Polónia recupera a democracia liberal, mas "a tarefa é difícil, árdua, longa e acidentada"
A ameaça russa sobre a Ucrânia e a democracia na Europa vista a partir da Polónia, pelo olhar do conceituado jornalista e editor Maciej Stasinski, do jornal Gazeta Wyborcza. A Polónia tem este domingo eleições autárquicas.
Corpo do artigo
A Polónia é um dos grandes países da União Europeia e da NATO. 37 milhões de habitantes. Nos últimos oito anos, teve um governo do PiS, Partido da Lei e Justiça, que deixou muitas reservas á União Europeia sobre a forma como a democracia estava – ou não – a ser defendida no país, nomeadamente na questão da independência do poder judicial. Agora, o país é liderado por Donald Tusk, antigo presidente do Conselho Europeu. Maciej Stasinski é jornalista polaco, especialista em assuntos ibéricos, trabalha desde 1997 na "Gazeta Wyborcza", um dos maiores jornais da Polónia, é correspondente do diário espanhol "La Vanguardia" em Varsóvia há mais de trinta anos. Colabora com o canal de televisão polaco TVN24. Estudou filologia espanhola e portuguesa, bem como filosofia, história e sociologia na Universidade de Varsóvia, onde se licenciou em 1980. Concluiu estudos hispânicos na Universidade Complutense de Madrid. Conversa à margem do Congresso da EditoRed, Associação de Editores da União Europeia e América Latina, realizado em Bruxelas.
Como está a Polónia?
A Polónia está no caminho de recuperar a democracia liberal e o nosso papel e lugar na Europa, que perdemos durante oito anos devido a um ataque frontal a ambos os valores por parte do anterior regime nacionalista, que governou a Polónia entre 2015 e 2023. Estamos a meio da recuperação de tudo isto, mas temos pela frente uma tarefa difícil, árdua, longa e acidentada. Por dois fatores, o primeiro é a dimensão do caos provocado pelo anterior regime polaco, claramente autoritário e antidemocrático, durante oito anos. Em todos os domínios da vida, em todos os domínios.
Não apenas no sector judicial?
Não! A começar pelo setor judicial, que foi quase parcialmente, não totalmente, e é por isso que o podemos reconstruir, mas foi em grande parte tomado pelo poder executivo do partido no poder e sujeito aos ditames do poder executivo. A independência judicial estava a ser deliberada e sistematicamente extinta, mas os estragos a que me refiro vão muito mais longe. Entram no domínio da censura, da monopolização dos meios de comunicação social públicos, que se tornaram uma tribuna de propaganda só comparável aos tempos comunistas, ou mesmo mais do que nos tempos comunistas. É incompreensível para as pessoas que não sabem polaco e que não foram capazes de o seguir. Finalmente, o papel desempenhado pela televisão e pela rádio públicas durante o governo de Kaczynski e do partido nacionalista foi o de uma tribuna de propaganda no melhor estilo totalitário, mentiroso e falso, como nos tempos do totalitarismo comunista ou do totalitarismo nazi.
Tens um ou dois exemplos que te venham à cabeça?
Muitos, muitos, muitos. Houve informação que foi silenciada e houve informação que foi censurada. Os media tornaram-se uma plataforma para o discurso de ódio, para o discurso de ódio contra tudo o que a Europa representa e tudo o que o liberalismo, o modelo liberal representa. O inimigo público que apareceu em todas as notícias foi Tusk, ou seja, Donald Tusk, o atual chefe de governo e antigo líder da oposição e antigo líder do...
Do Conselho Europeu...
