O estado de Bolsonaro dois anos depois: o "Trump dos Trópicos" a quem chamaram "mito"
Os indefetíveis chamam-lhe Mito. Mas quem está hoje com Jair Bolsonaro, o Trump dos Trópicos, dois anos depois da vitória eleitoral? Respostas na entrevista à TSF com João Gabriel de Lima.
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João Gabriel de Lima é jornalista e professor universitário, foi diretor da revista de grande informação Época e da revista cultural Bravo, é colunista do Estado de São Paulo e da revista Piauí. Autor de dois romances, O Burlador de Sevilha (finalista do Prémio Saramago em 2002) e Carnaval (uma homenagem aos escritores argentinos escritores argentinos Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy-Casares e à cidade do Rio de janeiro), em que a questão da memória é um tema preponderante, entende-a como "uma arma contra o esquecimento". Pela memória do homem que veio para Portugal estudar (doutoramento em ciência política) "fenómenos políticos que são muito complexos", somos guiados para compreender o que foram estes últimos quatro anos no Brasil, desde que Jair Messias Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos, colocando um ponto final em muitos anos de domínio do PT na vida política brasileira.
Em entrevista à TSF, João Gabriel de Lima afirma que "a democracia brasileira tem características peculiares importantes para uma democracia: uma sociedade civil muito forte, tal como o meio académico, que lutou contra a ditadura". Uma democracia dominada por dois partidos no último quarto de século, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), ambos muito fortes, ambos tendo lutado contra a ditadura e ambos "surgiram na esquerda", com um "diálogo muito grande com a academia e com a sociedade civil".
Para o jornalista e professor no Insper, em São Paulo, "há duas áreas que são especialmente preocupantes no Governo Bolsonaro: uma é a gestão da pandemia, em que o governo federal não ouviu especialistas e não criou uma política nacional de combate à pandemia". Todos - especialistas, médicos, OMS, governos estaduais - estavam errados, na opinião de Bolsonaro, e o país "não precisava fazer nenhuma espécie de fechamento". O outro caso que João Gabriel de Lima aponta como preocupante "é a questão do meio ambiente. O Governo não olha para as instituições que o Brasil já tem para proteger o meio ambiente". Opções políticas que custaram caro na prevenção e combate ao incêndio no Pantanal brasileiro este ano.
O relacionamento entre os dois grandes partidos brasileiros, na opinião do jornalista, incidiam "numa agenda muito clara, que é uma agenda brasileira", num contexto de "um país que tem milhões de problemas": a inclusão social -"o Brasil é um país que precisa de incluir pessoas, é muito desigual e com muita pobreza" -, para além do "problema das contas públicas", uma vez que este é um país que, "de tempos a tempos quebra, há um problema que gera inflação, problema de endividamento e dificuldades em captar investimento externo".
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Um Presidente que relativiza a ditadura militar
Se os dois partidos tradicionalmente dominantes tinham essa agenda política, "Bolsonaro chega como uma negação de tudo isso. Para Bolsonaro, PT e PSDB são a esquerda, embora o PSDB não possa ser hoje considerado um partido da esquerda clássica, que fez uma conversão à direita, até por razões de mercado eleitoral" (o PT ocupou o centro-esquerda). João Gabriel de Lima não tem dúvidas sobre o que significa a atuação do presidente: "ele governa contra esses dois partidos, contra a sociedade civil ou, pelo menos, sem ouvir a sociedade civil; ele governa contra as universidades e muito do que vemos nesses dois anos de Governo Bolsonaro tem a ver com o facto de ele não ouvir a sociedade civil organizada", e além disso, é a primeira vez que "um candidato chega a uma campanha eleitoral relativizando a ditadura. Desde o começo defendeu que a ditadura brasileira não foi uma coisa assim tão ruim. Isso está presente no discurso de Bolsonaro até hoje".
