
Abedin Taherkenareh/EPA
“A mais breve história do Líbano: as origens e o futuro de um país constantemente dividido e adiado”, de Catarina Maldonado Vasconcelos, já tem apresentação marcada para 1 de abril, na FNAC Colombo, em Lisboa, às 18h30
Berço de culturas e civilizações, rota de impérios, território pequeno, mas grande na importância geopolítica e para a estabilidade do Médio Oriente. Uma Breve História do Líbano, é o livro de estreia da jornalista (Expresso, ex-TSF) Catarina Maldonado Vasconcelos.
É extremamente difícil, tive de cingir-me a datas muito marcantes, tentando no início remeter-me ao passado promissor e ao berço de humanidade que há ali. O Líbano é como se fosse a história da humanidade concentrada num espaço, porque ali se deram as quedas de muitos impérios que marcaram a história e que foram muito importantes mesmo para a história. A dada altura, aquilo que eu percebo é que é muito importante esse início de leite e mel, essa promessa, tentar explicar o berço de humanidade que há ali, os fenícios e o berço do alfabeto; passam por ali assírios, gregos, romanos, otomanos, franceses. E depois tentei debruçar-me sobre aquilo que mais terá impacto na atualidade, que será não só o Império Otomano, que também deixa resquícios e vestígios da sua ação até à atualidade, como o também o protetorado francês. Sem dúvida, nessa altura começa a surgir o independentismo e também a constituição, mas também aquilo que é a democracia consociativa de várias facções religiosas, da qual decorrem muitos bloqueios até hoje, muitos bloqueios políticos que lesam o Estado, que lesam o regime e que fazem muito analistas dizer hoje que o Líbano é um Estado falhado, isto era muito importante, e depois, claro, a ligação com Israel, com Gaza, a ligação com a história da Síria. É fundamental perceber, e foi fundamental também para mim tentar explicar o melhor possível como existe essa ligação, como os grupos de resistência ou os grupos guerrilheiros, terroristas para muitos, se foram desenvolvendo ali por causa da defesa da ideia de Gaza e até hoje isso mantém-se, e eu acho que aquilo que eu percebi, e claro, eu sou jornalista e não sou historiadora e isso é muito importante. Eu penso que aquilo em que eu tentei apostar foi o meu olhar e o olhar é diferente sendo jornalista ou historiadora, é que existe muita documentação sobre a história do Médio Oriente, existem muitos bons livros sobre a história da Palestina, o conflito israelo-palestiniano, mas pouco sobre o Líbano e sobre a sua história em que o Líbano era uma peça do puzzle muito importante para se perceber várias extensões de fronteira. E a própria região, não só do Levante, do Médio Oriente, e como sabemos, a história do Médio Oriente é fundamental para perceber a história do mundo, e eu tentei que transmitisse esse papel, é uma história maior, não é uma história de um mero país pequenino, que é um protagonista invisível, não, tem tido muita importância.
O subtítulo do teu livro já dirá alguma coisa, ou se calhar até muito, daquilo que é o Líbano, o subtítulo é "as origens e o futuro de um país constantemente dividido e adiado"...
Porque é um país que vive entre guerras, é um país que vive à espera de quando é que vai eclodir a próxima guerra, isso faz com que se adiem projetos, como nos Líbano nos anos 60, porque nos anos 50 ainda recebe as ondas de choque vindas de Gaza, dos territórios palestinianos. Com a expulsão dos palestinianos e a fuga dos palestinianos aos muitos milhares, o Líbano acolhe e vai sofrendo essas tensões, vai sofrendo também com a guerra na Síria, com o recebimento de muitos refugiados.