Do Conselho Europeu. Donald Tusk, Alemanha, ou seja, não houve programa noticioso em que, durante muitos meses, Donald Tusk não fosse tachado de agente da Alemanha, como um inimigo da Polónia, da soberania polaca. Era tão brutal que as pessoas não acreditavam mesmo que isto fosse possível num país nominalmente democrático. Mas havia muitas outras coisas: estavam a surgir grandes escândalos de corrupção ou de abuso de poder no seio da direita nacionalista no poder, e estes nem sequer apareciam nos noticiários da televisão pública. Não existiam. Tudo o que era denunciado como escândalo, abuso, poder, por exemplo, as escutas com o programa Pegasus, dirigido não contra o terrorismo, mas contra a oposição política, estava provado, mas quem o mostrava? Os últimos meios de comunicação independentes que ainda estavam fora do controlo absoluto do regime nacionalista, como a estação de televisão independente TVN 24 horas e o nosso jornal Gazeta Wyborcza. Todos os escândalos e abusos que foram descobertos e denunciados por nós ou pelos meios de comunicação social independentes, os últimos meios de comunicação social independentes que restavam, a televisão pública ou os silenciava ou dizia que se tratava de uma mentira grosseira dos agentes externos.
E a outra dificuldade para regressar à normalidade democrática, na sua opinião, é o facto de o Presidente da República Andrzej Duda ainda ser membro do PIS, o Partido da Lei e da Justiça, que governava o país...
Exatamente. É o segundo ponto que torna esta tarefa de reconstrução da democracia liberal, com a sua divisão de poderes e o seu sistema de instituições de pesos e contra pesos, uma tarefa enorme, que é exatamente a posição em que se encontra o Presidente da Polónia. O Presidente da Polónia é um cargo eleito por sufrágio universal. Por isso, teoricamente, tem um mandato muito forte, mas politicamente não o é e o atual Presidente ainda tem um ano de mandato pela frente. Não é membro do Partido Nacionalista, mas foi nomeado pelo Partido Nacionalista e, durante os oito anos do seu governo, foi o seu fiel servidor, dando a aprovação a tudo o que esse governo fazia. Agora é evidente que, com o novo governo da antiga oposição, este atual Presidente vai vetar praticamente todas as iniciativas importantes para reconstruir a democracia liberal. Porquê? Porque ele foi cúmplice do desmantelamento e da destruição dessa democracia. Portanto, tudo o que o governo pretende fazer agora é inverter esse trabalho de desconstrução, que é culpa do presidente. Então ele vai vetar mas o veto não vai impedir o trabalho do governo a longo prazo, porque o Presidente tem um ano pela frente, depois haverá eleições presidenciais e o partido nacionalista, as forças autocráticas anti-europeias e anti-liberais não têm a mínima hipótese de renovar o seu mandato ou de que outro candidato possa ganhar essas eleições. Infelizmente, a coligação de três partidos democratas que tem governado a Polónia nos últimos três meses não tem maioria para derrotar o veto do Presidente no Parlamento.
A curto prazo, teremos eleições europeias. Como pensa que poderão ser as coisas na Polónia e em geral?
Isto é um prognóstico ou uma esperança? Eu, como não sou um profeta e não pretendo ser um profeta, não quero adivinhar o que vai acontecer. Posso dizer sim uma coisa fundamental do ponto de vista dos interesses da Polónia e da Europa, porque acredito que a Polónia recuperada para a causa da integração europeia e para a causa da democracia liberal é um fator de estabilidade e de esperança para a Europa. Por isso, acredito que o sucesso deste governo nas próximas eleições, tanto nas eleições locais na Polónia como nas eleições europeias em junho, em toda a União Europeia. Penso que é crucial e espero que a representação dos democratas polacos no Parlamento Europeu aumente graças a estas eleições e acredito que temos boas hipóteses de o fazer, porque o povo polaco depositou muita esperança no governo e nos candidatos democratas, e acredito que não a abandonará antes de junho. Penso que vamos ganhar.
E o PIS vai descer...
