Preside ao Instituto para o Diálogo Inter-Religioso, há mais de 20 anos impulsionado pelo então Arcebispo Bergoglio. Omar Abboud, com cargo político na capital argentina, peronista, é o amigo muçulmano do papa Francisco.
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Foi secretário-geral da Nação Árabe Islâmica Argentina e do Centro Islâmico da República Argentina, é o atual subsecretario na Secretaria Geral do Governo e Relações Internacionais da Cidade Autónoma de Buenos Aires. É também Presidente do Instituto de Diálogo Inter-religioso (IDI), entidade fundada com o Padre Guillermo Marco, o Rabino Daniel Goldman e promovido na altura pelo então Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio. Trabalham juntos há mais de vinte anos num modelo de diálogo já seguido noutras partes do mundo. É, no fundo, o amigo muçulmano do Papa Francisco.
Sentado com a TSF numa mesa do café Petit Colon, na Praça Tribunales, em Buenos Aires, Omar Abboud fala do Papa e do amigo Bergoglio. Antes disso, explica que a origem ou a conformação da comunidade islâmica argentina remonta à dissolução do Império Otomano. Foi nessa altura que começaram a chegar os fluxos migratórios mais fortes, em geral por duas províncias do império, que hoje são dois países soberanos, a Síria e o Líbano (de onde são os seus pais).
Omar Abboud, pelo que é possível saber, não há notícias de tensões inter-religiosas na Argentina...
"Não, mas isso é uma particularidade da República Argentina. Discutimos sobre tudo o resto, mas não sobre religião, quer dizer, aqui houve... o fenómeno da escola pública, não é verdade que a Argentina tivesse uma escola pública de grande qualidade e que não tem hoje, que a Argentina teve numa época em que ligava todas as pessoas, colocando-as em pé de igualdade. O filho do médico juntamente com o filho do encarregado de um edifício ou o filho de um operário, de uma fábrica ou de qualquer outro grupo religioso. Isto gerou uma espécie de igualdade que fez com que a questão da religiosidade nunca fosse um problema na República Argentina. De facto, as primeiras associações árabes tinham na sua direção pessoas de origem muçulmana, judaica e cristã. Isso aconteceu até 1948, quando a resolução das Nações Unidas começou a gerar algum tipo de tensão política que nunca passou disso. Por outras palavras, houve um desanuviamento, mas não houve confronto".
Porque é que o então Cardeal Bergoglio precisou de criar um instituto para o diálogo inter-religioso?
Ele esteve sempre atento à questão da diversidade. E devem lembrar-se que no ano 2000-2001 a Argentina sofreu uma profunda crise de características políticas e económicas, com pessoas nas ruas e com várias mortes. De alguma forma, nessa altura, a credibilidade das pessoas foi orientada ou levada mais para locais que tinham algum tipo de representação religiosa, em termos de uma grande mesa chamada Mesa de Diálogo Argentina, onde participava ativamente a Igreja, que é afinal a maioria das pessoas aqui, e de alguma forma, em termos de tensão social, serviu para de algum modo acalmar as coisas para que voltassem a entrar nos eixos politicamente. Bem, em 2001 as Torres Gémeas também foram derrubadas. Nessa altura, em particular, ou na particularidade do Islão, começou-se a falar da questão do fundamentalismo religioso. Não conhecíamos a palavra, ou melhor, conhecíamo-la, se quiserem, com um significado ou com uma conotação de uma identidade muito forte e não propriamente do que ela significa. E, de facto, pode constatar-se que há uma - nessa altura ou um ano antes ou um ano depois, - há uma redefinição em termos da Real Academia Espanhola. Trata-se de um movimento de massas que visa restaurar a pureza islâmica através da aplicação estrita do Corão na vida social. É uma definição bastante falaciosa e tendenciosa.
Portanto, havia duas coisas: uma, a questão do Islão no contexto do fundamentalismo, do terrorismo talibã, e a outra, um ataque direto à religião. Portanto, houve um ataque ao Islão e um ataque direto à questão da religiosidade por parte de muitos setores secularistas fundamentalistas. Depois veio a questão da guerra do Iraque, não é verdade? Uma guerra imposta, uma guerra da qual eles não saíram porque acho que devem ter encontrado duas bobinas e veneno de formiga como armas químicas. Isso é o mais químico que podiam ter. E, no entanto, justificaram-na.
Logo, o que é que decidiram fazer?
