"Por serem emigrantes e diferentes", há portugueses que "acabaram nos campos de concentração"
Patrícia Carvalho escreveu o livro "Portugueses nos Campos de Concentração Nazis" e descobriu dois lusos que morreram em Auschwitz. A jornalista do Público falou com a TSF
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Assinalam-se, esta segunda-feira, os 80 anos da libertação do campo de concentração da Alemanha nazi de Auschwitz, na Polónia. O espaço foi um dos mais negros do Terceiro Reich e tornou-se um símbolo do genocídio, terror e holocausto.
No campo, existe um memorial, no qual se estima que mais de 1,1 milhões de pessoas tenham morrido ali. Entre as vítimas estão dois portugueses: Rachel Basista e Michael Fresco. Foi o que descobriu Patrícia Carvalho, jornalista do Público.
A investigação levou à escrita do livro Portugueses nos Campos de Concentração Nazis. Em declarações à TSF, Patrícia Carvalho assinalou que a ideia para o livro surgiu "depois de uma viagem de férias à Polónia", em que visitou o campo de Auschwitz. "Deparei-me com referências às diferentes nacionalidades que por lá tinham passado, e as pessoas que lá tinham sido detidas e mortas. E dei por mim a pensar: 'Será que é possível que não houvesse pelo menos um português?' Sabemos que os portugueses estão em todo o lado, somos um povo de emigrantes, que viaja muito. E quando regressei enviei uma pergunta para o Museu, e eles responderam-me que sim."
Depois, foi trabalho de investigação, que começou na Alemanha. "Percebi que existia um organismo na Alemanha, onde estão guardados os registos com toda a informação que ainda existe sobre os campos de concentração e sobre as vítimas do nazismo. Curiosamente, é um local que começou a funcionar ainda antes de a guerra terminar. Inicialmente era gerido pela Cruz Vermelha. Tudo o que eles iam encontrando, iam guardando. Pedi-lhes ajuda e eles ficaram felicíssimos. Disseram que, efetivamente, tinham informação de portugueses e que nunca ninguém lhes tinha pedido nada sobre portugueses. Enviaram-me diversos registos e, mais tarde, eu estive lá nos arquivos, durante três dias, e os nomes apareceram nessa situação", revelou a autora de Portugueses nos Campos de Concentração Nazis.
Rachel Basista foi uma das portuguesas que morreu em Auschwitz. Patrícia Carvalho afirmou ainda que a história desta portuguesa começou em Lisboa, mas "a família dela partiu para a Bélgica quando ela tinha menos de um ano".
"Na documentação belga, [Rachel] nem aparece com a nacionalidade portuguesa, mas eu decidi incluí-la porque, na altura, nascendo em Portugal, ficávamos automaticamente com a nacionalidade portuguesa, mas ela, na Bélgica, aparece com a nacionalidade dos pais. A família mudou-se para a Bélgica em 1929, muito antes da guerra começar, e depois foi apanhada pela voragem da invasão. Quando houve a junção de todos os judeus em campos de internamento, ela e a família receberam uma carta para se juntarem a esses campos, e a mãe dela atendeu. (...) Foi daí que ambas foram enviadas num transporte, da mesma forma que outros milhares de judeus da Bélgica, para Auschwitz", explicou.
Já o trajeto de Michael Fresco foi diferente. "Já tinha 30 anos quando morreu. A família dele vivia em Lisboa há muitos anos. Os pais dele eram judeus, tinham emigrado já no século XIX, tinham uma mercearia na zona de São Bento. O Michael e dois irmãos tinham emigrado para França, viviam em Nantes, e ele acabou por ser escolhido pelas autoridades do departamento para ser enviado para um campo de internamento. Houve alguma pressão já depois da invasão de França, e depois a capitulação, para que as autoridades enviassem alguns judeus para esses campos de internamento, porque o perfeito estaria a resistir, e ele acabou por indicar apenas três nomes: o do Michael, o de um amigo que teve o mesmo destino, e de um russo, que acabou por nem ser afetado, porque já estava detido. Acabou por ser enviado para Auschwitz. O documento com a data da sua morte existe, diz que foi hidropisia cardíaca, o que provavelmente será uma indicação falsa, como acontecia muitas vezes. Era normal os alemães darem razões falsas, porque a maior parte das pessoas morria pelas fraquíssimas condições que enfrentavam nos campos de concentração", realçou a jornalista.
Patrícia Carvalho conseguiu falar com algumas das famílias dos portugueses que passaram pelos campos de concentração nazis.
"Os filhos de algumas pessoas com quem falei relatam que elas eram pessoas muito marcadas fisicamente por doenças graves, problemas pulmonares, depressões, problemas gástricos, que resultaram da situação terrível em que as pessoas eram obrigadas a estar nos campos de concentração."
Nos últimos anos, assistiu-se ao ressurgimento de algumas ideias, recuperadas dos tempos do nacional-socialismo de Hitler. Patrícia Carvalho lamentou que, 80 anos depois da libertação de Auschwitz, o facto de ser estrangeiro ainda seja motivo de discriminação. "Tenho ido a várias escolas de todo o país, que me convidam a ir lá falar sobre este tema. Eu faço sempre questão de focar também o tempo presente que vivemos, porque a realidade é que estes portugueses, na sua esmagadora maioria, eram emigrantes. Em alguns casos, apenas pela circunstância de não saberem ler nem escrever, por não falarem a língua, por terem costumes diferentes, ou simplesmente porque eram diferentes, foram visados pelas autoridades. [Foram] considerados indesejáveis — era esse o termo que era utilizado — e acabaram em campos de concentração, expressamente por causa disso", recordou a escritora.
