"Paranoia" de um homem levou Albânia a construir milhares de bunkers. Turismo dá-lhes nova vida
Chegou a ser conhecida como a “Coreia do Norte da Europa” e hoje continua a ser um dos países do mundo com mais bunkers. Foram construídos durante a Guerra Fria, por ordem de Enver Hoxha, o ditador comunista que governou a Albânia durante mais de 40 anos. Milhares de abrigos ainda resistem e estão a ser transformados
Corpo do artigo
Quem passeia pelo centro da capital Tirana é difícil não tropeçar num bunker. São quase como cogumelos, mas estes apenas deixam a ponta de fora. Há de todos os tamanhos, a TSF visitou um que é agora museu.
À superfície só se vê a cúpula do bunker. É por aqui que se entra. No teto, oval, estão fixados dezenas de rostos, como faz questão de sublinhar o historiador Erald Kapri: “Vemos aqui fotografias de intelectuais, deputados, padres, que morreram. Todos eram considerados inimigos e milhares continuam desaparecidos. Não sabemos onde foram enterrados. Sabemos que pelo menos 6 mil pessoas foram mortas pelo regime comunista.”
Kapri tem sido das vozes mais ativas na luta contra o esquecimento e destaca que a Albânia ainda não se reconciliou com as vítimas do comunismo, nem sequer as compensou: “Ninguém neste país foi condenado pelos terríveis crimes que aconteceram no comunismo. Parece que nada aconteceu e isso é a coisa mais terrível no que toca aos governos da Albânia dos últimos anos.”
Mas se há paredes que não esquecem são as desta cúpula, onde há marcas de revolta. “Vemos no topo um enorme buraco, porque há cerca de 5 anos, quando a oposição estava a protestar por direitos, participaram as famílias de antigos presos políticos e atacaram isto, porque veem aqui um símbolo da ditadura”, afirma o historiador, ao mesmo tempo que aponta para o topo da cúpula. Para que também esta história confronto com o passado pudesse ser contada, a empresa privada que gere o bunker deixou os estragos ficarem.
A ameaça de guerra levou a Albânia a gastar uma fortura em defesa
Descemos agora as escadas que dá acesso à zona principal do bunker. Passamos os torniquetes. Estamos debaixo de terra, no túnel de um dos 750 mil abrigos idealizados pelo líder comunista. Enver Hoxha temia um ataque de vizinhos como Jugoslávia ou Grécia, da NATO ou até mesmo da União Soviética com quem chegou a ter ligações privilegiadas.
“O nosso louco ditador decidiu construir bunkers em todo o país para enfrentar uma invasão estrangeira que nunca aconteceu. Mais de 1 terço do orçamento foi gasto em defesa. Foi quase uma paranoia que o nosso povo enfrentou, com grande custo humano e financeiro”, recorda Erald Kapri
O Estado albanês terá gasto cerca de 2 mil milhões de dólares, neste gigantesco projeto que começou na década de 70. As zonas rurais pagaram um preço mais elevado, uma vez que “as condições no interior eram terríveis”: “Nos anos 80, a comida começou a ser racionada, mesmo na cidade. Por exemplo, uma família de 5 ou 6 pessoas na Albânia apenas podia comprar um quilo e meio de carne ou apenas 10 ovos por mês”.
Mas o plano inicial ficou longe de ser concretizado. Dos 750 mil bunkers idealizados, apenas 170 mil foram construídos. Cada um daria abrigo a pelo menos 4 pessoas. Não se sabe ao certo quantos ainda existem.
“Depois dos anos 90, muitas famílias, em especial nas aldeias e em zonas pobres, começaram a destruir os bunkers para retirar o ferro que tinham no interior para vendê-lo. Mas ainda existem milhares e milhares deles na costa, nas montanhas, nos terrenos. Em todo o lado”, acrescenta o especialista na história moderna.
Com o crescimento do turismo na Albânia, muitos destes antigos bunkers são agora restaurantes, bares ou até museus que juntam arte e história. É o caso deste que visitamos em Tirana: “Este é um bunker atómico, construído essencialmente no final da década de 70 e finalizado no início dos anos 80. O objetivo era em caso de ataque, proteger os elementos do Ministério do Interior e manter toda a estrutura operacional”
O bunker nunca foi usado e muito do que havia mantem-se intacto, a começar pelas paredes de betão armado com quase dois metros e meio de espessura. “Não pouparam qualquer dinheiro para construir esta estrutura”, garante Erald Kapri
Sinal disso é também a dimensão dele e não é sequer dos maiores na Albânia. Há no entanto espaço para cerca de 20 salas, ligadas a um túnel. Todas elas contam pedaços da história do país, que chegou a estar tão isolado que ficou conhecido como a Coreia do Norte da Europa.
Erald Kapri lembra que era ilegal sair da Albânia e o regime “fez um enorme esforço para proteger as fronteiras”, de tal forma que todo o país “estava cercado por arame farpado, com milhares de soldados a patrulharem as fronteiras”.
“É curioso que o objetivo não era impedir o inimigo estrangeiro de entrar, antes impedir os albaneses de saírem do país. Quem o fizesse era considerado traidor e podia ser condenado a oito anos de prisão”, destaca o historiador, acrescentando que “milhares morreram a tentar atravessar as fronteiras”.