O que fizemos foi criar espaços e espaços de diálogo preventivo. A primeira questão foi tentar contextualizar em termos sociais o que o fundamentalismo estava a fazer às pessoas. Embora estivéssemos particularmente interessados na questão do fundamentalismo religioso, estávamos basicamente interessados na estrutura mental fundamentalista, porque essa não a tínhamos na religião aqui na Argentina, mas tínhamo-la na política ou no futebol ou na economia. Bem, como é que essa mente foi moldada e como é que não foi? Era possível educar para o diálogo através de diferentes propostas múltiplas.
O fenómeno na Argentina não tinha o problema da comunidade islâmica e da comunidade judaica juntamente com a comunidade católica, não andamos por aí a atirar pedras uns aos outros. Há alguém que de vez em quando sai com uma generalização, mas isso não acontece com frequência.
Como é que se constrói o diálogo inter-religioso?
Uma coisa importante é que o diálogo inter-religioso é construído na nossa visão, a mentalidade dialógica é construída e a ideia de coexistência, que por vezes foi muito difícil de explicar aos falantes de inglês, porque não é o mesmo que coexistência na nossa língua e não tem absolutamente nada a ver com tolerância, são todas etapas e tipos de construções necessárias para uma abordagem holística da sociedade. O diálogo é um método. A religião entendida corretamente não é verdadeira. Quando liberta o homem, é um mecanismo de diálogo. Deixamos de fora o espaço do sagrado, porque isso é polémica teológica e nós não falamos de teologia.
Já conhecia os outros dois membros com quem fundou o Instituto Para o Diálogo Inter-religioso, Daniel Goldman e Guillermo Marcó?
Com Daniel Goldman, conhecemo-nos em 1997, 98, quando ambos fazíamos parte de um Conselho de Política Social. Porque essa era também a questão. Por outras palavras, sempre a tentar gerar aberturas e mecanismos para os mais vulneráveis, ou seja, como um sentido de missão, certo? E mais tarde encontrámos o Padre Guillermo Marcó, que era o porta-voz do Cardeal Bergoglio, e de certa forma promovemos o primeiro documento, assinado por Bergoglio, pelo Centro Islâmico da República Argentina, pela Associação Mutual Israelita Argentina e pela Delegação Argentina de Assuntos Israelitas na Argentina. O primeiro documento deste género contra o fundamentalismo, no qual o comprometemos de alguma forma. Embora o instituto já estivesse a funcionar há dois ou três anos, fizemo-lo formalmente com base nesse documento, que foi o primeiro do género. Então, nessa altura, houve a generosidade da Igreja, através do Cardeal e de outros membros da Igreja, para participar nas cerimónias patrióticas. Embora o papel central seja desempenhado pela missa, as outras religiões minoritárias também participam em termos de expressão, em suma, da única coisa que nos une a todos por igual, que é a nossa identidade argentina.
E o que é que nestes 20 anos ou 22 dois anos, o que é que conseguiram fazer, o que é que é mais significativo para vocês de tudo o que conseguiram alcançar?
Olhe, no nosso país, as questões relacionadas com a educação, porque repito, a verdade é que nós não vemos um migrante do outro lado, da outra margem do Mediterrâneo, da mesma forma como eles são vistos na Europa e como eles são presumidos na Europa. Uma coisa que vemos todos os dias, mesmo no lugar mais culto do mundo, o lugar onde nasce a civilização, que é o Mediterrâneo e que se tornou na maior sepultura aberta de todas, infelizmente, e não é compreensível que as pessoas estejam a morrer desta forma. Mas também não se pode atribuir toda a responsabilidade aos países europeus, porque eles também têm a sua própria dinâmica, os seus próprios problemas. Portanto, bem, o mais justo seria encontrar soluções racionais de desenvolvimento, não é? E que este já não é o discurso do politicamente correto, porque a situação, na minha opinião, está a tornar-se cada vez mais tensa, especialmente nesta era pós-colonial ou neocolonialista ou colonialismo de uma forma diferente.
Mas, para além disso, aqui conseguimos algumas questões na educação, claro, levámos a nossa mensagem a diferentes lugares onde isso era impossível, particularmente em alguns países islâmicos, quero dizer, o facto de nos juntarmos. E também fomos a Israel. E, pessoalmente, pude testemunhar o abraço que o Papa nos propôs no Muro das Lamentações, com ele, com o rabino Skorka e comigo. Foi absolutamente uma iniciativa do Papa, nem sequer se pensava que isso pudesse acontecer. Quer dizer, a verdade é que a agenda dizia outra coisa. Sim. E havia também outras pessoas importantes, líderes políticos, mas na altura, o único que teve a coragem de estar presente foi o Papa. Os outros não tiveram. O Papa propôs uma questão que teve de mudar durante a viagem, porque quase um mês depois há uma apresentação do livro, mas no Vaticano.
