Siyabulela Mandel, bisneto de Nelson Mandela, esteve à conversa com a TSF.
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Tem 27 anos. O mesmo número de anos que o bisavô passou privado de liberdade, antes do fim do apartheid. Mas Siyabulela Mandela é muito crítico dos recentes governos do ANC. Corrupção, nepotismo, cleptocracia e partidos divididos em linhas étnicas e raciais estão a comprometer a democracia no país. Entrevista à TSF na WebSummit.
"O meu interesse no campo das Relações Internacionais, resolução de conflitos e reconciliação está enformado pela história da África do Sul, com a maior parte dos sul-africanos subjugada, suprimida e oprimida", começa por dizer o jovem doutorando que espera concluir os seus estudos em Reconciliação e Resolução de Conflitos em abril do próximo ano. A história e os movimentos de libertação que aconteceram na África do Sul o país à conquista da democracia em 1994, mas Siyabulela Mandela é bastante crítico do atual estado do país. Não foi por uma nação tão pouco arco-íris que o bisavô, Nelson Mandela, lutou. Segue-se a entrevista à TSF.
Quais são os maiores desafios que a África do Sul enfrenta, em termos de reconciliação, nesta altura?
Nesta altura, eu diria que a agenda da reconciliação iniciada por Nelson Mandela e pela sua geração, quando negociaram a nossa saída do regime do apartheid com o CODESSA - o Congresso para uma África do Sul democrática - um dos pontos fulcrais dessa negociação foram os compromissos que foram feitos e que agora nos assombram 25 anos depois na democracia.
Por exemplo, na questão da terra. Necessitaria recordar que o governo sul-africano de então, em consulta com o movimento de libertação, assumiu compromissos sobre transferência de terras de um grupo minoritário, os brancos, para o público sul-africano em geral.
O que aconteceu foi que adiaram o processo de reforma agrária no país, quando decidiram aplicar o princípio da vontade de vender perante a vontade de comprar, esperando que com isso no prazo de dez anos a terra pudesse estar distribuída. Depois, as políticas como a que foram adotadas mais tarde pelo governo Mandela e pelos governos subsequentes falharam em conseguir os resultados que esperavam.
A reforma agrária não aconteceu até agora?
Não aconteceu até agora. Podemos dizer que 80% da terra ainda está nas mãos da minoria e a maioria dos sul-africanos vive nas townships, os bairros de lata. É por isso que em 2019, no início do ano, o parlamento, através do Congresso Nacional Africano em colaboração com os Combatentes pela Liberdade Económica, aprovaram a expropriação de terra sem compensação.
É nesse contexto que os sul-africanos estão agora a ficar confusos e cansados de esperar por algo que nunca aconteceu desde 1994. A maior parte deles ainda vive em habitação social, a maior parte deles não tem terra para cultivar. A maior parte deles ainda vive abaixo do limiar da pobreza, a maior parte ainda fica em bairros de lata.
Isso tem tido um impacto verdadeiramente negativo no projeto de reconciliação no país. Por exemplo, se fores à África do Sul agora é uma das sociedades mais desiguais no mundo e o mais recente relatório do Banco Mundial, citou o facto de o país ser um dos países mais desiguais do planeta. Isso coloca um travão na reconciliação.
Atualmente, muitos dos desafios económicos com que lidamos estão relacionados com isso. A economia não está muito bem, o desemprego está agora nos 29 por cento. A maior parte dos desempregados são jovens, E sabemos que, em todo o mundo onde há taxas de desemprego dessa ordem, é uma receita para o desastre.
Na verdade, podemos encontrar-nos numa situação de instabilidade política em que os jovens saem para a rua e exijam os dividendos da paz que lhes foram prometidos na transição para a democracia em 1994. Em suma, estas são algumas das dificuldades com que lidamos, bem como o facto de nos últimos nove anos, nos governos anteriores, os governos Zuma, não tivemos uma democracia, tivemos uma cleptocracia. Foi um governo que foi caracterizado pela corrupção e nepotismo.
Venderam o nosso país. Estamos num ponto em que as empresas públicas, detidas pelo estado, estão a colapsar porque o governo tornou-se um terreno fértil para ladrões, pessoas cujo interesse não é responder aos anseios das pessoas ou levar a cabo o mandato que lhes foi confiado, mas sim levar a cabo os seus interesses individuais e egoístas, a sua ganância; a corrupção parece estar na ordem do dia ou estava nesse governo em particular.
