Queda de Assad pode não significar fim da guerra: "Podemos passar de uma situação má para uma ainda pior"
Luís Tomé explica à TSF que al-Jolani "procura passar uma outra imagem, mas as suas motivações, as suas raízes, são aquelas que conhecemos", por isso, pede prudência "em relação a al-Jolani e ao HTS" e moderação "nas boas expectativas de que a queda de Bashar al-Assad signifique o fim da guerra civil e a paz na Síria"
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A queda de Bashar al-Assad do poder na Síria não significa, por si só, o fim da guerra civil no país e a paz. Quem faz o aviso é Luís Tomé, professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa.
Grupos rebeldes anunciaram, este domingo, num discurso na televisão pública síria, a queda do "tirano" Bashar al-Assad, garantindo que libertaram todos os prisioneiros detidos "injustamente" e apelando aos cidadãos e combatentes que preservem as propriedades do Estado.
Abu Mohammed al-Jolani, líder do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), grupo que encabeça a coligação de rebeldes que tomou o poder na Síria, tem um passado ligado ao grupo terrorista Al-Qaeda. Por isso e não só, Luís Tomé recomenda prudência nas expectativas para a transição de poder.
"Com a derrota militar do Estado Islâmico, nós assistimos a uma mudança na postura de al-Jolani. O que foi fazendo foi pontes com vários grupos que tinham agendas muito diferentes e em 2016 proclama mesmo o corte da afiliação com a Al-Qaeda, surgindo teoricamente com uma mensagem mais inclusiva para obviamente chegar a outras audiências, designadamente na Síria. Portanto, o seu Governo de Salvação Sírio foi acompanhado sempre de muita brutalidade, muitos ativistas desaparecidos, opositores mortos e frequentes conflitos com vários outros grupos", explica o especialista em relações internacionais.
Al-Jolani, de acordo com Luís Tomé, "teve arte suficiente para congregar em torno do seu Governo de Salvação Sírio, liderado pelo seu grupo, uma coligação de vários grupos que repentinamente faz este progresso muito significativo".
"Ele procura passar uma outra imagem, mas as suas motivações, as suas raízes, são aquelas que conhecemos e, portanto, eu diria que temos que ser muito prudentes na avaliação e nas boas expectativas que temos que ter em relação a al-Jolani e ao HTS e também temos que ser moderados nas boas expectativas de que a queda de Bashar al-Assad signifique, por si só, o fim da guerra civil e a paz na Síria. Eu acho que estamos muito longe de tal cenário tão positivo", avisa.
O professor de Relações Internacionais explica que, apesar da derrota do regime de Bashar al-Assad, a oposição síria está longe de ter um caminho comum.
"O problema é que a Síria não está unida e, portanto, a queda de Damasco, a queda do regime de Bashar al-Assad, não impede que o território sírio continue dividido entre múltiplos grupos. Grupos esses que têm agendas e apoios externos muitíssimo opostos e que agora deixam de ter um inimigo comum. Nós podemos fazer algum paralelismo com o que foi o Estado Islâmico. Durante algum tempo, o Estado Islâmico era um inimigo comum ao regime Bashar al-Assad e, portanto, aos seus aliados Hezbollah, Irão e Rússia, mas também aos Estados Unidos, à Turquia, aos curdos e a vários grupos jihadistas. Quando desapareceu esse inimigo comum, com a derrota militar do Estado Islâmico, essas suas agendas vieram ao de cima e confrontaram-se entre si", compara.
Por isso, a situação que era má pode acabar por piorar: "O que agora acontece é que, com a queda de Bashar al-Assad, os vários grupos, fações, com as respetivas agendas e apoios externos, deixam de ter este inimigo comum. Neste momento estamos, de facto, no início de uma nova história na Síria e no Médio Oriente, cujo plano geopolítico se transformou drasticamente, e tudo permanece ainda em aberto e uma incógnita. A questão é: nós podemos passar de uma situação que era má para uma situação que pode ainda ser pior."
Luis Tomé diz que não há um contexto favorável a grandes otimismos, mas aponta um facto relevante para a situação da Síria.
"Num contexto geopolítico mundial tão competitivo como aquele que vivemos e num contexto em tanta convulsão geopolítica que temos no Médio Oriente, de facto, não nos dá margem para grandes otimismos. Porém, há aqui uma mudança que vale a pena salientar: muitos dos atores que travavam uma certa evolução da Síria, atores esses que apoiavam Bashar al-Assad, como a Rússia, o Irão e o Hezbollah, estão neste momento fragilizados. No caso da Rússia, distraída com a Ucrânia, portanto, já não têm o papel, e por isso é que Bashar al-Assad caiu, nem têm o interesse e o empenho que tiveram outrora e isto pode abrir margem para que outros atores internos e os seus apoios externos se conjuguem numa solução menos má ou positiva ou mais pacífica e inclusiva nesta transição. Mas isso é com algum otimismo", esclarece.
Quanto a Bashar al-Assad, o especialista em relações internacionais não exclui o regresso à vida política na Síria: "Há inclusivamente alguns discursos não oficiais do lado da Rússia e do lado do Irão que dizem que isto não é uma derrota nem é um revés, é um compasso tático para que Bashar al-Assad possa voltar no futuro. Inclusivamente se no futuro a Síria mais pacífica enveredar por eleições, Bashar al-Assad pode ele próprio vir a candidatar-se a eleições e, portanto, procurando claramente uma saída bem distinta daquela que conhecemos de outros ditadores, seja na região, como Khadafi ou Mubarak, seja noutras partes do mundo onde os ditadores tentam resistir até ao limite e depois pagam com a vida quando os seus opositores, a população, os conseguem apanhar."
No entanto, "está tudo muito incerto, as informações são escassas, há muita especulação". Luís Tomé acredita que al-Assad "terá saído do país e terá tido como destino a Rússia" e descredibiliza as informações da queda do avião onde seguia.
"Também não é igual cenário com a morte de Bashar al-Assad, se efetivamente o avião caiu, eu tenho dúvidas. Saiu do satélite para não ser detetado por eventuais mísseis que quisessem abater o avião ou se ele sobreviveu e está exilado em algum país onde porventura pode tentar o regresso ao poder de uma forma mais pacífica ou, de novo, por via de uma violência de um golpe", conclui.