Reportagem TSF em Medellín, na Colômbia: de Bogotá ao topo da Comuna 13, que já foi considerado um dos locais mais perigosos do mundo
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“Ponha fim a todas as dores de saúde. Utilize o fantástico óleo à base de coca e marijuana. O único medicamento natural do mundo que elimina a dor instantaneamente. Chama-se óleo de coca e marijuana. Aplica-se, esfrega-se e deixa-se atuar durante 5 minutos. Instantaneamente, a dor desaparece. O óleo é feito de coca e marijuana. Hoje, só por hoje, vamos dar-vos este produto maravilhoso. Ouçam bem, apressem-se a comprar o vosso. A quantidade é limitada. Não deixes passar esta grande oportunidade. Comprem o óleo à base de coca e marijuana. É bom para dores de morte, dor de cabeça, enxaqueca, espasmos. Até para crianças que fazem xixi na cama por causa do frio concentrado na bexiga. Compre o óleo à base de coca e marijuana. Aproveite o bom uso dessa planta medicinal. Não pense duas vezes. Não brinque com a sua saúde. Faça um bom investimento. Não se vai arrepender. Compre o maravilhoso óleo à base de coca e marijuana.”
Os governantes de um país bem que podem passar o tempo a tentar mudar a imagem da nação, mas o que a terra dá, o que se vende na rua pelos vendedores ambulantes, mesmo que junto ao Congresso nacional, ajuda a muitas maleitas (“Elimine dores e doenças como artrite, reumatismo, osteoartrite e osteoporose. Melhora a qualidade da sua saúde. Alivia o inchaço, a má circulação sanguínea e elimina as varizes”), mas talvez não sirva para sarar as feridas sociais profundas desse país chamado Colômbia.
Comuna 13: de local com mais homicídios no mundo a passeio de turismo de massas
Vendedores encontrados no fim de uma viagem que começou em Cartagena das Índias, terra do grande Gabo, Gabriel García Márquez, terminou na capital colombiana, Bogotá, mas que aqui fica centrada em Medellín, terra com tantos encantos quanto traumas, terra do narco Pablo Escobar, que já morreu. Mas o negócio continua. E a vida de uma cidade, de uma região (Antioquia) e de um país também. Desde logo, através de paisagens geográficas e sociais que nos seriam apresentadas por um escritor de Medellín, Hector Abad Faciolince: “A Colômbia é e Medellín está no fim da cordilheira dos Andes, já quando a cordilheira dos Andes se afunda no Oceano Atlântico, mas estamos na zona tórrida, estamos nos trópicos e viver nos trópicos ao nível do mar é muito difícil, muito quente, há muitas doenças, muitos mosquitos, muita humidade. Mas nós aqui vivemos nas montanhas, Medellín é uma cidade num vale muito estreito e comprido, a uma altitude de 1.500 metros. Mas também uma cidade com um primeiro andar a 2. 000 metros, onde tudo parece muito calmo e bonito, onde o clima durante todo o ano é perfeito. Não há inverno, não há verão, vivemos numa espécie de primavera chuvosa, mas que torna tudo muito verde. Aqui nunca temos aquecimento, nunca temos ar condicionado, não precisamos de nada disto, está-se bem com camisa ou sem camisa. Digamos que o trópico nas altas montanhas é muito bonito, é muito verde, é muito agradável. Em nenhum outro lugar do mundo há tantos pássaros, tantas flores, tanta diversidade botânica, tantas árvores, é o paraíso de Humboldt ou de qualquer naturalista”.
Mas, ao mesmo tempo, neste paraíso, há, admite o prestigiado escritor colombiano, “grandes diferenças sociais, a cidade numa parte é uma coisa, pode parecer a Europa, e noutra parte da cidade pode parecer África; portanto é uma cidade muito dividida. Escrevi um romance chamado Angosta, sobre uma cidade dividida pela casta e pelo clima e por barreiras mais ou menos explícitas, não um muro como o de Gaza e Israel, mas algo próximo disso, por isso é uma cidade não dividida por raça ou religião ou etnia, mas há um certo apartheid económico contra o qual alguns de nós lutam. Nós não queremos ser divididos, mas outros querem acentuar este apartheid económico e construir muros como o que divide os Estados Unidos do México, não queremos isso, não quero que Medellín seja uma cidade dividida como o mundo está dividido entre a América do Norte e a América do Sul, por exemplo, ou a América Central”.