Nós aqui falamos muito das migrações; no Líbano é uma coisa completamente surreal, há guetos palestinianos. Estamos a falar desde a primeira guerra árabe-israelita em 1948…
Com a chegada de 120 mil refugiados palestinianos… depois guerra de 1967, antes disso ainda o pedido de intervenção aos Estados Unidos para garantir estabilidade no país, depois os massacres nos anos 80 de Sabra e Chatila, guerras várias entre o Líbano e Israel, o conflito da Síria, podemos ir até aos tempos mais recentes, o assassinato de Rafik Hariri e a Revolução dos Cedros, mas ainda hoje se diz que o Líbano, também a Síria, mas o Líbano vai ser essencial para vermos o que possa vir a ser o Medio Oriente, independentemente ou depois do desfecho do conflito árabe-israelita. O que é que faz deste pequeno território seja um país tão importante por ser tão decisivo quanto à estabilidade que a região possa vir a ter?
Acho que apontaste perfeitamente, é mesmo isso. Quando começou a guerra em Gaza, após um ataque terrorista contra kibutzim israelitas, o Hezbollah acompanha o Hamas enviando rockets contra o norte de Israel. Este movimento, o Hezbollah, também a OLP mais para trás, faz com que as guerras estejam lá sempre, há uma dança infeliz de acontecimentos que envolvem Gaza e envolvem o Líbano, estas histórias estão sempre interligadas.
Nós vimos que um ano depois de começar a guerra em Gaza, praticamente um ano, em setembro, começou a invasão de Israel no sul do Líbano. Ainda durou cerca de dois meses e depois houve um alívio das tensões que levou a um acordo de cessar fogo, que ainda hoje não é totalmente cumprido, mas que aliviou a situação para os libaneses, que andavam deslocados, houve uma crise maciça de deslocados internos o que permitiu um alívio das tensões no Líbano e depois o acompanhamento e a exigência da comunidade internacional de que, de facto, também acabasse a guerra em Gaza. Estas histórias, por estarem tão interligadas, acabam por mostrar como o Líbano é importante e isto aconteceu outras vezes no passado em que houve provocações de parte a parte na fronteira entre Israel e o Líbano, que foram geradas por coisas que estavam a acontecer nos territórios palestinianos.
Falaste há pouco na questão da organização do Estado libanês. O Estado, o Governo, o Exército no Líbano correspondem a um arranjo político-constitucional entre as várias fações e as várias religiões, queres explicar aos ouvintes como funciona esse arranjo político-constitucional libanês?
Remonta ao censo de 1932, portanto os dados são extremamente antigos e desatualizados e, portanto, os xiitas são um grupo que muitos analistas estimam que até em maioria ou perto da maioria, estão sub-representados, também para não dar poder a estes grupos como o Hezbollah, que tem tido bastante sucesso nas últimas eleições, sendo o presidente um cristão maronita, normalmente ajudado a selecionar por França e Estados Unidos, que têm uma certa interferência no país até hoje.
O Líbano foi um protetorado francês…
Exatamente, durante muito tempo e até hoje há uma ligação, e o primeiro-ministro é sunita, e os xiitas têm alguns cargos públicos que...
Por exemplo, o Hezbollah, que é xiita, escreves no livro que o Hezbollah nomeia o ministro das Finanças consecutivamente desde 2014….
Sim, mais recentemente tem havido vários bloqueios, isto também é extremamente complicado para o país porque há bloqueios que duram, perduram durante anos às vezes para se elegerem determinadas figuras e o facto de haver esta divisão nas decisões leva o país a estar entregue à corrupção, muitas vezes a interesses estrangeiros e também a atos de incúria. Nós vimos isso, por exemplo, com a situação da explosão do Porto de Beiruta em 2020, as fações não se entendem até hoje e é extremamente complicado governar o Líbano.
Particularmente depois de 2019, mas especialmente após a grande explosão no Porto de Beirute, a crise económica atingiu níveis inéditos, com uma inflação brutal, a Libra Libanesa desvalorizada em 85%, como lembras quase no final do teu livro, depois a crise dos cereais, o Líbano foi dos países mais vulneráveis ao bloqueio que a Rússia fez à exportação de cereais ucranianos, logo, portanto, dos países que mais imediatamente sentiu o efeito da invasão russa da Ucrânia, como escreves na página 28, à luz de uma economia atual arruinada é difícil conceber o seu passado, marcando-se o horizonte de frotas e de rotas que tantas riquezas asseguravam à época.
