Entrevista a Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros.
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Portugal não precisa de Macau para ter boas relações com a China, mas "Macau acrescenta". O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, garante que o país não é minimamente condicionado nas suas posições internacionais por a China poder ficar mais ou menos satisfeita. Sobre as reivindicações de sufrágio universal para Hong Kong e Macau, diz não alimentar hipocrisias. A entrevista na TSF.
O que é que Macau significa para Portugal hoje?
Significa, em primeiro lugar, uma ligação histórica com um grande país, a República Popular da China, como os seus 1,4 mil milhões de pessoas. Em segundo lugar, significa a satisfação por um processo de transição que foi absolutamente exemplar; exemplar na maneira como foi negociado e tem sido exemplar na maneira como tem sido cumprida a Lei Básica da transição. E, em terceiro lugar, significa um elo no presente e no futuro, seja no que diz respeito ao relacionamento entre Portugal e a China e, em particular, à chamada Grande Baía, seja no que diz respeito ao papel de pivô de Portugal no relacionamento entre a China e os Países de Língua Portuguesa em áfrica e na América.
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Sendo que no estado das relações entre os dois países hoje em dia Portugal não precisa propriamente de um território como Macau para ter boas relações com um país como a República Popular da China...
Mas acrescenta. Repare que Macau é uma das razões pelas quais o relacionamento entre Portugal e a China é um relacionamento bom mas também totalmente claro e transparente. Portugal e a China pertencem a espaços geopolíticos diferentes, têm sistemas de alianças diferentes e têm regimes políticos diferentes; e portanto nós temos um relacionamento fundado na consciência dessas diferenças, na consciência de que essas diferenças significam muitas vezes divergências, designadamente em temas cruciais da política internacional, como por exemplo os relativos aos direitos humanos mas também os relativos a questões de segurança e defesa. Mas significa também a consciência de que convergimos em muitas áreas e temos esta dupla ligação bilateral. Portugal é um dos países europeus que há mais tempo conhece a China, foi um dos primeiros países europeus a conhecer bem a China. Nunca neste meio milénio de relacionamento tivemos qualquer período de hostilidade, muito menos de confrontação, partilhamos uma história na qual, por razões que os historiadores bem conhecem, a Portugal coube administrar um território chinês durante séculos, administrando sempre com a consciência de que era um território chinês e pôde, depois da sua conquista da democracia, estabelecer com as autoridades chinesas um processo de negociação que fez com que a transição de Macau ou, como dizem os chineses, o regresso de Macau à mãe pátria se pudesse ter feito sem qualquer sobressalto e prezando o essencial da herança portuguesa.
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Não tendo havido desses sobressaltos, não havendo nenhuma confrontação ou hostilidade como disse, não seria normal o presidente da República e Primeiro-Ministro terem sido convidados para celebrar os 20 anos do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau?
Seria uma exceção à regra que a China sempre tem seguido ao longo destes vinte anos. As autoridades chinesas têm olhado para a comemoração da efeméride da transição de Macau como um assunto interno e portanto nunca, ao longo destes 19 anos, manifestaram ou endereçaram às autoridades portuguesas um convite para uma representação de alto nível político. Assim acontecerá este ano também e portanto nós estaremos representados através do embaixador Cunha Alves, como sabe é o atual cônsul geral em Macau.
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Não lamenta que não haja um convite a outro nível?
Não, não lamento. Acho isso muito normal e, com franqueza, é menos um problema de gestão de agenda neste mês de dezembro que tem sido absolutamente terrível. Só para ter uma ideia, houve já neste mês um dia em que nem eu nem os quatro secretários de Estado estávamos disponíveis para reuniões internacionais e portanto tivemos que ser representados ao nível de embaixador porque, pura e simplesmente, nenhum dos cinco estava disponível, porque todos nós estávamos noutro ponto do planeta como outras obrigações. O primeiro-ministro como nos dias 19 e 20 estará na índia, numa importantíssima efeméride de comemoração dos 150 anos de Gandhi, em que ele é o único Primeiro-Ministro ocidental convidado. Naturalmente que se houvesse um convite ao mais alto nível político, poderíamos refazer a nossa agenda. Mas o facto de se ter mantido esta normalidade, até facilitou, digo-o como MNE, a gestão da agenda internacional do governo que é sempre delicada.
Aumentar a cooperação com Macau e, obviamente, com a República Popular da China passa inevitavelmente por reforçar as ligações aéreas?