Tendo a base social de apoio ao Presidente Bolsonaro sido muito alimentada pelo descontentamento profundo de parte da sociedade brasileira em relação à governação PT, Bolsonaro conseguiu estender (muito pela cooptação do Ministro da Economia Paulo Guedes, seguidor de Milton Friedman, o guru do neoliberalismo da Escola de Chicago), mas essa "parte dessa elite económica, desembarcou do governo Bolsonaro recentemente". O jornalista brasileiro afirma que "Bolsonaro começou como o candidato dos militares, o candidato daqueles que achavam que a ditadura militar não era assim tão ruim", embora reconheça que "essa é uma corrente muito minoritária no Brasil". O atual chefe de Estado estendeu a sua base de apoio quando se opôs ao que "ele entende por kit gay: em 2010-2011 houve uma campanha contra a homofobia nas escolas brasileiras; e havia um kit dessa campanha e o Bolsonaro se opôs muito a que o kit fosse distribuído nas escolas, porque esse kit incentivaria a "homossexualidade das crianças". E o que é curioso quando a gente examina, é que ele passou de um candidato pequeno no Rio, com cerca de 95 mil votos, para um candidato com 400 mil votos. Ele quadruplicou a votação dele quando assumiu essa posição conservadora nos costumes". Aí, passou a ser o candidato, não de um pequeno grupo de militares, mas sim de um grande público conservador e religioso, assim se viabilizando como candidato à Presidência da República. E depois há essa terceira camada, que é a dos liberais. Até então, "não tinha nenhum pé na elite brasileira". Mas Bolsonaro soube ampliar a base quando Paulo Guedes entrou para o governo, desejo antigo na vida do economista.
Um país que se mete na vida dos outros
Para o jornalista e professor universitário, "há uma crítica unânime por parte de diplomatas", tenham sido nomeados pelo PT ou pelo PSDB, "a respeito da condução da política externa do Brasil. O país tem uma tradição, que vem desde o fim da 2ª Guerra, de assumir uma neutralidade em relação à maior parte dos temas internacionais e países e tenta-se colocar como mediador de conflitos. O Governo Bolsonaro inovou, posicionando-se em relação a assuntos internos de outros países".
O Trump dos Trópicos
Exemplos da "interferência" presidencial brasileira: Cuba, Venezuela, Argentina, onde apoiou a reeleição de Maurício Macri que perdeu para Alberto Fernandez: "é mau quando uma pessoa interfere na eleição de outro país, posicionando-se, e, ainda por cima, perde". O Brasil está, hoje em dia, "extremamente alinhado com o governo Trump. Existe uma inspiração muito grande do governo Trump no coração do Bolsonarismo. O facto de ele ter sido chamado Trump dos Trópicos pela imprensa internacional, um pouco como piada feita ao Brasil, Bolsonaro leva isso a sério, ele quer ser o Trump dos Trópicos", o que "incomoda bastante a diplomacia tradicional brasileira, que fica arrepiada ao ver o presidente a posicionar-se em relação aos assuntos internos de outros países".
Quem está hoje com Bolsonaro?
"Eu diria que quem está com o presidente hoje é a base original dele." Há os militares que com Bolsonaro "estão no governo e depois há uma base conservadora popular, com líderes católicos, evangélicos, muitos deles muito fortes nas redes sociais; só isso já era uma grande parte da população. Mas, entretanto, aconteceu um fenómeno novo: o auxílio de emergência atribuído durante a pandemia. Num país como o Brasil em que uma boa parte da população é bastante pobre, há muita gente a trabalhar e a prestar os pequenos serviços para a economia grande. Quando chega a pandemia e as pessoas não podem sair de casa, o indivíduo que era um vendedor ambulante ou um empregado de mesa de um restaurante que ficou fechado por causa da pandemia, ele ia ficar sem rendimentos". Não sendo uma população para ter grandes reservas, "ia passar fome". Mas, na verdade, o auxílio de emergência constituiu uma iniciativa da sociedade civil que fez lóbi junto do Congresso para que aprovasse um "auxílio emergencial" de cerca de 600 reais (cem euros), foi apropriada para propaganda por Bolsonaro, que "assumiu a paternidade. Na verdade, foi criado pelo Congresso nacional, não foi pelo presidente Bolsonaro". Resta saber se quem apoia o presidente em função do que recebe do auxílio de emergência o vai continuar a fazer quando esse apoio estatal acabar no final do ano, porque "o Brasil não tem dinheiro".