Então, esta é a posição em que a África do Sul se encontra e não sabemos como vamos sair dela. Infelizmente, a geração de Nelson Mandela já não está aí para reconciliar o país. E o país está a ficar mais dividido do que estava em 1994. Estamos num modo regressivo em termos de reconciliação.
Mesmo que não seja estritamente uma divisão étnica?
As políticas tribais na África do Sul sempre foram uma parte da política do país. Nota que quando as nossas organizações políticas fazem comícios, os seus militantes unem-se ao longo de linhas raciais e étnicas. Isso sempre esteve presente na política do país. Esse é também um dos desafios: como é que nos transcendemos alem dessa divisão étnica e de política racial e nos passamos a ver não como membros de um grupo étnico em particular, mas em primeiro lugar, como cidadãos da África do Sul antes de sermos membros de um dado grupo étnico. É assim que vemos organizações de direita como os Combatentes pela Liberdade Económica e organizações ditas liberais como a Aliança Democrática, unicamente lideradas por brancos, unidas através de laços raciais e étnicos. É um jogo de soma zero. Estraga todos os esforços do projeto de reconciliação que foi iniciado em 1994.
O que significa também uma falta de alternativa ao ANC?
Definitivamente. É também um assunto que afeta a África do Sul como sociedade é que parece haver uma falta de alternativa fora do movimento de libertação, uma outra organização que nos conduza para a modernização. Não existe um candidato bem definido nesse espaço.
As nossas organizações de oposição também parecem polarizadas em tornos de linhas étnicas e raciais, se olhar para o principal partido da oposição, que é a Aliança Democrática. Tinham um líder negro que se demitiu há duas semanas, Musi Maimane, foi o primeiro líder negro da organização e os rumores apontam no sentido de que se demitiu precisamente por causa de tensões raciais internas. Consegue certamente perceber o perigo da polarização do principal partido da oposição em torno de linhas raciais, para todo o processo de democratização. É toda a nossa democracia que fica comprometida, não apenas o projeto de reconciliação.
E na verdade não há, além do ANC, uma organização que mobilize a maioria dos sul-africanos. Se não for o ANC, para onde vão? Esse é o dilema em que a maior parte dos sul-africanos se encontram. Porque a Aliança Democrática sempre foi associada ao antigo partido do apartheid, o Partido Nacional e a maioria dos sul-africanos não pode confiar neles. A maioria dos que votaram neles são brancos, não há uma casa que seja alternativa ao ANC para o resto dos sul-africanos. Se não for o ANC, que é hoje um partido corrupto, condescendente em assuntos como nepotismo e ganância, e não empenhado em resolver os assuntos relacionados com os direitos económicos e sociais e mesmo os direitos fundamentais dos sul-africanos. É realmente um desafio para a nossa nação. Encontramo-nos numa encruzilhada como país.
São então um movimento - falando do ANC - e um país muito diferentes daquilo com que o seu bisavô sonhou e pelo qual lutou?
Sim, completamente. O ANC não é o mesmo ANC que nos libertou, que estava preocupado com assuntos de direitos humanos, bem como direitos económicos e sociais da população. Não é o mesmo Congresso Nacional Africano dos nossos pais Fundadores, como Nelson Mandela e Oliver Tambo. Não é o ANC pelo qual eles lutaram. Este partido é agora uma máquina de fazer dinheiro, só se preocupa em exercer a cleptocracia.
Cyril Ramaphosa não mudou nada desde os tempos de Jacob Zuma?
Cyril Ramaphosa, por mais prometedor que possa ser, como líder encontra-se numa posição muito comprometedora, porque quando foi eleito líder do ANC, não foi eleito com uma maioria absoluta, por isso teve de fazer compromissos com a fação do antigo presidente. Portanto, a equipa de governo dele também é de compromisso. Encontra as mesmas pessoas corruptas que no regime de Jacob Zuma lideraram o país e o conduziram à crise em que se encontra. São as mesmas pessoas que eram primeiro-ministro, membros do governo e do parlamento na administração sul-africana. Então, toda a união em torno de criar uma política mais higiénica está, desde então, comprometida. O próprio presidente fica comprometido ao não ter poderes substanciais para as decisões que pretende tomar.
Que memórias guarda do seu bisavô?
Penso que uma das memórias que melhor guardo dele era a sua capacidade para unir uma nação dividida. E penso que a África do Sul realmente anseia por esses dias em que éramos unidos, independentemente das nossas diferenças, politicamente ou racialmente. É aquele tipo de indivíduos que muitos sul-africanos ainda hoje tentam imaginar como é que ele e a sua geração conseguiram negociar a forma de nos tirar daquele que era o regime do apartheid. Essa é uma das memórias que guardo de Madiba, a sua capacidade para unir...