Os libaneses sentem também isso, ou seja, aquela sensação de, já tivemos um passado glorioso enquanto mercadores, enquanto cruzamento de rotas, e agora é um país que muitos arriscam dizer que é um Estado falhado, embora muitas vezes estes rótulos sejam feitos por aqueles que, no fundo, criam as condições para o Estado ser falhado.
Nós tivemos nos últimos anos, por exemplo, em 2019-2021, uma crise enorme instalada, as pessoas foram para as ruas em fúria por causa de um imposto que foi introduzido, que iria ser introduzido ao WhatsApp, às chamadas do WhatsApp, e é um país que nós sabemos que tem uma diáspora enorme, que as pessoas foram saindo não só pelas tensões migratórias, como também pelas guerras sucessivas, e houve a crise do lixo, houve esta situação da explosão do Porto de Beirute, houve vários momentos em que, por exemplo, os esta situação da explosão levou as pessoas às ruas novamente e as pessoas só se sossegaram por causa da pandemia. Não é que tenha sido bom para o Líbano, obviamente não foi bom para ninguém, mas houve um período de acalmia em relação aos poderes instalados e aos poderes políticos. E agora temos novamente guerra, novamente o Líbano volta a ter imensa dificuldade em reconstruir-se porque já tinha uma economia muito precária, um banco central ameaçado, que tem sempre de tomar medidas para atrair moeda estrangeira, o PIB do Líbano caiu em 40% por causa desta guerra, o Líbano é um país em que há apagões constantes, viver no Líbano é uma dificuldade imensa para conseguir, por exemplo, bens alimentares essenciais, de farmácia, há um mercado negro, há um mercado de empresas privadas que exploram essas necessidades de geradores de energia, e portanto é muito difícil, e é muito difícil também construir uma identidade comum, uma identidade libanesa, quando há tantas facções e facções que foram colocadas também pelos próprios colonizadores, nós pensamos no colonialismo da África, mas o colonialismo existiu no Líbano, o Líbano era o ultramar de França. E ainda que, numa ideia corporizada pela Hezbollah, mas que os xiitas possam ter sido, de alguma forma, um pouco da resistência também a isso.
Fazem sentido as acusações de que o Líbano hoje é um Estado capturado pelo Hezbollah?
Boa pergunta. Sim e não, porque se nós falamos do Hezbollah, nós falamos das pessoas, é o mais transversal da sociedade, nós podemos estar a falar de um professor, podemos estar a falar de alguém que trabalha numa clínica médica, podemos estar a falar de um porteiro, de alguém que faz a limpeza do chão, porque o Hezbollah também pode ser alguém que vota no Hezbollah como partido político, porque o Hezbollah é o partido de Deus, isso promete muito, não é? E também é uma milícia, também comete atos terroristas, mas tem uma parte política e é muito difícil desfazer este apoio, este apoio é muito difícil desfazer a partir do momento em que o Hezbollah presta o serviço que o próprio Estado não presta, que vai junto das comunidades, apesar de tudo oferece uma certa promessa num enquadramento em que a vida é tão difícil e em que parece que não há promessa, então eu acho que o Hezbollah para muitos é como se fosse a resiliência de um sonho.
E já que falamos de sonhos, tens resposta para a pergunta que fazes na página 229, poderá o Líbano um dia ser livre?
É que a liberdade é uma coisa muito difícil de conquistar e é muito complexa enquanto conceito na vida, na prática.
No caso do Líbano ser livre significa capacidade de poder ser alheio ao que se passa com os vizinhos palestinianos, ou os dois destinos estão indissociavelmente ligados?
