"Apercebi-me que eles morriam em condições que eu considerava difíceis, e eu sentia-me a trabalhar de forma injusta para eles".
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Iniciou-se na profissão numa altura em que a eutanásia estava prestes a tornar-se legal, na Bélgica. Dividiu as duas décadas como profissional entre os cuidados intensivos e o apoio paliativo. "É o grande paradoxo", que tem de um lado o combate intensivo pela vida, e o acompanhamento até ao fim.
"De início, comecei a trabalhar nos cuidados intensivos. E aí fiquei uns 12 ou 13 anos", relata Samia Moussa à TSF, confessando uma angustia que se avolumou com o passar do tempo, perante a condição de muitos dos doentes a que teve de prestar cuidados.
"Apercebi-me que eles morriam em condições que eu considerava difíceis, e eu sentia-me a trabalhar de forma injusta para eles. Desejava dar-lhes mais cuidados, mais conforto, mais tempo. Mas, fui consciencializado que o fim da vida nos cuidados intensivos era difícil para os doentes, e por isso, também para mim".
Este confronto permanente levou-a a optar pelos cuidados paliativos. "É o grande paradoxo. Nos cuidados intensivos, procuramos intensivamente salvar a vida das pessoas. E, depois do outro lado, nos cuidados paliativos, na crença popular, todos pensam que se trata de gente que está a morrer e que não fazemos grande coisa".
Pelo contrário, garante a enfermeira. "É um serviço cheio de vida, que não encontramos noutro sítio. Ou seja, as pessoas que encontramos nos cuidados paliativos têm ainda projetos de vida, mesmo a muito curto prazo", afirma Samia Moussa, recordando-se de alguns casos.
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"Tive lá um professor que lecionava na universidade, no curso de Latim. Então o projeto de vida dele era terminar um trabalho que tinha iniciado. Para uma avó, o projeto de vida pode ser ver os netos, se a filha estiver grávida", exemplifica. "É mais no curto prazo, mas também é um projeto de vida".
Mas, na Bélgica, a eutanásia é uma das etapas dos cuidados paliativos. Os conceitos misturam-se num único e a eutanásia é um dos cuidados que é prestado, "para ajudar a pessoa", confrontada com "um sofrimento insuportável".
"Para todos os efeitos, a morte está lá, num caso de cancro, ou a pessoa tem um problema psicológico, ou no caso de uma esclerose lateral amiotrófica, ou algo assim, que são insuportáveis para essa pessoa. Quem somos nós para dizer que essa pessoa não tem o direito de aferir se essa dor para ela é insuportável.
Dos vários procedimentos que ajudou a preparar, "há um que vem sempre à memória". Tratou-se de "Um senhor com problemas respiratórios, que solicitou eutanásia".
"Tinha uma família muito unida, muito presente, sempre no hospital. E, a esposa tinha Alzheimer", relata, acrescentando que o pedido foi encaminhado pelo médico para um segunda avaliação e entregue a um psicólogo.
"Normalmente a lei aponta, digamos, para um mês de espera, entre o pedido e a prática da eutanásia. Mas, era uma situação particular, e foi aceite em um pouco menos de um mês", pois "o senhor não estava bem no plano respiratório e nada o aliviava", e a sua condição debilitava-o cada vez mais.
O paciente escolheu a data, e agendou a partida para as nove da manhã. "Os dias passaram e aquele dia chegou. Então eu sabia que aquele senhor ia fazer eutanásia às nove da manhã. Na véspera, a esposa dormiu com ele. Habitualmente não dormia, por estar num lar especializado".
"Colocámos-lhe uma pequena cama - é possível, nos cuidados paliativos - ao lado da cama do marido. E, à sete da manhã entrei ao serviço. Preparei os medicamentos do senhor. Mas, são os medicamentos habituais. E, dei comigo a pensar: pois, a vida continua, mas até às nove horas. São sete horas, e a vida continua até às nove.
O procedimento pode ser travado a qualquer altura. A lei em vigor prevê o arrependimento até ao último instante. "Nunca conheci um doente que tivesse mudado de opinião. Em geral, todas as eutanásias que vi pedir, foram realizadas", disse.
Samia Moussa guarda as lembranças de duas décadas de profissão, divididas entre a urgência da manutenção da vida, numa unidade de cuidados intensivos, e o acompanhamento até ao fim, na vertente paliativa dos cuidados de enfermagem.
Hoje, na Haute Ecole Galilé, em Bruxelas reflete com os alunos do curso de enfermagem, sobre o tema da eutanásia.
Cancro prevalece entre os pedidos de eutanásia
De acordo com o relatório mais recente, em 2018 os belgas entregaram 2357 pedidos de eutanásia. A maioria dos tem origem na região flamenga. Enquanto um quarto dos pedidos é oriundo do sul francófono.
A grande parte das pessoas que requisitaram os serviços de um clínico para lhes serem administrados os químicos da eutanásia tinham entre os 60 e os 89 anos.
O cancro é a doença mais frequente entre quem recorre a esta pratica. Ultrapassa os 60%. Entre os números constam também problemas do sistema nervoso, com quase 200 casos. 57 pessoas pediram eutanásia por problemas respiratórios e um número idêntico também solicitou procedimento, justificando a presença de problemas mentais ou de comportamento.
Quase 80% das pessoas alegaram que a patologia lhe causa um sofrimento físico e psíquico insuportável. 17% justificaram-se com o esforço psicológico a que a doença os sujeita, enquanto que os restantes 3% conseguiram a aprovação da eutanásia mencionando o sofrimento físico.
Os dados apontam para uma tendência crescente do número de eutanásias realizadas ao domicílio, onde ocorreram 1105 procedimentos, ou seja, quase metade. 856 aconteceram em ambiente hospitalar. 349 em lares de idosos.
Mais de 2000 casos, - perto do total de pedidos - foram executados a breve prazo, ou seja, em menos de um mês.
A Comissão Federal de Controlo e Avaliação da Eutanásia, responsável pela divulgação destes números salienta que em 2018 não foram solicitados pedidos de avaliação da responsabilidade criminal à procuradoria federal belga, admitindo que todos os procedimentos foram realizados dentro da legalidade.