Dos Gulags estilo União Soviética à revolta estudantil que trouxe mudanças
Outra das páginas negras dos mais de 45 anos de liderança comunista na Albânia, que começou em 1944, foram os campos de trabalho forçado. Há também espaço para os lembrar neste bunker. Do primeiro aeroporto de Tirana, ao anterior estádio da capital, foram imensas as obras construídas por quem esteve preso.
“Muitas das coisas que vemos em Tirana foram construídas por prisioneiros políticos que estavam em campos. Foram milhares, os que morreram. A Albânia, um pequeno país, chegou a ter quase uma centena de campos de trabalho forçado”, salienta Erald Kapri.
Para quem conseguiu sobreviver, as dificuldades não terminaram nos gulags: “Três gerações viveram nos campos e nos anos 90 alguns conseguiram regressar às antigas casas. Mas muitos não tiveram tanta sorte porque o Estado tinha arrestado as suas casas e deu-as a outras famílias, em especial da estrutura do partido. Houve na altura um grande debate e conflito: ‘O que vamos fazer com estas pessoas?’”
A questão colocou-se depois do fim do comunismo na Albânia, no início da década de 90. Para este desfecho, em muito contribuíram a morte do ditador Enver Hoxha em 1985, a queda do muro de Berlim, poucos anos depois, e as intensas pressões externas e internas para a mudança de regime. Os estudantes, como mostra um vídeo numa das salas do bunker, estiveram na linha da frente.
“[Os estudantes] começaram a protestar contra os problemas que enfrentavam nos estudos, como os económicos, mas as manifestações tornaram-se rapidamente políticas e meses depois, a 20 de fevereiro de 1991, com a ajuda dos habitantes de Tirana, organizaram um grande protesto e derrubaram a enorme estátua do ditador, Enver Hoxha, no centro da cidade. Para os albaneses, 20 de fevereiro de 1991 é o dia que marca o fim da ditadura, apesar dos comunistas terem estado mais um ano no poder”, afirma o historiador.
Estamos de regresso ao túnel que liga as várias salas. Candeeiros, originais daquele tempo, iluminam a espaços o caminho, que nos leva à zona mais sensível do bunker: a sala do ministro do interior.
“O imobiliário que aqui vemos é daquele tempo, tem sido preservado, bem como a biblioteca, a mesa, a máquina de escrever. Era aqui que o ministro do interior tomaria decisões importantes e ficaria em caso de guerra”, nota Erald Kapri.
No teto, nas paredes, no chão. Toda a sala está forrada com ripas de madeira. Ao nosso redor, estão fotografias dos Ministros do Interior desde 1912 e encostada a uma parede, uma televisão, que passa propaganda do regime. Ao fundo, uma porta, que dá acesso “a uma pequena sala com uma cama”, destinada para o Ministro do Interior no caso de “querer dormir uma sesta”.
O confronto com um passado incómodo para alguns, mas glorioso para outros
Apesar de alguns albaneses quererem fechar a porta a este passado, ainda que considerem importante lembrá-lo, outros parecem não o querer largar. Um deles, segundo o historiador, é o atual primeiro-ministro.
“Edi Rama lidera o Partido Socialista da Albânia, que está no governo e é descendente do Partido Comunista. Por aqui vemos que o socialismo e o antigo comunismo continuam a ser uma força dominante neste país. Mas muitos dos símbolos continuam a ser propagandeados, até pelo próprio Edi Rama. Por exemplo, a 29 de novembro temos o dia da libertação da Segunda Guerra Mundial, que foi um dia imposto por Enver Hoxha e que continuamos a celebrá-lo. Mas muitas pessoas, como eu, recusamo-nos a fazê-lo. Não o consideramos dia de libertação, mas o dia em que fomos de novo invadidos. Livramo-nos dos nazis, chegaram os comunistas”, frisa Erald Kapri
Para que este passado seja lembrado, mas não glorificado, o especialista em história moderna quer contar com a ajuda da União Europeia. A Albânia pediu para aderir à organização em 2009. Cinco anos depois obteve o estatuto de país candidato e as negociações com Bruxelas estão agora numa fase acelerada.
Erald Kapri não tem dúvidas de que o país quer “estar na União Europeia o mais cedo possível, mas o principal problema continua a ser a corrupção”: “Ainda temos esperança que um dia os crimes praticados pelos comunistas sejam punidos, que as vítimas sejam compensadas e que a sociedade albanesa faça mais pelo seu passado. Por exemplo, nas escolas não se ensina nada sobre o que realmente foi o comunismo. É de loucos.”
Mas para que este passado negro não seja apagado, os museus na Albânia têm-se esforçado nos últimos anos para preservar a memória. O que visitámos tem testemunhos em vídeo ou por escrito do que foi vivido e exibe objetos daquele tempo, como um carro.
Erald Kapri aponta para ele, que está à entrada no bunker, para recordar: “Este carro que aqui vemos, era considerado o mais terrível durante a ditadura, porque era usado pelo Ministério do Interior e se este carro se aproximasse de ti significaria que serias preso, ou seja, estarias em grandes problemas”.
A TSF viajou a convite da Representação da Comissão Europeia em Portugal