Isso foi quando?
Na viagem de Sua Santidade à Terra Santa, à Jordânia à Palestina.
Em que ano?
2014.
É depois disso que sai o livro Superar o Muro?
Exatamente. O livro é um livro de testemunhos. Temos outros livros publicados aqui, como o Todos sob o mesmo céu, que também falam sobre esta questão, sobre a experiência pessoal, porque no diálogo, a pessoa reconverte-se sem, de alguma forma, cortar a sua identidade.
Esse abraço no Muro...
O ato ia ser outro, mas Francisco transformou-o nisso. Um abraço em frente ao muro. Teve a coragem de convidar o presidente da Palestina e o presidente de Israel. Um mês depois, diz: "Convido-vos a rezar em minha casa, em público". Ele diz isto, não é? E um mês depois estão no Vaticano a plantar uma oliveira.
Esse momento no Muro das Lamentações ficou consigo como algo inesquecível?
Acho que alguns muçulmanos não se reveem, não se sentiram representados com isso, com esse gesto. Alguns já me disseram isso, já falámos, mas para mim foi como um reset? E sobretudo tomando a importância do momento, porque estávamos em Jerusalém, éramos três que queríamos dar um sinal, não é? Foi uma ideia de um, que foi o Papa Francisco e nós acompanhámo-lo. De facto, foi a primeira vez que um judeu e um muçulmano fizeram parte de uma delegação oficial do Vaticano.
Como é a sua relação com o atual Papa Francisco?
Pode imaginar que é uma pergunta que já me fizeram muitas vezes, não? Eu era amigo de Jorge Mário Bergoglio aqui em Buenos Aires. Visitava-o uma vez por semana para tomar um café, conversar um pouco, aprender alguma coisa sobre as visões que partilhávamos, não é? Sim, éramos amigos. E sim, continuamos a ser amigos. Mas sendo ele quem é, por mais que os sentimentos persistam, já não nos pronunciamos da mesma maneira em termos doo que é a amizade, a natureza muda. Embora o afeto, o carinho, a compreensão, o facto de o ter visto muitas vezes como papa e tudo isso estejam lá, a noção de tempo é diferente, de disponibilidade, de cerimonial, de protocolo. Isso não afeta afetivamente, mas afeta, de certa forma um bocadinho, limita. Por isso, é muito difícil dizer que hoje sou amigo do Papa. Quando se trata de quem é que se trata, não é? Eu conheço a pessoa, mas continua a ser o herdeiro de Pedro.
Falavam de futebol nessas reuniões antigamente?
Sim.
São ambos do mesmo clube?
Não, não, não, não, eu sou do Boca, ele é do San Lorenzo. Também não gosto muito de futebol. Talvez partilhássemos mais uma noção de... para além de, obviamente, tocarmos em alguns temas de características teológicas em termos de informação, de intercâmbio, também de literatura, Bergoglio durante muitos anos deu aulas de literatura. Portanto, aprender um pouco de análise e de crítica de Borges com um professor magnífico como ele, é algo que não se deve desperdiçar. E além disso, partilhamos a mesma origem, ele é do bairro das Flores, o meu avô também é do bairro das Flores. Flores é um bairro mágico, se quiserem, aqui em Buenos Aires há coisas que são comuns aos portenhos, coisas que dois habitantes de uma capital e cidade portuária e ambos descendentes de imigrantes, não é verdade?, têm em comum.
E a missão do Papa nesse mundo complexo e turbulento? Como é que vê o que ele tem conseguido fazer nestes dez anos?
Vejamos. Aqui temos de o dividir em duas partes, uma, o que é para o mundo e a outra, o que é particularmente para a Argentina e para os argentinos. E nós como argentinos, mais uma vez, em muitos casos, não estivemos à altura das circunstâncias, não é verdade? Alguns grupos e alguns setores do poder maltrataram a figura, incluindo através dos meios de comunicação social. Tornaram-se exegetas de fotos, ou porque ele tirou uma foto com um, ou porque que tirou uma foto com outro... foi dos mais baixo, do mais desprezível. E, por outro lado, as pessoas que o seguem, o povo, as pessoas humildes, todos aqueles que o amam, o que afinal é com quem ele se relacionou, certo? Por outro lado, em alguns casos, o uso e abuso...