Passará. Esse, aliás, é um dos compromissos que nós firmámos no memorando de entendimento com a República Popular da China que celebrámos ano passado aqui em Lisboa, no quadro do qual nos prontificámos a colaborar mais com a iniciativa Uma Faixa uma Rota e portanto, o incremento das ligações aéreas e o incremento de ligações aéreas diretas, é uma das medidas que está aí prevista. Há já uma ligação direta, mas evidentemente se houver mais, melhor até porque Portugal é um país que não desconhece que o seu principal setor económico de exportação é o das viagens e do turismo, toda a gente saber quão instrumental é uma ligação aérea para o fomento do turismo e toda a gente sabe que a China tem quase 1,5 mil milhões de pessoas e, na última vintena de anos, aumentou a sua classe média em centenas de milhões.
Dado serem países com escalas e dimensões completamente diferentes... é possível haver uma relação entre iguais em escalas e dimensões tão diferentes?
Claro. Da mesma maneira que a nossa relação com o Luxemburgo é uma relação entre iguais e isso é um princípio básico nas relações internacionais; é o princípio de que cada Estado vale igualmente e o princípio que organiza o sistema internacional. É também o princípio de que cada Estado é soberano no que diz respeito aos seus assuntos internos, e que sendo soberano em relação aos seus assuntos internos, há temas comuns que são a responsabilidade de todos: os direitos humanos, a transição climática, o comércio internacional, o desempenho sustentável, são assuntos de todos; portanto, não tenho uma visão fechada do que é a chamada soberania nos assuntos internos. Mas eu queria responder à sua pergunta de outra maneira: são evidentemente os 10 milhões de pessoas residentes em Portugal que se relacionam com a China, são os 15 milhões de nacionais portugueses vivendo ou não em Portugal mas também, num certo e fundo sentido, é uma parte dos 500 milhões de europeus que se relacionam com a China. Portugal sempre tem colocado o seu relacionamento com a China no quadro da União Europeia. Eu que conheço o valor das fórmulas na comunicação política, digo muitas vezes que Portugal tem uma relação aberta, forte, crescente com a China, não apesar de ser membro da UE mas por ser membro da UE, não apesar de ser membro da NATO, mas por ser fundador da NATO. E nós fazemos sempre questão de enquadrar os termos da nossa relação bilateral, dentro da referência europeia. Sim, colaboramos com a iniciativa Uma Faixa uma Rota no sentido em que queremos melhorar as ligações aéreas, queremos que haja investimento chinês de base produtiva em Portugal, queremos que o mercado chinês se abra mais aos produtos portugueses designadamente aos produtos agroalimentares, queremos mais investimento de Portugal na China, queremos que a China possa usar também as plataformas de comunicação existentes em Portugal para chegar à Europa, mas fazemos tudo isso exatamente porque a União Europeia também quer colaborar mais com a China. A estratégia de conectividade euroasiática que é nossa, dos europeus, deve articular se bem com a iniciativa Uma Faixa uma Rota que é deles, dos chineses. Isso mesmo é uma das conclusões principais da última cimeira UE China que ocorreu no passado mês de abril. O mesmo vale para as matérias de política externa. Muitas vezes se diz, com alguma razão, que a relação com a China condicionou algumas vezes a atitude em matéria de política externa tomada por alguns países europeus, designadamente do centro e do Leste da Europa. Não é isso que se passa em Portugal. Não há nenhuma posição de política externa portuguesa, não há nenhum voto português no Conselho de Direitos Humanos, não há nenhuma tomada de posição portuguesa nas Nações Unidas, não há nenhuma atitude portuguesa em matéria de política internacional que alguma vez tenha sido condicionada, ou que seja condicionada - ou sendo eu o ministro ou estrangeiros - venha a ser condicionada pelo facto de nós presumirmos que os chineses ficam mais ou contentes ou menos com a nossa tomada de posição.
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É nesse quadro que se inscreve a preocupação da União Europeia com o que está acontecer em Hong Kong?
Sim. Nós acompanhamos aliás a posição da União Europeia desde o início tem sido muito clara na condenação das diferentes formas de violência que ocorreram em Hong Kong. Qualquer pessoa que veja televisão percebe que não há apenas violência ou uma reação excessiva das autoridades policiais ou o condicionamento excessivo da liberdade de manifestação. Também do lado de grupos, felizmente minoritários mas muito radicais daqueles que se opõem às autoridades de Hong Kong, tem havido formas de comportamento de violência gratuita que também são condenáveis para um espírito democrático. E a União Europeia tem condenado também com clareza; temos apelado a que a questão política que existe seja resolvida politicamente pelos habitantes de Hong Kong, pelas suas autoridades e pelo respeito claro, quer pelos termos da transferência negociados entre o Reino Unido e a República Popular da China, quer sobretudo nos termos do princípio 1 país 2 sistemas. E também por isso o que se passa em Macau é tão importante; também por isso é muito importante que a transição de Macau se continue a fazer com estabilidade, com a segurança e com a tranquilidade, com a calma e com o espírito de concórdia e de entendimento que tem pontuado até agora. É muito importante para Portugal, é muito importante para a República Popular da China mas é muito importante para o conjunto do mundo que se perceba que há formas de transição política negociadas nas quais nós podemos continuar a apostar porque sabemos que elas depois correm como foi planeado e como foi o compromisso das partes.