A vacina e a China
Há uma polémica recente na vida política brasileira que é quase uma feijoada onde tudo cabe: mete o governador de São Paulo e potencial candidato do centro-direita à presidência, a China, a vacina contra a Covid-19 e Bolsonaro. João Gabriel de Lima explica tudo na entrevista à TSF: "o Instituto Butantã, em São Paulo, está a desenvolver uma vacina contra o coronavírus em parceria com laboratórios chineses. E a equipa do governador João Dória anunciou que talvez essa vacina seja aprovada mais rápido do que se pensava. Isso bastou para haver uma reação muito grande do Bolsonarismo, dizendo "não queremos uma vacina feita por chineses", no que é um discurso muito alinhado com os EUA. Ele é muito crítico com a China, inclusive já provocou incidentes diplomáticos com a China", apesar de a potência asiática ser "o maior parceiro comercial do Brasil". Mas o chefe de Estado "aproveitou para criticar também o governo de São Paulo, por estar sendo irresponsável", alegando a falta de testes científicos para a vacina em preparação pelo laboratório paulista. Mas, na verdade, "isso tem a ver com o incómodo que o Bolsonarismo sente com o facto de existir uma candidatura alternativa à direita, uma vez que João Dória, não sendo ainda explicitamente candidato, "sonha ser Presidente da República e se tiver a oportunidade de ser candidato pelo PSDB, será".
Bolsonaro tem condições para ser reeleito?
"Essa é a pergunta de um milhão de euros, é muito difícil de responder. O Bolsonaro é um fenómeno muito difícil de ser compreendido. Ninguém a sério dizia que o Bolsonaro podia ser eleito até meio ano antes da eleição. Grande parte da votação foi o chamado voto útil, de eleitores descontentes com o PT, que queriam qualquer coisa menos o PT". Uma parte deles, particularmente os liberais, "já se arrependeu de ter feito o voto útil. Para sabermos se Bolsonaro tem possibilidades de ganhar outra eleição, temos de ver quais vão ser os outros candidatos, que opções terá o eleitor de direita e centro-direita. Grande parte desse eleitorado está arrependido de ter votado no Bolsonaro". Lima admite que "João Dória seria o principal nome do centro-direita no Brasil".
E à esquerda, algo de novo?
"Hoje a curiosidade está em saber se o PT vai ser o partido que vai continuar a organizar as esquerdas. Porque começam a surgir outras forças à esquerda e há um dado bastante interessante: estamos a poucas semanas das eleições municipais e nas principais capitais brasileiras, os candidatos da esquerda não são do PT". Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo, Manuela de Ávila (PCdoB, que foi candidata a vice-presidente de Fernando Haddad em 2018) em Porto Alegre, João Campos (PSB) "tem chances de ganhar em Recife e há ainda dois políticos que se têm projetado muito na esquerda, que é Flávio Dino (PCdoB) no Maranhão e um deputado no Rio de Janeiro, o Marcelo Freixo (PSOL), que seria o candidato natural das esquerdas se as esquerdas se tivessem querido unir em torno do nome dele".
Quanto ao PT, apesar dos mecanismos internos de indigitação, "será quem Lula escolher" se não for Lula. Haddad poderá voltar a tentar e o governador da Baía, Rui Costa, é também um nome forte, na opinião de João Gabriel de Lima.