Conversa com o escritor de Angosta e de O Esquecimento do que Seremos, para cuja casa na zona de El Poblado fui encaminhado pelo amigo e também escritor Maurício Garcia Villegas, professor na Universidade Nacional de Bogotá, natural da mesma região de Antioquia onde fica a capital provincial Medellin: “Eu penso que é difícil medir a dimensão da mudança em Medellin. Muitos dos problemas que Medellin teve, continuam a ter a ver com os problemas que a Colômbia e a América Latina têm, que é uma enorme desigualdade de classes sociais. Não houve uma grande transformação neste domínio. Houve uma mudança em relação à violência em Medellín, com um foco muito grande no tráfico de droga. Mas, claro, o tráfico de droga continua. O que aconteceu é que houve uma altura em que o cartel de Medellín, a máfia do tráfico de droga, estava organizada contra o Estado e a sua principal estratégia era quebrar o Estado e, em particular, quebrar as autoridades do município de Medellín e a polícia. Essa estratégia mudou. Não é que o tráfico de droga tenha diminuído, mas sim que essa estratégia mudou. E é possível que as autoridades tenham hoje mais margem de manobra para controlar focos de tráfico de droga. Mas em termos gerais, o narcotráfico continua a prosperar na Colômbia e em Medellín, e creio que na América Latina, e penso que este é um dos grandes dramas da Colômbia e do mundo, o narcotráfico.”
Vai também conduzir e orientar a TSF pela geografia social e história de Medellin um filho da cidade, cuja violência lhe tirou um irmão e o fez dedicar-se ao trabalho social, Julian Marin Silva. Tinha-o conhecido há uns bons anos já, em 2018, em Lisboa, na Academia de Líderes Ubuntu liderada por Rui Marques. Julian Marín trabalhava com o Distrito de Medellín para implementar a Política Pública de Juventude. Esteve durante cerca de três anos na Direção Técnica da Secretaria da Juventude, foi afastado quando a governação regional mudou. Ultimamente tem-se dedicado às questões ligadas à memória do conflito e à paz. A tese de mestrado que defendeu chama-se El sueño de la paz urbana, o sonho da paz urbana. Trabalha atualmente no programa nacional Jovens na Paz. Julian vai buscar a TSF ao hotel num sábado de manhã e paramos em frente a um mural, num viaduto na estrada que vai para o aeroporto, onde os jovens prestam homenagem às mães, as mães de Medellín que tantos, filhos, filhas, pais, mães, irmãos, irmãs, já perderam no conflito. “Em janeiro deste ano, no dia 14 de janeiro”, começa por contar. “Diferentes colectivos de grafiteiros, de artistas populares da cidade decidiram ocupar este lugar, para prestar homenagem aos movimentos, às vítimas e aos familiares dos desaparecidos da Comuna 13 com, digamos, um slogan fundamental: as cuchas têm razão, as cuchas para nós são as mães, as mães têm razão. Têm razão porque, depois de 22 anos de reivindicações, os primeiros quatro corpos de pessoas dadas como desaparecidas no contexto do conflito na Comuna 13 foram encontrados na Escombrera, pessoas desaparecidas pelos paramilitares em conluio com as forças do Estado. Por isso os jovens tomaram conta desta zona deprimida, desta zona da cidade."
Estamos no centro da cidade, nos limites da Comuna 5 e Comuna 10 de Medellín; os jovens ocuparam com este mural este lugar com a mensagem: “As cuchas têm razão.” Os autarcas do distrito, conta Julian, “tomaram imediatamente a iniciativa de apagar o mural. Isso foi entendido como uma ofensa às vítimas e aos jovens e eles voltaram a pintar o mural apesar da iniciativa de censura e de apagamento da memória. E os jovens exigiram definitivamente que o governo local mantivesse este local como um local de homenagem aos desaparecidos. Por isso te trouxe aqui: porque é muito importante reafirmar que estamos a fazer um exercício de memória no meio da memória dos violência e da acção institucional de apagar e silenciar o movimento das vítimas”. A TSF pergunta se é também uma prova do poder dos jovens? “Sim, definitivamente. É a prova de que as juventudes nesta cidade foram resistentes, tomaram a palavra, resistiram a todos os grupos armados e propuseram alternativas ao militarismo. Os jovens nesta cidade sempre utilizaram a arte como mecanismo de resistência e denúncia e assim continuam, a propor formas de resistir, no meio da violência e das iniciativas institucionais de silenciamento.”
