Presa, "mas não silenciada": Mohammadi pede retrato seu com cabelos soltos na entrega do Nobel da Paz
Narges Mohammadi considera que o uso obrigatório do hijab é "uma política governamental vergonhosa" e assegura que as mulheres do Irão não se vão "conformar".
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A ativista iraniana Narges Mohammadi foi este domingo homenageada durante a entrega do Prémio Nobel da Paz, em Oslo, Noruega. Por estar presa, Mohammadi não compareceu à cerimónia, mas deixou um pedido: que fosse usada "uma fotografia sua onde está de cabelos soltos, com uma roupa colorida e um olhar sorridente".
Num discurso que escreveu "por detrás dos muros altos e frios de uma prisão", a ativista denuncia a "opressão, a repressão, a discriminação e a tirania" de um Governo "religioso despótico" iraniano.
"A tirania é uma malevolência sem fim, sem limites, que há muito tempo lança a sua sombra sinistra sobre milhões de seres humanos deslocados. A tirania transforma a vida em morte, a bênção em lamento e o conforto em tormento. A tirania oprime a humanidade, o livre arbítrio e a dignidade humana. A tirania é o outro lado da moeda da guerra. A intensidade de ambas é devastadora; uma diretamente, com as suas chamas destruidoras de devastação visível, a outra insidiosa e enganadora, dilacerando a humanidade", leu a filha de Narges Mohammadi, num tom emocionado.
Mohammadi aponta por isso que a sua luta tem sido mais "uma questão de sobrevivência" do que a "melhoria da qualidade de vida" das mulheres, num discurso que não esquece as vozes iranianas "corajosas", "que viveram uma vida de resistência em várias áreas de opressão implacável".
"No meio das chamas da violência e da perpetuação da tirania, a nossa causa foi durante anos mais uma questão de sobrevivência do que de melhoria da nossa qualidade de vida. Essencialmente, tornou-se sobre a possibilidade de permanecer vivo, sobreviver e viver num mundo onde a vida humana está exposta, sem proteção ou escudo, ao poder de governos autoritários arrogantes, e permanece indefesa contra tudo", lamenta.
A ativista sublinha ainda que o povo iraniano tem lutado para a concretização da "democracia, liberdade e da igualdade", numa tentativa que tem passado por "protestos não-violentos e resistência civil". Ainda assim, lamenta que um "Governo implacável e impiedoso", que "recorre sistematicamente à discriminação com base na religião, no género e na etnia" se esteja a sobrepor à vontade da população.
"A democracia, devido à sua capacidade inerente de liberdade e igualdade, tem sido uma exigência fundamental da sociedade iraniana e, quase unanimemente, a sociedade civil apela a mudanças fundamentais e a uma transição para a democracia como componente do futuro sistema político do Irão", conta, revelando-se, ainda assim, "confiante de que o impacto inegável do Prémio Nobel da Paz no poderoso movimento recente dos iranianos pela paz, pela liberdade e pela democracia ultrapassará a força da luta e da resistência individuais".
Narges Mohammadi considera que o uso obrigatório do hijab é "uma política governamental vergonhosa" e assegura que as mulheres do Irão não se vão "conformar".
"Acreditamos que o hijab obrigatório imposto pelo Governo não é uma obrigação religiosa nem uma tradição cultural, mas sim um meio de manter a autoridade e a submissão em toda a sociedade. A abolição do hijab obrigatório é equivalente à abolição de todas as raízes da tirania religiosa e à quebra das correntes da opressão autoritária", defende.
A ativista iraniana denuncia igualmente aquilo que considera ser uma "falta de atenção séria" por parte dos "Governos e das organizações internacionais" e lamenta que as suas "políticas e estratégias" tenham sido "ineficazes para capacitar verdadeiramente o povo iraniano a atingir os seus objetivos".
"Os Governos ocidentais não devem adiar a democracia e os direitos humanos adotando estratégias centradas na continuação do regime da República Islâmica. Espera-se que a sociedade civil mundial dê um apoio mais tangível aos esforços do povo iraniano em prol da transição democrática e da luta não violenta para alcançar a paz, a democracia e os direitos humanos sem mais demoras", apela, recorrendo à voz do filho, que leu a segunda parte do seu discurso.
A líder do Comité Nobel sublinha igualmente que o prémio foi atribuído a Narges Mohammadi pela sua "batalha longa e corajosa contra a opressão das mulheres no Irão e luta pela liberdade e igualdade".
Impedida de estar a cerimónia, a líder conta o pedido feito por Mohammadi, que apesar de estar presa, assegura não estar "silenciada": "Pediu-nos para usar esta fotografia em particular: feliz, com roupas coloridas, de cabelo solto e com um olhar cativante e sorridente."
O "único crime" da ativista, que viu a sua carreira como física e engenheira ser impedida pelo simples facto de ser mulher, é "levantar a voz pelos direitos humanos e advogar contra a pena de morte", acrescentou.
O Comité Nobel destaca igualmente que, através do seu trabalho, Mohammadi "contribuiu para o avanço da fraternidade das pessoas no Irão" e lembrou que quando a avista soube que tinha sido a escolhida contou que o houve um nome que lhe veio à cabeça: "O nome de Mahsa Amini emergiu das profundezas do meu ser."
A ativista acabou por dedicar o prémio à jovem que foi morta à mercê da chamada polícia de costumes do Irão, por terem considerado que usava o hijab de forma desadequada.
Várias vezes detida e condenada nas últimas décadas, Mohammadi é um dos principais rostos da revolta "Mulheres, Vida, Liberdade" no Irão.
O movimento, em que as mulheres tiraram o véu, cortaram o cabelo e se manifestaram nas ruas, foi desencadeado pela morte, em 2022, da jovem curda iraniana Mahsa Amini.
Narges tem 51 anos e passou a maior parte das últimas duas décadas na prisão e lá continua. Esta sexta-feira, dia internacional dos direitos humanos, está de novo em greve de fome.
Mohammadi, que fez campanha contra o uso obrigatório do hijab e a pena de morte no Irão, vai entrar em greve de fome "em solidariedade" com a minoria religiosa Baha'i, avançaram o seu irmão e marido numa conferência de imprensa na capital norueguesa, na véspera da cerimónia de entrega do Prémio Nobel.
A ativista, que sofreu um ataque cardíaco em 2022, cumpriu em novembro uma greve de fome contra a falta de cuidados médicos na prisão e o uso obrigatório do véu islâmico, depois de ter sido recusada a ir a um hospital para fazer uma consulta, porque se recusou a usar o hijab.
O Governo iraniano considerou a atribuição do prémio à ativista como "um ato político" e uma medida de "pressão" do Ocidente.
A jornalista e ativista não vê os filhos, que estão em Paris, há oito anos e passou longos períodos em confinamento solitário.