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Uma das exigências dos manifestantes em Hong Kong é a questão do sufrágio universal, que tem sido também uma bandeira do chamado campo democrático em Macau, nomeadamente por parte de três parlamentares. Na semana passada numa conferência no Porto sobre Macau, o senhor disse que não pode exigir à Região Administrativa Especial de Macau aquilo que Portugal não lhe deu durante várias décadas...
Exato, não cultivamos hipocrisias. Sabe que nós temos a pretensão, que julgo que é inteiramente legítima e justificada, de valermos mais na cena internacional do mundo, do que decorreria linearmente ou do peso da nossa população ou do peso da nossa economia ou do peso do nosso poder militar. Valemos muito mais do que isso.
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Pelo peso da história, pelo peso da língua...
Pelo peso da história e pelo facto de pertencermos a um grande bloco: o bloco mais desenvolvido e mais democrático do mundo, a União Europeia, mas também, e esse é o ponto a que eu queria chegar: por causa da consistência e clareza da nossa política externa. E uma das razões que explica isso é o facto de nós não cultivamos a hipocrisia. Eu não digo uma coisa nas reuniões internacionais e outra quando estou na China a vender aviões ou a vender produtos industriais, automóveis etc. Não cultivamos essa hipocrisia e também não exigimos agora para Macau, por exemplo, aquilo que nunca demos a Macau quando Macau estava sob nossa administração. É preciso esta lhaneza, como diria um português de antanho, porque é isso que dá consistência. Macau não era uma democracia sob administração portuguesa...
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Mesmo quando Portugal já era um país democrático...
Sim e o mesmo se passava com Kong. Portanto, não exigimos agora que os chineses façam aquilo que nós não fizemos antes quando tínhamos essa administração. Mas mais importante ainda do que isso, não exigimos agora o que não ficou acordado entre nós. Portanto, no período de transição vigoram certas regras. A liberdade de imprensa, direitos e liberdades civis, o bilinguismo, português como língua oficial, um sistema de justiça que é um sistema de justiça à portuguesa, portanto à europeia; Isto é, o chamado - e bem - Estado de Direito. Essas regras as autoridades chinesas estão obrigadas a cumprir e até agora têm cumprido. E nós estamos obrigados a exigir o cumprimento e até agora temos exigido. Evidentemente que se os macaenses soberanamente, se os chineses soberanamente, quiserem ir mais além estão no seu direito e depende deles. Mas não está no direito de Portugal como ex-entidade administradora, exigir agora o que nunca fez quando tinha essa possibilidade nem o que não ficou no acordo que livremente celebrou.
O que é que gostava que Macau significasse para Portugal daqui a outros vinte anos?
Em primeiro lugar, daqui a 20 anos chegaremos perto do fim do período transição. Portanto, gostaria que já estivesse bem definido um período subsequente no qual a riqueza moral e institucional deste período pudesse prolongar-se, portanto, pudesse transformar-se no modo de vida normal dos macaense e da Região Especial de Macau e que Macau preservasse a sua autonomia, o seu modo de vida e aquela coisa tão bonita que tem que é o cruzamento das culturas portuguesa e chinesa. Em segundo lugar, gostaria - e tenho a certeza que vai acontecer - que Macau continuasse a ser esta plataforma especial de ligação entre Portugal e a República Popular da China e entre os Países de Língua Portuguesa e República Popular da China. E também não tenho grandes dúvidas de que Macau será um importante centro deste novo triângulo chinês com o projeto da Grande Baía; portanto Cantão de um lado, Chianzen e Macau, porque esse será mais um polo muito importante de criação de riqueza e de saneamento económico no mundo. Desejaria finalmente que Macau conseguisse superar com êxito o processo mais difícil em que se encontra, que é o processo de transformar um centro de jogo - como sabe, eu gosto de falar de forma a que as pessoas me entendam -... de se transformar de um centro de jogo num centro financeiro menos dependente...
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Uma economia mais diversificada...
Com uma economia mais diversificada e mais aberta àquilo que é a produção de riqueza, a distribuição de riqueza, a coesão social etc.