O uso e abuso da sua figura para proveito político...
Para hipótese de ganho político, porque nem sequer é um ganho político real, são duas naturezas completamente diferentes e Bergoglio como autoridade espiritual, vê passar o poder temporal como viu toda a vida. Ele vê os presidentes passarem como um padre. O padre vê o presidente, o secretário, o deputado passarem, esse é o poder temporal. A autoridade espiritual alerta o poder temporal. Assim, parece-me que Bergoglio, na sua qualidade de Papa desde março de 2013, alertou para os males do mundo moderno como nenhuma outra pessoa, nenhum outro líder mundial foi como o papa, em termos de gerar denúncias e avisos sobre questões relacionadas com a pobreza, os migrantes, as alterações climáticas, obviamente, com o cuidado da casa comum, com a ideia do diálogo inter-religioso e, claro, também com a questão da economia fundamentalista. Portanto, parece-me que, nesse sentido, será mais apreciado daqui a alguns anos em termos de ver um Papa que, se quisermos, baixou a questão da espiritualidade e uma visão de diálogo interno para uma aplicação dos males do mundo moderno, fazendo disto um exercício espiritual, com a característica mais notória, que é a questão do cuidado com a terra, que não é menor, que não é menor. Tive oportunidade de o ouvir no Congresso dos Estados Unidos, no seu discurso, em dois pontos. Quer dizer, resumiria isto em primeiro lugar na coerência, porque a pregação em relação ao clima, à mudança, à questão dos pobres, dos migrantes, tudo isso esteve sempre no seu discurso, mesmo quando era arcebispo, e parece-me que a nível global isso lhe deu uma escala diferente e...
Outro tipo de visão...
E também promovendo a questão do diálogo inter-religioso. Há algo que devemos a Francisco. Antes, no ano 2000 ou mesmo antes, quando organizávamos conferências sobre o tema e nos sentávamos com representantes de várias religiões, dizíamos que este quadro não se reproduzia em lado nenhum do mundo porque seria impossível. Vinte anos depois, e dez anos após o início do papado de Francisco, essa fotografia é hoje muito comum. Vemos judeus, muçulmanos, cristãos, evangélicos e outras religiões a juntarem-se. E parece-me que, como resultado do seu trabalho, isso é bastante comum. Mesmo os encontros em Abu Dhabi, a recomposição que ele gera, que é muito importante com o mundo islâmico, que de certa forma teve alguns momentos e algumas áreas de tensão com o Pontífice anterior. E ele deu-lhe não só a solução para este problema, mas acompanhei-o a um país islâmico e até me pareceu estranho o carinho com que o receberam. Quer dizer, o tipo de manifestação, de afeto com ele, com ele em particular, com a pessoa dele. E, no entanto, se o seguirmos, se formos a Roma, se o virmos na audiência pública ou no Angelus, as pessoas continuam a ir, enchem. E é difícil porque o fenómeno da religiosidade é algo que está muito atacado, a religião em si mesma, ou seja, a ideia de se referir a algo transcendente que tem como eixo uma divindade é uma ideia que se considera retrógrada. Os valores da religião são os primeiros a serem atacados pelo pseudo-progressismo. Sim, isto é, a contestação e a crítica em absolutamente tudo. De alguma forma sempre colocam como objeto de opressão, a questão da religiosidade. Nalguns casos o catolicismo, o cristianismo, noutros casos o islamismo, de formas diferente. Portanto, parece-me que este século é, como disse Malraux, iria ser um século religioso. Não sei bem se ele estava a referir-se às religiões ou se, basicamente, as pessoas iam tomar tudo como religião, não era? Quer seja a religião da política, a religião da economia, a religião do clube de futebol. E refiro-me ao facto de se tornarem religiosas, de procurarem uma identidade e de se tornarem bastante fundamentalistas em relação a alguns preceitos.
Muito disso, é a manipulação da religião...
