Querido diário, cheguei ao Congresso. Os cinco segredos do fenómeno Ocasio-Cortez
Há um ano servia às mesas, hoje é um dos nomes mais populares do panorama político dos Estados Unidos da América. Quais os segredos da receita que transformou uma mulher comum num fenómeno?
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É mulher, jovem, latino-americana e não tem medo de Donald Trump. Alexandria Ocasio-Cortez é a mais jovem congressista da História dos Estados Unidos da América e tornou-se um dos nomes mais falados em todo o mundo assim que pisou a Câmara Legislativa.
Contra o que a ordem natural das coisas fazia prever, passou de servir às mesas num restaurante para a casa onde se tomam algumas das decisões mais importantes do mundo. Em poucos meses, uma cidadã praticamente desconhecida tornou-se um dos nomes mais referidos (e assediados) pela comunicação social.
Desde a forma como funciona o Congresso até ao método que utiliza para retirar a maquilhagem, Ocasio-Cortez está ligada em permanência aos eleitores através das redes sociais, uma espécie de diário onde conta (quase) tudo e responde às dúvidas dos seguidores.
A TSF foi à procura de respostas para perceber quais os ingredientes da fórmula que faz de Alexandra Ocasio-Cortez um fenómeno da política e das redes sociais.
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1. É a mais jovem mulher congressista da História
"O facto de ser uma mulher, e nova, e vir de um lugar menos favorecido dentro da grande Nova Iorque, é sempre uma narrativa que os media norte-americanos valorizam. Tal como o Barack Obama foi também o underdog no seu tempo", começa por dizer a especialista em comunicação política, Rita Figueiras.
A juventude da congressista é, na visão da professora da Universidade Católica, um dos trunfos de Ocasio-Cortez que, assim sendo, não tem um passado na política que possa manchar o seu currículo e a sua imagem: "Apesar de ser mais jovem do que todos os outros e de ser uma novata na política ativa, não tem um passado, o que também é um benefício. Neste caso, em que cada vez mais as pessoas têm uma ideia extremamente negativa acerca dos políticos, de todo o seu percurso e da forma como a política funciona, alguém que vem de fora também é valorizado."
O olhar de Rita Figueiras é partilhado pelo analista de política americana Germano Almeida, que acredita que Ocasio-Cortez é a corporização de uma ideia de futuro que sempre marcou o imaginário democrata: "Num tempo em que, nos últimos dois ou três anos, vimos pessoas com grandes responsabilidades na política americana - alguns republicanos e outros até democratas - a vergarem perante a inaceitabilidade de coisas que Donald Trump fazia só porque ele era Presidente é de elogiar e de admirar a coragem com que uma jovem de 29 anos chega a Washington e o enfrenta."
2. Não é Hillary Clinton
Depois da derrota - surpreendente para muitos - de Hillary Clinton contra Donald Trump nas últimas eleições presidenciais, Ocasio-Cortez surge com um discurso assumidamente socialista e admite não ter medo que lhe chamem radical, uma narrativa à qual a política americana não estava habituada e que posiciona a irreverente congressista como uma figura política fora do sistema.
"O que aconteceu em 2016 foi que os democratas permitiram o absurdo que foi ter Donald Trump na Casa Branca, porque tiveram uma candidata, Hillary Clinton, que era demasiado colada ao sistema, demasiado centrista e isso está agora a verificar-se que não é muito dentro daquilo que é hoje a realidade do campo democrata", explica Germano Almeida.
O analista acrescenta que "o campo democrata está muito virado à esquerda" e que "pela primeira vez, e de há muitos anos a esta parte, há sondagens que dizem que a maioria dos democratas nos Estados Unidos se sentem liberais e não moderados ou centristas."
Ocasio-Cortez é, portanto, um fenómeno com origem no movimento Bernie Sanders, o democrata que perdeu contra Hillary Clinton nas primárias de 2016: "Hillary Clinton era uma nomeada esperada, embora muito do establishment. A grande surpresa foi o movimento Sanders ter mais de 40% dos votos democratas. Ora, Alexandria Ocasio-Cortez e outros casos são os herdeiros, os filhos desse movimento."
No mesmo plano, Rita Figueiras considera que a estratégia que tem beneficiado Ocasio-Cortez não pode ser isolada dos acontecimentos mais recentes da política dos Estados Unidos da América: "Não há uma receita. É um contexto. Não podemos dissociar a Alexandria do que já foi ter havido o Barack Obama, de ter havido o Bernie Sanders, por contraposição à existência do Donald Trump. Também podemos ver aqui o rescaldo do que foi o #metoo e o "Occupy Wall Street"."
3. Apostou numa campanha "forte e arrojada"
"A coragem de mudar" foi a mensagem de Ocasio-Cortez enquanto candidata, naquela que foi, de acordo com Rita Figueiras, "uma campanha online muito bem feita".
"Tinha uma boa imagem, forte, consistente, moderna, coerente, arrojada, diferente da linha tradicional em termos, por exemplo, das cores. O facto de assumir de uma forma tão visível uma candidatura bilingue, com o espanhol e com o inglês, o que só traduz a realidade americana", explica a especialista
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Por vezes, por muito consistente que seja a imagem de campanha, não existe coerência com a personalidade e a postura dos candidatos. Rita Figueiras considera, no entanto, que este não foi o caso de Ocasio-Cortez.