Para já parece que é assim, não é? E isso é uma desgraça para os libaneses, porque nós vimos, o Hezbollah também ganha apoio por causa disto, e é verdade que o Hezbollah inicia os ataques contra Israel, mas depois vimos, isto é um episódio que eu acho extremamente marcante, mas há outros, em que Israel, os serviços secretos, a Mossad organiza a explosão de pagers, através do software das baterias, minando o software das baterias, e isto acontece em supermercados, em locais públicos, as pessoas estão a passar e estão a ver isto acontecer.
Nós aqui não sabemos o que é que são pagers, mas lá existem, e as centenas de membros do Hezbollah tinham esses pagers, e nós sabemos que...
Já era um rosto tecnológico ultrapassado, e foi a ordem de importação, foi precisamente para tentar contornar a vigilância israelita aos telemóveis, foi a ideia de Nasrallah, na altura, líder do Hezbollah?…
Sim, parecia uma ideia genial, mas Israel também pode dizer-se, estrategicamente teve uma ideia genial, mas se nós pensarmos bem, como é que seriam as manchetes dos jornais se tivesse sido ao contrário, se invertermos, se fosse o Hezbollah fazer isto contra Israel? Porque morreram crianças, muitas pessoas ficaram com ferimentos horríveis, morreu um diplomata, não foram só membros do Hezbollah que foram afetados por isto, e mesmo os que não foram afetados viram isto acontecer, isto é marcante, as coisas pessoas veem isto e revoltam-se contra Israel, e como viram também a guerra que aconteceu em Gaza, que foi completamente devastadora, completamente devastadora esta guerra, associam-se a essa causa, mesmo as pessoas que não apoiam assim tanto o Hezbollah, não apoiam esses valores, associam-se a essa causa. Por isso, isso da liberdade, acho que leva tempo, porque existe muita ideologia, muitos traumas, e as pessoas que veem os palestinianos ali há anos, já é uma nova geração de palestinianos que ainda não foi autorizada a voltar a casa, e que não têm direitos, que vivem lá, e que são seus vizinhos, mesmo que as pessoas queiram ignorá-los, são seus vizinhos, estão ali e sofrem essas dores. Portanto, acho que é muito difícil libertar-se, é libertar-se de tanta coisa que eu acho que o Líbano não tem mãos a medir.
Todos têm de algum modo, mas temos aqui um país com um futuro extraordinariamente incerto….
Extraordinariamente incerto, acho que sim, e acho que tem vivido sempre na incerteza. É interessante ver isso recuando à década de 60, em que foi considerada a Suíça do Medio Oriente, Beirute, considerada Paris do Medio Oriente, em que o intercâmbio cultural parecia tão promissor, e hoje voltamos à questão da designação do Estado falhado. Pode parecer um wishful thinking de alguns, mas traz mesmo muitas dificuldades de reconstrução, e está completamente capturado para já pelos interesses privados. Seria, talvez, necessário voltar a fazer um censo, que é uma coisa em que há um travão gigantesco, e com os aliados ocidentais, com a sua influência, a tentarem travar, porque isso levaria a que os xiítas tivessem uma grande representatividade nas funções públicas e na vida política. Mas, a dada altura, o Líbano tem que estar entregue ao seu destino, por muito duro que isto possa parecer, mas, a dada altura, isso tem que acontecer. Mas é muito interessante a quantidade de temas que o Líbano contém em si, o colonialismo, a guerra no Medio Oriente, a identidade comum do Levante, depois o enquadramento dos Estados Árabes, os interesses que se jogam ali, acho que é mesmo muito interessante e foi muito bom mergulhar nesse universo.
“A mais breve história do Líbano: as origens e o futuro de um país constantemente dividido e adiado”, de Catarina Maldonado Vasconcelos, já tem a apresentação marcada para dia 1 de abril, na FNAC Colombo, em Lisboa, às 18h30.
