O departamento de Defesa dos Estados Unidos questionou a posição do secretário-geral das Nações Unidas no acordo que desbloqueou a exportação de cereais ucranianos e de fertilizantes russos.
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O Departamento de Defesa dos Estados Unidos acredita que o secretário-geral das Nações Unidas mostrou demasiada abertura para acomodar interesses russos.
Os documentos classificados do Pentágono divulgados na internet mostram que os Estados Unidos estão a monitorizar atentamente a postura de António Guterres face à guerra na Ucrânia.
O Pentágono teve acesso a conversas privadas entre Guterres e a sua delegada Amina Mohammed e analisa as declarações do secretário-geral da ONU sobre a guerra, revela esta quinta-feira a BBC.
Um dos documentos foca-se no acordo do Mar Negro - assinado em julho do ano passado entre Kiev e Moscovo e intermediado pelas Nações Unidas e Turquia para desbloquear a exportação de cereais ucranianos e de fertilizantes russos, na sequência de receios de uma crise alimentar global - sugerindo que António Guterres estava tão empenhado em preservar o acordo que estava disposto a acomodar interesses russos.
"Guterres enfatiza os seus esforços em melhorar a capacidade da Rússia para exportar", envolvendo, inclusive, "entidades ou indivíduos sancionados", o que, considera o Pentágono, "pôs em causa o esforço global para responsabilizar Moscovo pelas suas ações na Ucrânia".
Em resposta, as Nações Unidas não comentam diretamente as revelações dos documentos secretos do Pentágono, mas um oficial sénior garante que a organização sempre agiu face à "necessidade de mitigar o impacto da guerra nos mais pobres".
"Isso quer dizer fazer tudo o que podermos para baixar o preço dos alimentos" e "garantir que o preço dos fertilizantes é acessível para os países que mais precisam", acrescenta a mesma fonte.
Os cereais e fertilizantes russos não foram alvo de sanções internacionais, mas o Moscovo queixa-se que as exportações foram indiretamente afetadas e ameaçou duas vezes suspender a cooperação no acordo do Mar Negro.
À TSF, Vítor Ângelo, antigo secretário-geral adjunto das Nações Unidas, onde trabalhou durante mais de 30 anos, considera que os EUA exercem sempre uma forte pressão sobre o secretariado das Nações Unidas.
"A verdade é que os Estados Unidos observam diariamente o trabalho do secretário-geral e do secretariado-geral das Nações Unidas. Não é segredo para ninguém que há uma espécie de espionagem, digamos assim, de tudo aquilo que é feito ao nível do secretariado-geral das Nações Unidas."
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"Aliás, a missão americana junto das Nações Unidas é uma missão bastante numerosa e um dos objetivos dessa missão é exatamente seguir cada palavra, cada passo do secretário-geral e dos principais funcionários do sistema das Nações Unidas em Nova Iorque."
No caso do acordo do Mar Negro, que facilita a saída de cereais ucranianos e outros produtos alimentícios para os mercados internacionais, Vítor Ângelo só tem elogios para o trabalho desenvolvido pelo secretário-geral das Nações Unidas.
"O acordo dos cereais foi bastante importante e o empenho do secretário-geral de António Guterres foi enorme. Foi ele que esteve pessoalmente empenhado na resolução deste acordo, que era um acordo bastante difícil, tendo em conta a posição russa e ele conseguiu, em colaboração com o Presidente da Turquia, chegar a um acordo. E isso, evidentemente, é bastante importante."
Garantir o fornecimento de cereais para a Europa e evitar uma crise alimentar mais grave é considerado, pelos Estados Unidos, uma ação humanitária, quando o expectável seria uma posição de força.
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"Simplesmente para os americanos isso é visto apenas como uma ação humanitária. E eles, o que esperam do secretário-geral é uma ação política. E essa é uma das questões que frequentemente é referida: o Secretário-Geral tem uma grande tendência para se ocupar de questões humanitárias e é relativamente hesitante no que diz respeito à resolução de questões políticas, sobretudo, se as questões políticas que têm a ver com membros permanentes do Conselho de Segurança."
O antigo secretário-geral adjunto admite que a posição da organização durante a Guerra na Ucrânia tem sido marginal.
"As Nações Unidas têm estado numa situação relativamente marginal, digamos assim, no que diz respeito a uma solução política. Mas como eu disse também, uma solução política não é fácil. Por exemplo, a própria China, que tem um poder excecional, não se tem querido meter numa tentativa de resolução e de mediação do conflito do ponto de vista político. Ou seja, neste momento não há condições para se encontrar uma solução política, mas o facto de não haver condições para se encontrar uma solução política não quer dizer que não se deve insistir quotidianamente na necessidade de se encontrar solução."
Mais de um ano depois do início da invasão, António Guterres devia continuar a insistir na sua condenação da invasão, defende Vítor Ângelo.
"O Secretário-Geral tem que dizer, eu diria de quase todos os dias, que é preciso acabar com a guerra, é preciso acabar com a violação da lei Internacional, é fundamental encontrar uma solução política e que o secretariado-geral, e nomeadamente o Secretário-Geral, em particular, estão prontos para ajudar a encontrar essa solução política."