do Japão a serem cortadas - apenas a família imediata do Imperador Hirohito e as dos irmãos foram autorizadas a permanecer na realeza. Ficou assim mais difícil assegurar a sucessão.
Sob as regras atuais, as princesas perdem o estatuto de realeza depois do casamento com um plebeu. O problema é que todas as princesas casam com plebeus porque já não existe outra nobreza no país. Nesta realidade, os filhos delas ficam automaticamente excluídos da sucessão.
O Japão conservador e patriarcal exclui as mulheres, mas elas são atualmente 13 numa família de apenas 18 elementos.
Quando aceitou mudar a Constituição para que o imperador pudesse abdicar, o Parlamento japonês recomendou que começasse a ser pensada uma outra alteração para facilitar a sucessão. Isso dificilmente vai acontecer com o atual primeiro-ministro, Shinzo Abe, que é um conservador. Apesar disto, o povo nipónico está recetivo à ideia: uma sondagem realizada este ano, mostra que a maioria da população aprova a ideia de ter uma mulher imperatriz.