Que idade tinha quando ele morreu?
Tinha 21, já estava na universidade.
Além dessa abordagem mais política, digamos assim, como é que ele era no círculo mais familiar?
Foi sempre uma pessoa muito maravilhosa, sempre com muito sentido de humor, sempre que o bisavô estava por perto, sabíamos que íamos estar felizes. Na nossa aldeia, em todos os dias 25 de dezembro, no dia de Natal, ele convidava toda a aldeia que vinha para nossa casa e tinham lá o jantar de natal. E ele sentava-se numa cadeira lá fora e distribuía presentes a cada ma das crianças da aldeia que o vinham cumprimentar. Eram às centenas. Cada uma tinha um presente e passava o dia naquilo. Era o Pai Natal das áreas rurais. Sentimos falta do seu sentido de humor, era um tipo muito engraçado, onde estava as pessoas estavam sempre a rir, acalmava-nos muito, era um homem maravilhoso.
Sei que ainda está para concluir o seu doutoramento, mas já chegou a um ponto em que consegue antever aquilo que possa ser uma receita para a reconciliação na África do Sul?
Uma das formas de completar o projeto de reconciliação na África do Sul é se nos focarmos num dos vetores essenciais que falharam no processo negocial: aquilo que eu chamo na minha investigação, as faltas de coragem do processo negocial, que falhou o enfoque nas negociações económicas. Mesmo a legislação aprovada na Cidade do Cabo em 1955 declara que a terra pertence a todos os que nela vivem. Brancos e negros.
Mas depois, além da questão da propriedade, noutros contextos de reconciliação, há sempre questões relacionadas com a compensação de vítimas, julgamento de crimes de guerra e por aí afora. Estas são dimensões que ainda estão na agenda na África do Sul?
Não. Infelizmente, a forma como a nossa Comissão da Verdade e Reconciliação foi desenhada, foi de uma forma diametralmente oposta à que foi usada nos julgamentos de Nuremberga para a Alemanha nazi, onde as vítimas e os perpetradores de injustiças durante o Holocausto, foram chamados a confrontarem-se durante os julgamentos. O que nós fizemos foi tentar evitar que a Comissão da Verdade e Reconciliação se transformasse numa caça às bruxas para levar pessoas para a prisão.
Não seria uma situação a considerar para o contexto da áfrica do Sul, tendo em conta o quão dividido o país estava. Mas uma das falhas do processo de verdade e reconciliação foi uma falha em encarar a questão da compensação. Por exemplo, uma das razões pelas quais a Comissão de Verdade e Reconciliação ter abortado antes de o seu trabalho ter sido completado, foi a inabilidade do estado em conseguir compensar aqueles que foram vítimas do regime do apartheid.
Portanto, essas eram questões importantes para o governo de transição na altura. Compreenderá que o período de transição aconteceu numa altura em que o país tinha de lidar com sanções económicas, o que também acabou por ajudar aqueles que forçaram o Partido Nacional a vir para a mesa das negociações. Ou seja, quando o processo da Comissão de Verdade e Reconciliação começou, foi iniciado de facto com a intenção de compensar aqueles que eram as vítimas do regime do apartheid.
Mas infelizmente, devido à falta de recursos, a comissão foi dada por concluída no final dos anos noventa, e nunca mais houve progressos além disso. Por isso o governo da Africa do Sul pensou que o Programa de Desenvolvimento Rural seria capaz de encontrar formas de compensar aqueles que sofreram debaixo do sistema colonialista e debaixo do regime do apartheid.
Tentaram fazê-lo através dessas políticas, mas isso também falhou devido à falta de recursos por parte do estado. Mas também creio que das coisas positivas foram as políticas em defesa dos pobres que o governo Mandela e os governos subsequentes adotaram, nomeadamente as políticas socialistas como garantir habitação social para aqueles que não tinham, bolsas para os mais velhos e órfãos do apartheid. Esses programas foram muito positivos, embora desafiados igualmente pelo facto de que essa falta de recursos também continuou.
Por isso é que te estava a dizer há pouco que os direitos económicos e sociais da maioria dos sul-africanos ainda são violados, pelo facto de que nunca tiveram acesso a habitação adequada, água e saneamento, ou mesmo cuidados de saúde e educação. São esses alguns dos desafios que assolam o nosso país.