Eu acho que eles vão ceder posições, não sei quanto. É muito difícil saber. Temos dois meses pela frente. Muitas coisas ainda podem acontecer, mas penso que vão ceder. Também é possível que este partido nacionalista que nós, democratas, retirámos do poder na Polónia, se desintegre, porque existem agora tensões terríveis no seio desse partido e não se sabe se irá persistir como uma força unitária. Em todo o caso, para a Europa, para a Polónia e para o destino da democracia liberal no mundo, é muito melhor que os democratas polacos ganhem, seja esse partido ou o outro. E o mesmo para a Europa. A Polónia, ao recuperar o seu papel na Europa, que é um país bastante grande, com 37 ou 38 milhões de habitantes, governado por democratas, liberais e pró-europeus, é um sinal de esperança e de um bom futuro para a União Europeia.
E a futura adesão da Ucrânia? Causou algumas fricções, por exemplo, os protestos dos agricultores, na Polónia. Poderá isso minar, por assim dizer, a unidade da União Europeia relativamente à Ucrânia?
Espero que não. São coisas diferentes. Haverá sempre interesses contraditórios na economia, quer se trate da agricultura ucraniana ou de outras coisas. Sempre existiram num intercâmbio global. Há sempre conflitos de interesses, mas não creio que isso afecte a causa principal, que é a perspetiva de adesão da Ucrânia à União Europeia. Não creio que afecte e não creio que deva afetar, porque se trata de uma questão geopolítica de dimensão civilizacional. É do interesse da Europa incorporar a Ucrânia o mais rapidamente possível e defendê-la melhor como Estado soberano e membro da família democrática europeia contra a agressão imperialista da Rússia.
Estará a Rússia a utilizar este protesto, por exemplo dos agricultores, para aumentar a pressão sobre o governo polaco, sobre a Ucrânia e sobre a União Europeia?
Sim, é claro que estão a utilizá-lo, mas não creio que possa ser eficaz, pelo menos na Polónia e nos polacos.
Esta é uma questão muito sensível para os agricultores polacos...
Claro que sim. Mas é preciso explicar as coisas às pessoas. Os agricultores preocupam-se com os seus interesses imediatos, com o facto de os cereais ucranianos serem ou não competitivos e assim por diante. Isto tem de ser explicado e esta bomba tem de ser desactivada, já que, a longo prazo, não tem grande importância. Os agricultores estão a revoltar-se por toda a Europa, e não só por causa dos cereais, mas também por causa do Pacto Ecológico Europeu e de muitas outras coisas, como a utilização de pesticidas e de outras coisas. E não creio que isto seja de tal calibre ou tenha um peso tão grave que possa afetar a causa da futura adesão da Ucrânia à União Europeia, nem creio que deva afetar e possa afetar de alguma forma a solidariedade e empatia da Europa para com a Ucrânia em termos de prestação de qualquer assistência material, económica e bélica ou militar que deva ser oferecida à Ucrânia no exercício da sua legítima autodefesa face à agressão imperialista da Rússia.
Disseste que a Ucrânia deve entrar na UE o mais rapidamente possível. Bem, o mais rapidamente possível com os procedimentos habituais da integração europeia ou com algo diferente?
Essa é a minha opinião. Penso que a situação é totalmente excecional porque estamos a falar de um país que está em pé de guerra. Para além disso, trata-se de uma guerra até à morte com um Estado militarmente poderoso que quer recuperar o seu estatuto de império. Se a situação é assim tão urgente e tão excecional, penso que a Europa deveria repensar, no caso da Ucrânia, os critérios de adesão e os prazos de adesão e aplicar uma espécie de… não sei como, não sou especialista nesta matéria, sei que há 27 países, que qualquer consenso é complicado, mas...
27 países e outros candidatos que estão à espera há anos…
Sim, mas só há um candidato como a Ucrânia, que é um país grande e que se está a defender de uma agressão. Os outros não estão na mesma situação, nem no passado, nem agora, nem provavelmente no futuro. É por isso que penso que poderia ser inventado, concebido, acordado, discutido e aplicado um procedimento de emergência excecional para os ucranianos, a fim de facilitar a sua entrada, a sua adesão e facilitar não só a guerra imediata e o esforço económico nesta guerra, mas também as suas perspectivas futuras, para prosperarem no futuro como um Estado democrático, civilizado e de bem-estar.