Primárias na Argentina com o centrão ameaçado pelos extremos
Lassa é o candidato governamental mas Grabois dá luta na esquerda radical. Larreta e Bulrich disputam o trono da oposição, mas o populista de direita Milei ameaça: as primárias na Argentina com o jornalista Eduardo Paladini.
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Como é que foi a campanha para estas eleições primárias?
Bem, a campanha começou de forma relativamente calma ou com uma forte divisão política interna em cada uma das principais áreas. Aqui há duas grandes coligações: a Frente de Todos, que agora se chama União Pela Pátria e o Juntos Pela Mudança. E uma vez confirmadas as candidaturas a 24 de junho, poucos dias depois, começou aquilo a que chamamos aqui no jornal A Campanha Suja, sobretudo do partido do governo em relação à oposição, tentando instalar a ideia do medo; a ideia de que, se a oposição ganhar, vai haver repressão, mortes e derramamento de sangue. Assim, o que no início eram lutas internas em cada uma das grandes coligações, agora há guerrilhas internas, mas há também uma guerra maior entre o oficialismo e a oposição.
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Mas no oficialismo há dois candidatos, Grabois (lido como em françês, Grabuá) e Massa. Mas Sérgio Massa, atual ministro da Economia, é o principal. E na direita, na oposição, não há lutas internas?
Sim, no partido no poder eles venderam essa ideia e falam sobre o candidato da unidade. Mas, na verdade, eles têm duas fórmulas. Uma é Sérgio Massa, que é um candidato mais amigo do establishment mais à direita, e Grabois, que vem das organizações sociais, dos movimentos de piquetes de greve e que supostamente é capaz de conter um pouco mais o voto da esquerda dentro do que é o peronismo; que é preciso entender que tem gente da direita à esquerda. Não haverá porventura aqui uma divisão como noutros países. Aqui o peronismo tem uma divisão muito diferente.
É muito abrangente, não?
Claro, tem toda a transversalidade ideológica e, ao longo das décadas, diferentes fações do peronismo foram governando naquilo que se poderia ver como a direita, que é realmente uma união de partidos mais da direita, mas também do radicalismo, que é um partido mais centrista. Houve aqui, neste caso das PASO 2023, uma concorrência muito forte, especialmente porque o partido no poder está a ir mal, o governo está a ir mal, a pobreza aumentou, há taxas de inflação muito elevadas, há uma situação social complexa. Há muito que se diz que quem vencer a principal coligação da oposição, vai ser o próximo presidente. Portanto, isto explica porque é que a luta dentro da oposição começou há muito tempo com um terceiro fator que não estava presente na eleição anterior, que foi muito polarizada em 2019, em que as duas principais coligações obtiveram quase 90% dos votos. Esse cenário não estaria a acontecer agora porque apareceu Javier Milei, que é um candidato, embora de direita, libertário, com propostas muito disruptivas e muitas controversas como a venda de órgãos ou o livre porte de armas, que teve a capacidade de captar o desencanto da população com os governos da Frente de Todos, que fracassou como o atual de Fernandez, e de Juntos Pela Mudança, que também fracassou como o anterior, de Maurício Macri. E depois pode discutir-se até que ponto um falhou mais do que o outro. Mas nenhum dos dois deixou uma boa memória e isso gerou um grande desencanto entre muitas pessoas, capturadas por um candidato de direita como Milei. Resta saber como é que isso vai acabar por afetar as eleições.
É possível que esses dois candidatos, Milei à direita e Grabois, no oficialismo, mas à esquerda, possam ser considerados os extremos e que os outros candidatos, Sérgio Massa e Patrícia Bullrich e o governador de Buenos Aires, Rodriguez Larreta, sejam candidatos mais ao centro, mas um centro que ainda está muito polarizado entre si?