Absolutamente, absolutamente. Não é apenas, de alguma forma, a questão do integrismo. É basicamente uma forma de se posicionar diante de um fato. Você não pode atribuí-lo especificamente à doutrina da religiosidade. Esse é o processo humano que o transforma em fundamentalista, não a própria religião. Porque, no fundo, a verdadeira religião, a sensação, a crença, é da boca para dentro, não é da boca para fora; é da boca para dentro, da boca para fora é outra coisa. É o ser humano interagindo com os pares, com os seus, com alguns ditames e preceitos, mas nenhum que prontamente convide a anular o outro. Então, pode-se encontrar o critério de anulação na religião e a verdade é que se o infiel, mas não, não, mas nunca pode se levantar. Há uma diferença básica entre o crente. A gente repetia muito isso no começo. Eu repeti, entre o fundamentalista e o fundamentalista. O crente, o crente comum em geral, está ao serviço de Deus. Tem muita gente que coloca Deus ao seu serviço, são as pessoas mais perigosas. O problema não é falar com Deus. O problema são aqueles que acreditam que Deus lhes responde. Partindo de tudo o que o homem é capaz de fazer, parece-me que Bergoglio trouxe uma renovação de características espirituais em termos de ver como é a identidade a partir dos grandes problemas que o mundo moderno tem hoje, mais além de quão importante é para ele, obviamente, a liturgia, os textos e todas essas coisas, entende? Foi uma mensagem que em muitos casos transcendeu a fronteira do catolicismo.
Agora com Omar Abboud, o político: como vê a atual situação política do país?
Na Argentina desde o dia da sua fundação tocou a campainha como quando dois pugilistas aparecem. A verdade é que não conseguimos, ainda não conseguimos gerar um projeto comum entre todos, um projeto equilibrado. Sim. Ou seja, isso está longe de ser uma questão de ideologia. Ideologia é algo detestável, não é verdade, porque volta para a pessoa, acaba por a tornar de alguma forma religiosamente fundamentalista. Então hoje sofremos de um fenómeno chamado greta, fratura. Eu, não tenho tanta certeza se é uma fratura ou um olhar mutilado. Ou seja, o olhar que temos de um argentino para o outro simplesmente porque ele é ativo, sofre de falta de questões que a gente vê como falta e vice-versa. Faltam que vejam sobre nós que estamos em outro setor. Obviamente eu pertenço a um partido, venho do peronismo, venho do peronismo porque o projeto da época, o projeto de Perón de 1945 era um projeto que não foi assinado por nenhum dos vencedores da guerra. Daí surgiu a ideia da terceira posição, que era algo com características não só geopolíticas, mas também sociais. Nem com a esquerda nem com a direita, mas foi algo que os próprios peronistas inviabilizaram, permitiram que elas se infiltrassem e muitos deles seguiram o caminho absolutamente liberal ou o caminho marxista, como é o caso agora. Então só falta aqui gerar alguém que tem que ter bastante representatividade, mas tem que ter mais que representatividade, tem de ter legitimidade para gerar de vez, depois de 200 anos, um projeto de país. A Argentina não pode continuar a pensar além da próxima semana ou dos próximos 25 minutos. Nunca, jamais, um projeto que tenha algum tipo de coerência se sustentou ao longo do tempo, ao longo de um governo. Tudo é absolutamente fundacional. A pátria argentina teve a Revolução de Maio em 1810. Teve a Revolução de Maio, a Declaração da Independência de 1816. E então cada governo que chegou, em algumas décadas honrosas em particular, quis fundar de novo. E não há tempo para fundar. Não há mais tempo para fundar. Então, quem for capaz de gerar uma Moncloa como foi gerada na Espanha ou um pacto de características de relacionamento com o mundo como o do Itamaraty no Brasil, algo que nos ligue sob o mesmo céu, a nós argentinos, vai ser o que nos levará adiante. Se não, infelizmente, vamos acabar como a Venezuela.
Há esse risco?