Miguel Barreto Henriques é um académico português que estuda o conflito há vinte anos e que vive na Colômbia há treze, agora professor na Pontifícia Javeriana em Bogotá, mas conhece muito bem Medellin, foi diretor do Observatório de Construção da Paz: “A região de Medellín, que se chama Antioquia, é uma região muito afetada pelo conflito armado desde há muitas décadas, aliás, segundo os distintos relatórios da Comissão da Verdade, é a região que tem mais vítimas do conflito armado. São problemas que é muito difícil que desapareçam, que se vão perpetuando, embora em transformação, pois há uma transformação muito significativa de Medellín; aliás, há gente que chega a falar do milagre de Medellín. Na década de 90, no apogeu do cartel, Medellin tinha das maiores taxas de homicídios a nível mundial, tinha confronto entre guerrilhas, paramilitares, exército e narcotraficantes, por isso era realmente um cenário muito pesado de assassinatos, bombas, operações urbanas por parte do exército.”
Pouco a pouco, desde esse período até à atualidade, Medellín tem sido uma cidade exemplar, não só a nível colombiano, mas também a nível internacional, do que pode ser uma transformação positiva de uma cidade com base em vários instrumentos: “Estamos a falar, por exemplo, de educação, outro ex-candidato à presidência da República, Sérgio Farrardo, quando foi presidente da Câmara e governador da região da Antióquia, apostou muito que a forma de colocar uma vacina nessa forma de violência, era através da educação.” Houve uma grande aposta na escola pública, “em bibliotecas, em algumas comunas de Medellín temos bibliotecas públicas de bastante qualidade, que foram até refúgios em alguns momentos de violência para a população. Outro mecanismo foi o transporte público, procurou integrar muitíssimo a cidade e as zonas mais periféricas das comunas, através de metro e do metrocable”.
Uma espécie de funicular que vai até da parte baixa da Comuna 13, desde o seu bairro San Javier, até lá acima, às partes altas e mais periféricas? “Exatamente, ou seja, a maior parte destas favelas ficam já nas montanhas e por isso muito pouco integradas ao resto da cidade. Com o metrocable, diminuiu consideravelmente o tempo que as pessoas que vivem aí demoram a deslocar-se e também, nesse sentido, maior acesso ao trabalho”. E o terceiro mecanismo “não é através de políticas públicas, mas é de inspiração popular, são alguns mecanismos de prevenção da violência através de meios artísticos”.
Para tudo isto ser possível, foi indispensável o trabalho de memória sobre o conflito armado. À porta do Museo Casa da Memória Julian Marín explica-me que para quem vem dos movimentos das organizações sociais, “talvez seja o lugar mais importante para as vítimas desta cidade porque, para além de ser um espaço físico onde as memórias das vítimas estão expostas, onde as memórias das vítimas são tornadas visíveis, foi um lugar reivindicado pelas vítimas; ou seja, este lugar foi construído pelo município, mas por exigência das vítimas, porque não tínhamos um lugar ou um espaço adequado para tornar visível não só a dor e os atos que ocorreram no contexto do conflito armado, mas também porque se tornou um espaço para tornar visível a resistência, os processos de mobilização e organização popular e os processos de esclarecimento que as comunidades e as organizações protagonizaram”.
Ao longo da sua história, o Museu Casa da Memória tornou-se um lugar não apenas de exposições e museus, mas também um lugar de encontro.Os programas e projetos desenvolvidos pelo espaço museológico procuraram igualmente “ligar organicamente as famílias das vítimas e as organizações que continuam a trabalhar nas questões da memória e dos direitos humanos nos territórios; depois, como local de encontro, tornou-se também um local de venda ou exposição de produtos desenvolvidos pelas vítimas”. Há pessoas que assinaram o acordo de paz pelas FARC que também se tornaram empresários, e que, como afirma o ativista e especialista em assuntos da juventude e construção da paz, “foram pessoas que reconstruíram os seus projetos de vida através de iniciativas empresariais. Portanto, o museu tem sido também um local de encontro entre as vítimas e os responsáveis pelo conflito armado, mas também um local de reconciliação, que é central na importância de um local como este, que continuamos a defender e a exigir que se torne ou continue a ser um local de encontro para as vítimas”.