Sim, também aqui na Argentina temos uma esquerda mais tradicional, que não está dentro do peronismo, é um pouco mais extremista e temos candidatos ainda mais extremistas, mas que não vão obter votos suficientes, como os pró-nazis. Os que discutem realmente a vitória são esses que dizes. E é verdade que a aparição de Javier Milei parece ter sido um fator forte. A discussão deslocou-se para a direita e os dois candidatos do centro, tanto Massa como Rodríguez Larreta, têm pontos em comum: são candidatos amigos do mercado, parte-se do princípio de que são mais previsíveis, mais moderados, que vão procurar acordos políticos. Portanto, há uma particularidade e a dúvida que muitos analistas de sondagens tiveram é, por exemplo, o que vai acontecer aos votos de Grabois quando perder a eleição interna? Vão ficar lá dentro, no partido no poder? Ou, porque ele tem mais afinidade com a esquerda, podem ir para outro lado? E o que é que vai acontecer aos votos, suponhamos que Patrícia Bullrich, que está mais à direita, não ganha as eleições internas. Irão para Horácio Rodríguez Larreta ou podem ir para Milei? Essa discussão ideológica chegou também aos estudos e sondagens. Aquilo a que chamamos aqui o PASO, que é uma primária, aberta, simultânea e obrigatória, tem basicamente dois objetivos: candidatos do mesmo partido que querem competir para ver quem fica, como neste caso Bullrich contra Larreta, aquele que vencer passará às eleições gerais; e os restantes candidatos, que não têm qualquer disputa interna, mas têm de obter um número mínimo de votos para concorrer às eleições gerais, têm de obter pelo menos 1,5% dos votos.
Esta polarização entre o partido no poder e a oposição reflete-se em questões que poderiam ser de interesse geral, como o gasoduto recentemente anunciado, mas que tem sido uma questão muito controversa. Porquê?
Sim, muito polémico, sobretudo porque se degladiam para ver quem fez o projeto. É um trabalho que já devia ter sido feito há muito tempo. Não se esqueçam que a Argentina tem a reserva de Vaca Muerta. É como ter uma reserva de água e as pessoas não poderem beber água porque abrem a torneira e ela não sai. Pois bem, foi isso que nos aconteceu a nós, argentinos. Há anos que nos está a acontecer com a questão do gás. Temos a Reserva de Vaca Muerta, mas porque não foi explorada porque não havia um gasoduto que o levará às casas. Nós, argentinos, fomos obrigados a importar muito combustível, e uma grande parte do défice da balança comercial ou da balança de divisas que a Argentina tem, tem a ver com o facto de ter de importar energia quando tem energia no seu próprio solo. Portanto, há uma espécie de disputa e de luta sobre quem é mais culpado e sobre o atraso do gasoduto. A dada altura, Cristina Fernández de Kirchner anunciou-o, mas não o implementou. A realidade é que Macri também não o fez. Chegou ao ponto de, quando estava prestes a deixar a presidência, ter lançado o concurso. Depois, o governo de Macrismo voltou atrás no concurso e decidiu que deveria ser o Estado a fazê-lo. Bem, todas estas lutas políticas, todos estes atrasos, levaram a que o país tivesse um défice muito elevado na sua balança de divisas. E os argentinos tinham problemas energéticos. Bem, é esse cansaço das lutas que explica em parte o facto de surgirem candidatos que estão à margem da democracia, como Javier Milei.
Quando falamos da oposição... Patricia Bullrich aparentemente tem o apoio de Mauricio Macri, podemos dizer com segurança que ela é favorita em relação a Rodriguez Larreta?