Com certeza. Sem dúvida. Não vou dizer o nome de nenhum candidato, mesmo que não seja verdade. Sou uma pessoa próxima do chefe de governo da Cidade de Buenos Aires, Horácio Rodriguez Larreta, que tem uma questão de equilíbrio. Sim, não acredito em dissonância, nem numa espécie de epopeia, nem numa mensagem metafísica. Não é verdade que sejamos guiados pelo céu ou por uma realidade coerente. A Argentina tem 42% de pessoas pobres, meu amigo, num país que tem maçãs, tem o rio, que produz alimentos, isso é um insulto, não é verdadeiro ao facto de nascer para a vida. Não é verdade que na Argentina haja pessoas que sofram de uma fome feroz, mas há pessoas que sofrem realmente em lugares ainda sem esgotos ou água corrente. É uma loucura. É uma loucura. É uma infâmia, concretamente. E em segundo lugar, eu acredito na justiça. Não se deve acreditar na justiça, dizem alguns. Isso não é verdade. A justiça deve ser prática. É praticada e quando a justiça é praticada é desfrutada. Há uma coisa que Bergoglio escreve lá na carta que ele assina com, com o íman de lazar: Levar o cidadão ao exercício da cidadania, a usufruir da justiça. Porque quando há justiça, as pessoas gozam do facto de pertencerem à sociedade e tudo isso. Ou seja, enquanto continuarmos a pensar que há duas bibliotecas na resolução de um acontecimento ou de um determinado acontecimento, estamos tramados. Pode haver uma capacidade de análise, mas a verdade é que a biblioteca jurídica tem de ser muito, muito mais precisa e obviamente exigir outro tipo de compromissos aos políticos. E a mesma coisa que eu estava a dizer há pouco, que a Argentina não vê para além dos próximos 15 minutos ou da próxima semana, e também quanto tempo dura a sua memória, não é verdade? Em termos do que, como e quem são as pessoas. Se não houvesse pessoas, não haveria maneira de se candidatarem à presidência ou a qualquer outra coisa neste momento no país. A democracia é uma ferramenta, o Dr. Raúl Alfonsín enganou-se, com tudo o que lhe devemos em termos institucionais, ao dizer que a democracia é a forma de comer, educar e curar. Não, não é isso. É como uma política, respeitada e cumprida nos termos do acordo. É a nossa ferramenta, é a melhor que temos. Não sei se é a mais eficaz, mas é a melhor que temos. Portanto, nesse sentido, se não gerarmos um acordo, um acordo que eu diria mesmo de características culturais, não é certo que possamos construir uma maioria de 70% a 80% para modificar algumas leis que estão 200 milhões de anos atrasadas e que põem em risco todo o tipo de segurança na República Argentina, vamos estar em apuros. E temos outro problema de que não estamos conscientes, que não estamos a ver, que é o narco-território.
O que está a acontecer em Rosário é um sinal disso?
Não é só em Rosário, a província de Buenos Aires é igual, em todo o lado é O problema, mas uma coisa é o sítio onde vendem droga, a distribuição pontual, porque no fim o que vale a droga é a transferência. A droga não vale nada, na Bolívia não vale nada, não é? E na Austrália o seu valor é multiplicado por 100, portanto o que vale é pagar a administração, o suborno e levá-la de um sítio para outro? Sim, isso é o que vale mais do que a droga em si.
A gestão do negócio...
Se dissermos que em Santa Cruz de la Sierra um quilo de cocaína vale 1.500 ou 2.000 dólares e na Austrália vale 200.000 dólares, dizemos que a tarifa é de 1.500 dólares. Portanto, teria de ser 3.000, certo? O que se está a pagar aí é a corrupção do tipo que faz vista grossa na alfândega. Aquele que te deixa passar, aquele que aceita levar-te. E assim por diante, de um país para outro. É isso que torna a droga tão cara, não a produção de folhas de coca no planalto boliviano. O que se paga é o que vale a corrupção. Portanto, nesse sentido, se a Argentina não tomar um rumo real e não adotar políticas reais, porque o narco-território, os Estados paralelos, é uma coisa que nós falámos com Bergoglio a dada altura. Um relatório que lemos em voz alta em Salto, um relatório que tinha saído sobre os brasileiros do Primeiro Comando da Capital. No Rio, houve uma entrevista com o chefe que dizia "Já ganhámos", foi publicada no Globo e é, precisamente, definitiva. Os narcotraficantes geram pequenos Estados paralelos baseados no medo, não é verdade? Fornecem algumas coisas como se vê nos filmes de Pablo Escobar, controlam o domínio e depois têm um elevado nível de entrincheiramento e de inserção. Depois, como aconteceu em Rosário, como muito bem referiu, mesmo com as autoridades, ao mais alto nível. Não se esqueça que em Rosário até trouxeram um chefe de polícia. Portanto, para tratar disso, para gerar um pacto e para tratar das questões iminentes da pobreza, quem não colocar isso como uma política de Estado e como um acordo para os próximos 15 anos, 20 anos na Argentina, o país não tem destino. E como dissemos no último congresso, em Roma, não há Argentina sem diálogo. E é isso que está a faltar aqui.
Muito obrigado.
Por nada. Espero que tenha achado interessante.