Depois da operação militar no norte da Síria, a grande questão para 2020 será agora a situação dos mais de três milhões e meio de refugiados sírios a viver na Turquia. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, quer acelerar a recolocação de uma parte dessa população. Mas, em sentido inverso, uma nova crise de refugiados estará agora a caminho da fronteira turca, bem como uma nova intervenção militar pode estar iminente noutro país vizinho.
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Se dúvidas existissem, o presidente turco fez questão de o deixar bem claro a fechar o ano: o regresso dos refugiados sírios a viver na Turquia vai ser a sua grande prioridade para 2020. E fê-lo num fórum internacional ( o "Fórum Global para os Refugiados", que decorreu em dezembro passado em Genebra, na Suiça) quando colocou o assunto ao mesmo nível de importância do combate ao terrorismo no seu discurso: "É indiscutível que estes refugiados têm o direito de voltar ao país que tiveram de deixar. A estabilidade e normalização permanente na Síria é tão importante como combater o terrorismo."
A questão já estava na verdade implícita quando a Turquia lançou a operação militar no norte da Síria, em outubro de 2019. Se o primeiro objectivo era, de acordo com o presidente turco, criar uma faixa de segurança numa zona dominada por forças curdas - que Ankara vê como uma mera extensão do grupo terrorista PKK - o segundo objetivo que foi declarado também na altura era o de garantir território na Síria que permitisse a recolocação de uma parte dos 3,6 milhões refugiados sírios atualmente a viver na Turquia.
À complexidade de uma operação dessa natureza vieram juntar-se, no entanto, os acontecimentos a abrir o ano de 2020. O próprio presidente turco já veio admitir que mais refugiados podem estar a caminho, depois do agravamento da situação em Idlib, o último bastião da resistência na Siria. Desde 16 de dezembro que as forças leais ao presidente Bashar Al-Assad bombardeiam várias posições naquela região, com o apoio da Rússia. Como consequência, cerca de 250 mil pessoas que fogem do conflito podem tentar procurar refúgio do outro lado da fronteira, em território turco. No primeiro dia de 2020, Erdogan já veio deixar o aviso: "A Turquia não aguenta uma nova crises de refugiados"
O líder turco insiste que só se pode resolver o problema dos refugiados com o fim do conflito na Síria, que entra agora no nono ano consecutivo, o qual terá de passar por uma solução política. Mas o mais certo é que Bashar Al-Assad volte a recuperar o território que ainda lhe falta através da força, ajudado pela assistência dada pela Rússia e pelo enfraquecimento dos curdos a nordeste. Resta saber, no entanto, se a situação atual não poderá também criar espaço para uma ameaça de ressurgimento do Daesh.
Também por isso Erdogan insiste na importância da criação de uma "faixa de segurança" dentro da Síria, com 120 quilómetros de comprimento e 32 quilómetros de largura. Quanto à recolocação dos refugiados, a Turquia garante que até ao momento já foram recolocados 371 mil sírios, e que outros 600 poderiam seguir-se no médio prazo. Mas o processo levanta dúvidas, com organizações não-governamentais a garantirem que, em alguns casos, os refugiados estariam a ser forçados a sair contra a sua vontade, ou pelo menos estariam a ser induzidos em erro para assinar documentos de "retorno voluntário".
Outra das tónicas que deverá manter-se ou intensificar-se em 2020 são as críticas constantes de Erdogan à forma como a comunidade internacional tem abordado este problema, nomeadamente o que entende ser o alheamento e a falta de empenho para que seja possível encontrar uma solução viável. "A responsabilidade está também nos ombros dos outros países, que têm de partilhar este problema dos refugiados que a Turquia tem vindo a carregar nos últimos 9 anos.", afirmou recentemente Erdogan. "Não podemos construir muros e barreiras contra estas pessoas como faz o Ocidente".
A Turquia alberga neste momento cerca de 3,6 milhões de refugiados sírios. Se forem contabilizados refugiados de outras nacionalidades, esse número chega aos 5 milhões, o que faz da Turquia o país do mundo com maior população de refugiados.
Uma nova intervenção militar e o "amigo" americano
Depois da Síria, a Líbia. O parlamento turco começou 2020 a aprovar uma moção que autoriza o envio de forças turcas para a Líbia, pelo período de um ano. O objetivo é apoiar o governo do primeiro-ministro líbio, Fayez Al-Sarraj, no combate às forças do general Khalifa Haftar, que domina a zona este do país e pretende também conquistar a capital, Tripoli. Os combates intensificaram-se nas últimas semanas, com Haftar a garantir estar a cercar a capital e a declarar a iminência de um "assalto final".
O agora mais que provável envio de forças turcas para a Líbia segue-se a um acordo militar assinado entre os dois países, que já previa o envio de ajuda militar e pessoal especializado, bem como um acordo marítimo. A Turquia alega que o envio de forças militares para o território sírio é necessário para garantir os seus próprio interesses nacionais naquele país bem como no Mediterrâneo, onde Ankara disputa neste momento com a Grécia, Chipre, Egipto e Israel a exploração de recursos naturais como gás e petróleo.
De acordo com os analistas, para além das questões geo-estratégicas regionais há também um objectivo para consumo interno nestas intervenções turcas. Depois de um ano politicamente complicado - em que perdeu o controlo de várias cidades importantes nas eleições autárquicas, entre elas Istambul, o seu grande bastião - Erdogan procurará reforçar a sua base de apoio interno, e mobilizar o país em torno de causas nacionais.
Tecnicamente, a Turquia entra num período sem eleições até 2023. Mas as divisões dentro do AKP - o partido de Erdogan - podem aprofundar-se, e o aparecimento de novos partidos de membros dissidentes é um primeiro sinal. Segundo alguns analistas, Erdogan pode estar tentado a convocar eleições gerais já para este ano. A nível interno, uma das grandes prioridades do presidente turco para o novo ano será, no entanto, recuperar a economia, que esteve em recessão durante boa parte de 2019 e que começa apenas agora a apresentar os primeiros sinais de recuperação.
As relações tensas entre a Turquia e os Estados Unidos serão também um outro assunto a seguir de perto em 2020, com o espetro de sanções norte-americanas a levar Ankara a ameaçar, no limite, com a possibilidade de fechar a base militar de Incirlik. Trata-se de uma localização estratégica onde Washington tem neste momento armazenadas 50 bombas nucleares. Em ano de eleições nos Estados Unidos, espera-se que Erdogan volte a manter a tensão na relação com o aliado americano Trump, ao mesmo tempo que, do outro lado, dará a mão à Rússia e a Putin conforme os interesses da Turquia.