Psicólogo português em Gaza: "Deslocar civis é um eufemismo, as pessoas são mortas. É um genocídio que se passa aqui"
Quase dois anos depois do início da resposta israelita ao ataque do Hamas, Raul Manarte, um psicólogo português que trabalha em Gaza, para os Médicos Sem Fronteiras, diz, em entrevista à TSF, que o cenário é dantesco e que os planos de Netanyahu para deslocar um milhão de pessoas só vão ajudar a matar mais pessoas
Corpo do artigo
Como é que será possível aquilo que o primeiro-ministro de Israel anuncia, ou seja, retirar um milhão de pessoas para zonas seguras para depois avançar o exército?
Eu não sei como é possível, mas a população aqui já foi deslocada vezes, vezes e vezes sem conta, aos milhares e às centenas de milhares. Mas o que é que acontece às pessoas quando são deslocadas desta forma, como já aconteceu também no sul do território? Deslocadas é um eufemismo, porque as pessoas são mortas. As pessoas levam com a casa em cima. As pessoas têm ordens de evacuação, vão para um sítio que supostamente é seguro e depois são bombardeadas. As pessoas perdem os filhos, os filhos perdem os pais e vão para onde conseguem pôr uma tenda. Vão, às vezes, para as escolas... Como ainda hoje tive uma adolescente minha toda queimada, exceto na cara, que convenceu a família a procurar abrigo na escola e depois a escola foi bombardeada. Ela teve de se arrastar através de vidros e quando o pai a encontrou pôs a mão no braço e a pele dela saiu toda. Agora sente-se culpada por ter sido ela a dizer à família que a escola deveria ser segura. Portanto, deslocada é um eufemismo. As pessoas aqui são politraumatizadas, porque viram alguém a ser morto, ou porque foram amputadas, ou porque foram deslocadas vezes e vezes sem conta, ou porque estão cheias de fome, ou com sede, não têm acesso a medicamentos. Os hospitais estão completamente sobrelotados, está toda a gente no chão e não há gazes suficientes para mudar os pensos aos miúdos queimados. Nós temos de dar as notícias aos miúdos, também comida hoje. (...) Portanto, as pessoas, como é que elas são deslocadas? São enquanto morrem.
E em Gaza, nesta altura, presumo que as pessoas vivem sobretudo em tendas, em escombros.
Sim, exatamente, está tudo completamente destruído. São pouquíssimas as casas que estão em pé, eu estou numa delas, o cenário é apocalítico, e a maior parte das pessoas está em tendas. Aqui 80% a 85% da Faixa está ocupada, portanto, as pessoas estão aqui concentradas numa ínfima porção de terra, depois há o calor e a desidratação e agora, se este plano avançar, a zona não ocupada vai ser ainda mais pequena. Se as condições básicas de vida, como é a comida e a água, continuarem a faltar, as tensões vão subir cada vez mais, a violência também vai aumentar. Vemos isto noutros cenários em que não há condições para manter a vida, as pessoas começam a agarrar só o que podem para dar aos seus filhos e tirar dos outros. Apesar de a regra ser solidariedade e partilha, se tirarmos às pessoas as necessidades básicas, as pessoas vão lutar pela sobrevivência.
A ideia que é apresentada oficialmente pelo Governo de Israel é que irão criar corredores seguros para distribuição da comida, irão multiplicar os pontos de distribuição pela Fundação Humanitária de Gaza, irá continuar a haver lançamento de bens de primeira necessidade por paraquedas. De alguma forma é de crer que isto ajude a situação?
Não. E deixe-me ser muito claro, é exatamente ao contrário. A Fundação Humanitária de Gaza e a entrega por paraquedas mata pessoas. A Fundação Humanitária de Gaza parece desenhada para matar pessoas. Só nós, Médicos Sem Fronteiras, em sete semanas, em mês e meio, entre junho e julho, recebemos 1300 feridos, 28 mortos e entre estes números estão 70 crianças baleadas nesta distribuição de comida. Ainda hoje estive com duas que estão paralisadas. Há três dias que foram buscar comida nestes sítios. Estes sítios estão desenhados para matar pessoas, esta distribuição da Fundação Humanitária de Gaza. Portanto, se estes sítios vão aumentar, o que vai aumentar é a matança de pessoas. É uma das coisas que testemunhamos que justifica a nomenclatura de genocídio que se passa aqui. Porque há matança de civis em massa, há remoção total de condições necessárias à vida, porque não há entrada de comida, não há entrada de medicação, não há entrada de água e há deslocamento maciço da população, que supostamente é avisada para a sua proteção, mas depois, quando chega à zona supostamente segura, é bombardeada novamente. Portanto, isto não é distribuição de comida, isto é uma forma de matar pessoas. A comida está toda na fronteira, estão toneladas de caminhões. É apenas permitir o acesso de verdadeiros corredores humanitários, distribuição feita, por exemplo, pela WFP, das Nações Unidas, que são organizações que sabem fazer isto, fazem há muito tempo, são muito experientes, já estive em cenários onde eles o fizeram, por exemplo, no Sudão do Sul. Assim é que chegamos com ajuda humanitária às pessoas. Até há medicamentos nossos, que também estão na fronteira, eles também precisam de entrar.