Sim, com Larreta houve uma particularidade durante a pandemia. Na verdade, houve três líderes que atingiram um pico de popularidade muito elevado. O primeiro foi o presidente Alberto Fernandez. Ficará nos livros de história a investigação de como, em tão pouco tempo, ele teve um nível de popularidade semelhante ao dos mais famosos presidentes da democracia desde o regresso da democracia na Argentina. E como ele desperdiçou todo esse capital político, e que hoje talvez seja o político mais mal visto do país; desperdiçou esse capital em apenas alguns anos. O outro, que tinha capitalizado muito bem a gestão da pandemia, foi Horacio Rodríguez Larreta. Durante muito tempo foi o político com melhor imagem, tinha até uma boa imagem junto dos eleitores do kirchnerismo, quando começaram a fazer-se sondagens sobre as intenções de voto para 2023, começou em primeiro lugar e parecia que estava a galopar confortavelmente para ser o próximo presidente. Mas bem, começou a cair e Patricia Bullrich também fez algo muito inteligente durante a pandemia, que foi capitalizar toda a raiva das pessoas contra Larreta. Por exemplo, se havia local onde havia um protesto de pessoas que não queriam ficar em confinamento, Patricia Bullrich ia acompanhar essas pessoas, por isso fez uma construção que, no início, parecia muito artesanal e muito pequena, com menos dinheiro do que Horacio Rodríguez Larreta, mas ela aproximou-se dele e hoje a maioria das sondagens mostra Patrícia com alguns pontos de vantagem. A grande dúvida deve-se ao desencanto das pessoas que mencionei anteriormente. Muitas pessoas não respondem a sondagens e todas essas pessoas que não estão a dizer em que vão votar, o que pode acontecer no final, são uma incógnita. A realidade é que, atualmente, a maioria das sondagens coloca Patricia Bullrich à frente de Horacio Rodríguez Larreta. Mas com este asterisco que mencionei: há um setor da população que não responde e não se sabe em que sentido poderá votar.
Apesar desse desencanto e da situação económica, com a economia em baixa e tudo isso, é verdade que Cristina Kirchner continua a ser o político mais influente do país?
Sim, sim, sim, porque Cristina define a agenda tanto no governo como na oposição. A Cristina tem um núcleo duro de apoio, que estava a cair. Não se candidata às eleições porque não tem hipóteses de ganhar, porque além de ter um apoio muito forte, também tem uma rejeição muito forte. Quando nos perguntamos, bem, em quem é que nunca votaríamos? Cristina tem mais de 60, 70%, o que tornaria quase impossível que ela ganhasse um escrutínio. Mas os cerca de 20% que a apoiam são um apoio muito forte e definem a agenda do partido no poder. E também marcou a agenda durante muito tempo na oposição, que fez as suas propostas com base no afastamento de Cristina da cena política. Agora, embora não seja candidata na campanha, ela, e em menor grau Macri, continuam, por vezes continuam a manter a agenda da campanha.
As campanhas são muito sobre a economia, a situação social, a criminalidade, a segurança, tudo isso. Para aqueles que olham de fora o que podem fazer em termos de política externa Sergio Massa, ou Patricia Bullrich, ou Horácio Larreta? Quais são as diferenças que pensas que eles podem trazer?
Sergio Massa está muito mais próximo da oposição... ele poderia ser um candidato do Juntos pela Mudança. Ele é anti-Venezuela e a favor dos Estados Unidos. Agora está a esconder isso ou não o vais ouvir falar muito sobre isso porque iria gerar muitos conflitos internos com Cristina. Mas faz parte do acordo político, quando ele voltou ao Kirchnerismo em 2019, ele foi autorizado a manter essa agenda externa ou certas questões. Continuou a expressar a sua opinião, embora não tenha falado muito; mas nas vezes em que falou, sempre se mostrou contra Maduro, contra a Nicarágua e com uma agenda ocidental. Faz vender os seus contactos nos Estados Unidos como uma mais-valia. É por isso que ele está agora a entrar num caminho muito estreito, porque Cristina diz bem, o FMI é uma merda, os Estados Unidos são uma merda e Massa está a ter dificuldades, especialmente porque, se ele tem alguma hipótese de ganhar, deve atrair eleitores mais moderados ou aqueles que estão um pouco mais à direita do centro. E como, sem dúvida, já é próximo de Cristina Kirchner, não pode falar com esse setor e não pode fazer campanha para esse setor. Mas voltando ao início da pergunta, em termos do discurso sobre a agenda internacional, eu diria que é bastante semelhante entre Larreta, Bullrich e Massa, e é uma agenda muito mais anti-Venezuela e pró-EUA do que o kirchnerismo mais puro.