Julian Marin é natural e habitante de Medellin, cresceu na comuna 13: “Vivemos um período de violência muito forte que foi a expressão urbana do conflito armado que a Colômbia viveu, vivemos o confronto entre milícias, paramilitares, a presença da guerrilha num contexto urbano, intervenções do paramilitarismo e as forças do Estado.” Num contexto quotidiano, significa ou significava “ver os exércitos no bairro, a lutar pelo território. E também tínhamos de ver como levavam ou capturavam pessoas do território e as faziam desaparecer, como matavam indiscriminadamente civis ou como os recrutavam, os diferentes grupos armados que os recrutavam, e isso marcava-me”, afirma em entrevista à TSF.
Perdeu amigos. Mais do que isso. “Perdi também um irmão; nesse contexto o paramilitarismo teve um período de grande violência no território, muitas pessoas foram assassinadas e desapareceram, e um irmão meu foi assassinado por paramilitares em competição ou em coordenação com as forças de segurança, e isso marcou-me. Então, isso levou-me às organizações comunitárias. Foi como se a vida me dissesse: escolhe reproduzir o que viveste ou estão a viver no bairro ou escolhe resistir e trabalhar com a comunidade. Então, eu escolhi estar com a comunidade, fazer trabalho de memória, fazer trabalho de paz, fazer trabalho de promoção da participação e defesa dos direitos dos jovens; e esse foi o meu percurso e é aí que tenho estado nos últimos 25 anos da minha vida, contribuindo a partir da comunidade, da arte, da investigação, da memória e dos processos de direitos humanos.”
O museu reúne uma compilação de histórias e pesquisas sobre décadas de conflito na Colômbia, a experiência das vítimas, mas também os actos de resistência liderados pela sociedade civil, o produto de um trabalho de interação entre vítimas, organizações e investigadores; no fundo, a história dos protagonistas do que foi o conflito a partir da dimensão das vítimas mas também da dimensão da resistência.
Uma história de muitos ilustres que foram assassinados e agora são lembrados na Casa da Memória: “Na Colômbia não chegámos a acordos nem a consensos sobre o que esperamos que seja o país. Tivemos pelo menos sete grandes líderes políticos, principalmente de esquerda, como Jorge Eliezer Gaitán, Carlos Pizarro, Bernardo Jaramillo, Jaime Pardo Leal, que foram assassinados basicamente por causa das suas posições que iam contra o status quo, ou contra o establishment, e que na altura eram os protagonistas do que seria uma mudança importante na política do país. Jorge Eliezer foi assassinado em 1948, que é como que a génese de um período de violência muito forte e o aparecimento das primeiras guerrilhas no país. Mas há outros como Carlos Pizarro, que era o comandante do M-19, que foi assassinado em 1991 e digamos que é um dos marcos mais importantes da violência política no país porque era como que a pessoa que estava a promover um movimento que transcendia a via das armas para a via da política e representava a possibilidade de uma alternância no poder, mas foi assassinado.” O mesmo se passa com Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo, líderes da esquerda democrática no país. Silva, enquanto percorremos o espaço, destaca ainda duas imagens que considera “muito importantes: Gilberto Echeverry e Guillermo Gaviria, que na altura eram o governador de Antioquia, o conselheiro para a paz do gabinete do governador. Lideraram uma mobilização em 2001 da capital para o oeste de Antioquia, para o município de Caicedo”.
Os guerrilheiros das FARC, nessa altura, seguiam uma política de confinamento e esses políticos lideraram, sendo funcionários públicos, uma mobilização no local: “Foram lá e foram raptados pelas FARC e depois numa operação do exército foram mortos, foram vítimas da troca de tiros. Portanto, estes são exemplos de como na política houve violência, houve também iniciativas de paz e de diálogo nacional e essas iniciativas de paz, acabam também por ser afectadas pela própria violência.” Um ciclo interminável. Terminou com o acordo de paz de 2017? Nem por isso. Mas tudo está bastante diferente na Comuna 13.