Tem-se falado da questão da falta de alimentos e o que é estranho ao fim deste tempo todo é ainda haver sobreviventes, digamos. Israel controla a água que se passa para a Faixa de Gaza. Como é que se consegue água no território?
E controla o combustível, porque é preciso combustível para fazer operar as bombas. O combustível também não está a entrar. Portanto, não é nada fácil obter água. E quero também dizer que em relação à comida, só nos nossos centros, na cidade de Gaza, nós temos mais de 300 crianças e mais de 500 grávidas com desnutrição grave a severa.
Como é que se dá apoio psicológico a pessoas que estão famintas?
Dá-se de uma forma precária e não eficaz. Mesmo que tivessem comida, não tinham segurança. Mesmo que tivessem segurança, não tinham justiça ou direito à sua própria terra. Portanto, há aqui uma série de fatores. Mas sim, nós conseguimos, nós fizemos o nosso melhor para melhorar o funcionamento e o bem-estar psicológico das pessoas com pequeníssimas coisas. Por exemplo, quando nós temos de preparar as crianças para a amputação, tentar diminuir a ansiedade e o medo delas, criar grupos de apoio de pais amputados, ou seja, em que temos um senhor que já é amputado há vários anos e que é um membro ativo da comunidade e vem falar ao grupo de retém-amputados como é, como foi com ele, dar o exemplo dele, como ele conseguiu depois tornar-se um membro funcional na sociedade. Temos muitas crianças que chegam até nós e não falam, porque acabaram de ver os pais a serem mortos à frente delas ou porque a casa acabou de colapsar em cima delas. O nosso trabalho de intervenção psicológica permite que, por exemplo, voltem a falar ou voltem a brincar. Tentamos criar uma rotina mais ou menos normal neste inferno. Às seis horas temos um tempo de brincadeira, às oito vêm uns palhaços ou vem alguém tocar música. Temos depois também o apoio clínico de grupos psicológicos de intervenção ou a intervenção psicológica individual. Enfim, vamos conseguindo alguns resultados, mas o que é essencial é que entrem os bens primeiro na sociedade, que haja um cessar-fogo, porque todos os dias morrem crianças. Ontem morreram, hoje morreram, amanhã vão morrer, depois de amanhã vão morrer. É preciso um cessar-fogo e que entre a comida, a água e a medicação.
E quem é que lhe dá apoio psicológico a si?
Acho que isso não é relevante. Nós já temos alguma experiência nisso. Temos os nossos próprios copings. Se temos só três minutos para falar de Gaza, prefiro falar dos palestinianos. Agora, não a falar como um trabalhador humanitário, mas sim como um cidadão português, o que é que quem nos ouve pode fazer? As pessoas querem ajudar, mas não sabem como. A forma como falamos sobre isto é sempre analisar a situação e nunca é dar opções de ação. Portanto, gostava de ver, enquanto espectador, mais especialistas em ação cívica a virem aos meios de comunicação, dizer como os cidadãos normais podem contribuir para isto. E atenção que, quando digo isto, estou a falar de morte de civis e inocentes. E tanto faz o lado da fronteira, é completamente irrelevante. Para quem está no terreno é muito fácil ser neutro, porque à minha frente eu tenho um ser humano e a nacionalidade é irrelevante. E para quem está em Portugal, a ver à distância, é mais difícil. Mas se chegasse até aqui, teria a mesma reação: queria que isto parasse. As pessoas são normalmente reticentes a questões de envio de dinheiro, mas funciona as transferências bancárias? Enquanto cidadão português, o que temos de fazer é pressionar o Governo português, por exemplo, que já foi pressionado por um grupo de cidadãos portugueses para acolher feridos e refugiados daqui. Crianças como as que eu hoje atendi, há 4500 que precisam sair daqui. Algumas delas estão a ir para a Itália, outras para a França, outras para a Noruega e nenhuma para Portugal. O ministro dos Negócios Estrangeiros já foi pressionado há dois meses e ainda não deu uma resposta.
A lista que foi entregue no Ministério dos Negócios Estrangeiros e que está desde o primeiro dia à espera de resposta.
Exatamente e precisamos de uma resposta urgentemente. Tenho aqui miúdos paralisados da cintura para baixo, prestam-se a ser amputados. Acho que qualquer pessoa em Portugal queria receber estes miúdos para tratamento, qualquer pessoa. Portanto, estamos à espera de quê? É nisto que temos de ser melhores. Se queremos ajudar, o que se passa aqui é perceber que conseguimos ajudar mesmo de longe. Temos é de saber quem pressionar e como fazer. Mas tudo isto que eu disse é como cidadão português e não é como trabalhador humanitário, porque aqui eu não sou ativista, aqui sou First Responder, ou seja, sou trabalhador humanitário.