Papa Francisco: viagem ao bairro onde nasceu, cresceu, namorou e sentiu "a revelação"
Estão intactas as casas onde nasceu e cresceu. A basílica onde abraçou a religião continua a ser um farol para todos e peça central de San José de Flores. Foi aí que, em 1957, sentiu o chamamento para a vida religiosa. Reportagem da TSF, em 2023, no bairro que era vila e hoje integra Buenos Aires
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“A Basílica de Flores é um templo importante nesta cidade e nesta arquidiocese de Buenos Aires”, começa por dizer à TSF o secretário da paróquia da Basílica de Flores, Luís Avellaneda.
É um templo que conheceu os inícios da independência argentina: "O atual templo foi fundado em 1806, mas ao longo dos três templos tivemos a capela primitiva, depois o templo que Juan Manuel de Rosas construiu e a atual basílica. San José de Flores viu a história que ia da capital às províncias e das províncias à capital passar por esta Avenida Rivadavia. É um lugar de passagem obrigatória.”
Como foi a presença de Bergoglio aqui? “Bem, Flores foi o seu local de nascimento. Era um bairro, ou seja, quando deixou de ser uma cidade independente e passou a fazer parte da capital, demos-lhe o nome de bairro. O Papa Francisco, Jorge Bergoglio, nasceu neste bairro, foi educado neste bairro. Fez aqui toda a sua escolaridade primária e secundária. E nesta igreja de São José de Flores, um dia, quando se confessou, o padre que o ouviu obviamente disse-lhe algo que despertou nele a possibilidade de se tornar padre. Começou a pensar nesta vocação para o sacerdócio. Em 1957, decidiu definitivamente, deu o seu consentimento interior, digamos assim, para se dedicar a Deus.”
O diário argentino Clarin recorda esta terça-feira, um dia após a morte do Papa, ao jeito de lenda, como “numa manhã de primavera, passou pela basílica e, enquanto os seus companheiros o esperavam para fazer um piquenique, teve uma revelação. Sabia que ia dedicar a sua vida a Deus. Em vez de ir ao piquenique, foi para casa meditar”, naquela que é uma das histórias que ligam Bergoglio ao seu bairro de Flores e que aparece em El Jesuita, a biografia escrita pelo jornalista do Clarín Sergio Rubin e pela italiana Francesca Ambrogetti.
“Depois de muitos anos”, continua Luís Avellaneda num pequeno gabinete na Basílica de San José de Flores, “nos anos 90, foi consagrado bispo, foi bispo auxiliar de Buenos Aires e foi destinado a uma das dioceses, neste caso a diocese de Flores. E assim voltou às suas raízes, depois de 40 anos na cidade.”
Há uma casa numa rua onde o Papa nasceu, quase aqui ao lado, na rua Varela. E na rua Membrillar, uma outra casa onde viveu. A TSF insiste em saber se ainda há por aqui pessoas que o tenham conhecido.
"Os anos passaram, obviamente, os anos passaram para todos nós, os nossos cabelos embranquecem e andamos cada vez mais devagar. Portanto, a vida passa, a vida passou. Estamos a falar do ano de 1957, estamos em 2023, passaram muitos anos", refere. As pessoas que foram contemporâneas do Papa Francisco, muitas delas, se não a maior parte, "já faleceram e outras que podem restar já não estão neste bairro e são muito velhas. Quanto às duas casas, estão intactas. Isso foi um milagre, porque nas Flores tudo o que era velho foi demolido para dar lugar aos prédios de apartamentos. Atualmente ainda estão de pé as duas casas onde ele nasceu, na rua Varela, e, quase a 300 metros, a do número 500 da rua Membrillar. Essa foi uma casa posterior, para a qual a família Bergoglio se mudou. Já nenhum dos seus familiares vive aqui nas Flores. Sei que a sua irmã viveu numa das localidades da linha do Oeste e sei que um sobrinho também vive na capital para a zona Norte, mas se formos tocar à campainha destas casas só encontraremos pessoas desconhecidas que também não o conheciam".
Também já não mora no bairro, tanto quanto se sabe, a mulher chamada Amália, que só quebrou o silêncio em 2013, quando Jorge Bergoglio foi eleito Papa. Afinal, essa menina do bairro de Flores foi a adolescente por quem o jovem Jorge Mário se apaixonou, ainda antes de 1957. Uma namorada no tempo da inocência.
Mas é ou não um motivo de orgulho para São José de Flores o facto de o Papa ser argentino e ainda mais o facto de ser natural deste bairro? “Sim, penso que é um motivo de orgulho para toda a América Latina ou para toda a América, porque é a primeira vez que um Papa americano acede ao papado, que um homem americano acede ao papado. É obviamente um motivo de orgulho o facto de a América poder agora dar frutos deste tipo. Mas, logicamente que sim, para a pequena pátria, a começar pela Argentina, passando por Buenos Aires e descendo até Flores e até esta paróquia, é um motivo de orgulho e de alegria. Penso que o facto de um filho deste bairro ser Papa significa que este farol tem muito mais peso, muito mais luminosidade", afirma o secretário da paróquia e, segundo Maria, que encontrámos à porta, "a pessoa que sabe mais sobre o Papa do que os próprios padres da basílica".
Prossegue Avellaneda: "Quando já não estivermos cá e ele também já não estiver neste mundo, as gerações sucessivas vão obviamente olhar para isto como uma conquista, como um motivo de orgulho, como um sinal. Chamar-lhe-íamos um sinal de honra e de pertença ao papado. Não é pelo facto de um filho deste bairro se tornar bispo ou cardeal; enfim, muitos o são. São coisas importantes, e nós também as tivemos. Mas o pontificado é presidir a partir de Roma. É o bispo de Roma que preside à Igreja Católica Universal. E isso tem obviamente o seu peso”, afirma, com indisfarçável orgulho.
Como é que o vê como pessoa, como um homem, como uma personalidade? “Olho para ele deste ponto de vista: ele é um filho desta paróquia e deste bairro. Eu também nasci aqui, neste bairro, os meus pais casaram nesta igreja, os meus irmãos e eu fomos aqui batizados. Fizemos a primeira comunhão. Ou seja, a nossa vida religiosa, daqueles que vêm das Flores, gira em torno desta igreja, que é um edifício de referência. Esta igreja de São José de Flores sempre esteve na cidade como um farol, como aquele farol que gira com a luz e atrai os navios para o porto. Pois bem, aqui Flores é um farol que sempre atrai homens e mulheres desta geração, como foi no passado, para o encontro com Deus. Por isso, creio que o facto de um filho deste bairro ser Papa significa que este farol tem muito mais peso, muito mais luminosidade."
"O que todos nós temos que aprender é a valorizar isso", a valorizar a figura de um pontífice nascido em Flores. "Penso que toda a gente em Flores o sabe, mas parece-me que não o aprofundamos suficientemente e não o valorizamos suficientemente". Para este homem calvo e de barbas, natural do bairro onde nasceu e cresceu Francisco, falta valorizar mais "a profundidade da personalidade de Bergoglio, já para não falar do seu pontificado e dos seus ensinamentos, merecia mais. Não há papa mais moderno, mais em sintonia com os tempos atuais".