Ditador e provocador, Mugabe dizia: "O Zimbábue pertence-me". E assim foi por 37 anos
Robert Mugabe morreu hoje aos 95 anos, cerca de dois anos após renunciar ao cargo que ocupou durante 37 anos.
Corpo do artigo
"O Zimbabué pertence-me", disse Robert Mugabe a quem pedia a sua demissão, em 2014. "Foi Deus que me nomeou e só Deus poderá destituir-me, não o MDC [partido da oposição], não os britânicos", antigos colonizadores do país.
Só três anos depois desta frase, Mugabe seria derrubado num golpe de Estado. Deteve o poder no Zimbábue durante 37 anos com punho de ferro, provocador, envolto em polémica ou muito amado ou muito odiado.
"Sou o Hitler da nossa época", disse em 2003.O Hitler que só tem por objetivo a justiça para o seu povo, a soberania do seu povo, o reconhecimento da independência do seu povo e o seu direito a dispor das suas riquezas. Se isso é ser um Hitler, deixem-me ser Hitler vezes dez."
Se para alguns Mugabe fica para a história como o herói da independência e amigo do Ocidente, para outros há-de ser sempre um ditador repressivo e tirano responsável pelo descalabro económico no país.
Chegou ao poder em 1980, eleito primeiro-ministro um ano depois de a então primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, ter anunciado que o Reino Unido reconheceria oficialmente a independência da Rodésia.
Era, então, conhecido por ter liderado uma campanha de guerrilha contra o Governo da ex-colónia britânica na década de 1970. Já integrava a luta política desde os 36 anos, militando em vários grupos defensores da independência. Passou uma década na prisão e foi forçado a viver no exílio.
Assinados os "acordos da Casa de Lancaster", que deram origem à nova República do Zimbabué, em 1980, os britânicos passaram de colonizadores a aliados. "Vocês eram meus inimigos ontem, agora são meus amigos."
Nos primeiros tempos como mandatário ofereceu importantes posições ministeriais aos colonos ocidentais e até permitiu que o anterior líder, Ian Smith, permanecesse no país.
"O facto de os brancos nos terem oprimido no passado quando detinham o poder jamais poderá justificar que, hoje, os negros os oprimam só porque agora detêm o poder", justificou, num discurso pronunciado logo após subir ao poder.
Talvez graças a esta postura o mundo tenha fechado os olhos quando o Presidente (a posição de primeiro-ministro foi abolida em 1987) enviou o exército para a província dissidente de Matabeleland, em 1982.
A repressão do Exército Nacional do Zimbabué provocou mais de 20 mil mortes até o final de 1987. Só na década de 2000, quando começa a política de expropriações de milhares de fazendas de ocidentais para distribuir a terra entre a população país, e após vários abusos contra a oposição e fraude eleitoral, é que a comunidade internacional começa a mudar de opinião sobre Mugabe.
E Mugabe mudou também de opinião sobre os ocidentais. O ex-primeiro-ministro Tony Blair e o antigo presidente norte-americano George W. Bush passaram a ser "os dois demónios do milénio", o antigo Presidente russo Mikhail Gorbatchev "um imbecil".
"Mandela foi um pouco longe demais na bondade em relação às comunidades não negras, mesmo, por vezes, à custa dos negros. Isso é ser muito santo, muito bonzinho."
A redistribuição de propriedades precipita o colapso de uma economia já em dificuldades. O dinheiro é escasso e 90% dos zimbabuanos estavam desempregados. À fome e à guerra, depressa se juntou a peste.
Em 2008 uma epidemia de cólera no país contaminou milhares de pessoas e provocou quase 800 mortes. A comunidade internacional era consensual na exigência: a era Mugabe tinha de chegar ao fim. Mas o Presidente não concordava.
"Vocês são agora nossos inimigos porque comportaram-se como verdadeiros inimigos do Zimbabué. Estamos cheios de cólera. Toda a nossa comunidade está encolerizada e essa é a razão pela qual os antigos combatentes passam agora a controlar a terra".
O país tornou-se um dos mais pobres do mundo, Mugabe tinha ambições desmedidas. Em 2013 chegou a planear construir a primeira Disneylândia em território africano, junto às cataratas Vitória, um investimento estimado em 300 milhões de dólares (quase 225 milhões de euros) que nunca foi avante.
As suas festas de anos eram sempre faustosas, organizadas pela Aliança Nacional Africana do Zimbabué, partido de que era líder. Mugabe era "afogado em presentes" pelos funcionários da presidência e eram servidos pratos exóticos, com carne de elefante ou de búfalo. Em 2017, no meio da grave penúria alimentar que o país atravessava, o bolo de anos pesava 96 quilos.
Já a sua primeira-dama, Grace Mugabe, foi notícia em 2015 por encomendar um anel de diamantes de 100 quilates no valor de 1,35 milhões de dólares para assinalar seu o aniversário de casamento.
Isto depois de apresentar uma queixa em tribunal contra o empresário libanês que quebrou o contrato e lhe deu antes um anel no valor de 30 mil dólares, que Grace se recusou a receber, exigindo o dinheiro de volta.
Também a homofobia de Mugabe causou indignação internacional. O presidente do Zimbabué chegou dizer que os homossexuais eram "piores que porcos" e ameaçou expulsar do país os diplomatas ocidentais que exigiam respeito pelos direitos humanos.
"Obama vem a África e diz que a África deve autorizar os casamentos homossexuais e até que as mulheres devem casar-se entre elas. Deus destruiu a Terra por causa de peixes como esses. Os casamentos fazem-se entre um homem e uma mulher", disse em 2013.
"Que a Europa guarde a sua homossexualidade absurda para si própria e que não venha para aqui com essas ideias."
Nem a idade, nem a saúde, nem os protestos nas ruas, faziam o presidente descer do seu posto. "Alguns dizem: 'Mugabe é velho e deveria partir'. Não. Quando a hora chegar eu vos comunicarei", afirmou em 2014.
"Já me mataram várias vezes! É aí que ganho a Jesus Cristo. Cristo morreu e foi ressuscitado uma única vez. Já morri e ressuscitei e nem sei bem quantas vezes isso já aconteceu, nem quantas vezes irá acontecer no futuro."
Aos 93 anos, Mugabe anunciou a sua intenção de participar novamente nas eleições e a história parecia repetir-se mais uma vez. Até que em 14 de novembro de 2017 tanques militares começaram a marchar pela capital, Harare, apoiando Emmerson Mnangagwa, o ex-vice-presidente, demitido na sequência de uma intensa campanha de Grace Mugabe.
O alto comando do Exército assumiu o controlo do país, Mugabe e a família saíram ilesos, mas foram retidos na sua residência.
Mugabe foi expulso do partido, demitido poucos dias mais tarde, a 21 de novembro, e substituído três dias depois por Emmerson Mnangagwa, se legitimou ao ganhar as eleições, a 30 de julho de 2018.
Mugabe morreu esta sexta-feira aos 95 anos num hospital em Singapura, onde estava a receber tratamento médico há cinco meses, rodeado pela família.
11273540
Com Lusa