"Neste caso não. Havia uma grande coerência entre a imagem, a narrativa que se projetou da candidata improvável e que tinha um discurso diferente, e essa imagem diferente refletia-se no seu discurso e na sua postura. Um discurso assumido, com substância e diferenciador. Por outro lado, uma certa tradição de "Sex and the City" da rapariga que se preocupa com a imagem, que se maquilha, que cuida do cabelo, que pensa na roupa que veste. Neste conjunto, construiu ao mesmo tempo uma campanha de ideias, mas também mostrou uma pessoa comum no bom sentido da palavra."
4. Tem "carisma e substância"
Quando a embalagem é apelativa, mas o conteúdo é desinteressante não há marketing que sustente a imagem percecionada de um produto... ou de um político. Germano Almeida sublinha que, também neste aspeto, Ocasio-Cortez se diferencia por ser "alguém que junta carisma a uma grande substância".
"É uma mulher muito corajosa. É uma mulher muito carismática também na sua história de vida, com o traço latino que tem da sua herança familiar. É uma mulher que fala de uma forma muito frontal e muito crua. Nesse aspeto, faz lembrar um pouco Bernie Sanders e também Elizabeth Warren. É alguém que de forma muito frontal tem chamado, de forma muito direta, Donald Trump à colação. Tem apontado muito os defeitos do Presidente."
Um dos exemplos mais recentes aconteceu durante a entrevista ao programa "60 minutos" da CBS News, durante a qual Ocasio-Cortez disse não ter dúvidas de que Donald Trump é racista, defendendo que há "palavras que ele usa, que são apitos históricos de supremacia branca".
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Uma das principais bandeiras da congressista é o "Green New Deal", um programa económico que pretende atenuar as desigualdades e lutar contra as alterações climáticas.
"Isto não é só carisma e posicionamento. É alguém que, desde que chegou ao Congresso, começou rapidamente a apresentar propostas. A mais significativa delas é a tal questão de taxar a 70% as principais fortunas da América. Em tempos de sound bites é sempre positivo ver alguém que chega e apresenta propostas concretas. Essa proposta inscreve-se numa ideia muito à esquerda no Partido Democrata, que nos últimos anos tem vindo a ser popularizada por Bernie Sanders e por Elizabeth Warren."
Apesar de considerar que, ao assumir esta posição tão aguerrida, Ocasio-Cortez consiga representar a classe operária, Germano Almeida acredita que o Green New Deal, pelo menos nestes termos, não vai vingar.
"Num país como a América em que, essencialmente, o que vigora é a ideia de que o Estado não se deve meter demasiado na nossa vida, no nosso dinheiro e nas empresas, eu diria que, embora seja uma proposta sexy e bem fundamentada para a esquerda americana, num plano mais global será arriscado que os democratas coloquem essa proposta como sua principal plataforma política para evitar a reeleição de Donald Trump."
5. É mestre nas redes sociais
Entrar na página de Instagram ou do Twitter de Alexandria Ocasio-Cortez é como ler a página de um diário da congressista. Desde o primeiro momento em que pisou o chão da Câmara Legislativa que a jovem mulher conta pormenores do seu trabalho e da sua vida pessoal.
Num momento conta como a confundem frequentemente com uma estagiária ou com a mulher de um congressista e no outro aparece no sofá de casa a comer um gelado ou a aconselhar os seguidores sobre a quantidade de leite que é saudável beber.
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Rita Figueiras explica que esta porta aberta para a vida pessoal dos políticos é já uma tendência e que acontece, inclusive, em Portugal, tanto através das redes sociais como da televisão.
"É um retrato das novas modalidades que a política cada vez mais segue, que não está estritamente situada nos assuntos que tradicionalmente compunham a agenda política: os assuntos de lifestyle. Vê-se isso na televisão portuguesa cada vez mais com a presença de políticos nos programas do daytime, que nada têm a ver com as questões políticas. No caso de Alexandria é nas redes sociais, no caso português podemos fazer essa transferência para a televisão."
A especialista em comunicação política explica que, tal como Barack Obama, Ocasio-Cortez é uma "community organizer", que são "pessoas que interagem, integram e escutam, e que mantêm uma conversação com as pessoas que estão a trabalhar".
"Neste caso, as pessoas com quem a congressista está a trabalhar são obviamente os eleitores. E, portanto, é quase como se a campanha fosse permanente. Não digo que não o faça de uma forma genuína, mas é, de facto, como se fosse esta campanha permanente que as redes sociais potenciam", sublinha.
A presença ativa nas redes sociais permitiu que Ocasio-Cortez conquistasse uma visibilidade a duas etapas: "As redes sociais ajudaram-na a catapultar para outros espaços. E, num certo momento, as redes sociais articularam-se com os media mainstream, com a televisão e também com a imprensa de referência norte-americana."
De cada vez que fala das dificuldades em encontrar casa, por não ter poupanças que lhe permitam garantir uma renda, ou quando expõe que o seu plano de saúde enquanto empregada de mesa custa o dobro do preço dos planos oferecidos aos membros do Congresso, Ocasio-Cortez passa a imagem de uma rapariga comum ou, nas palavras de Germano Almeida "a girl next door".
A popularidade de Ocasio-Cortez é recebida com resistência por muitos políticos, sobretudo republicanos. Muitas vezes, a congressista é atacada nas redes sociais e na comunicação social por figuras e alas políticas. Ainda assim, usa esses ataques a seu favor, reagindo, grande parte das vezes, com argumentos fundamentados ou com sentido de humor.
Exemplo disso foi a reação a um vídeo divulgado pelos republicanos, em que a congressista aparece a dançar de forma sensual nos tempos da faculdade ao som da música Lisztomania, dos Phoenix. Em vez de pedir desculpas publicamente ou de se demarcar dessa atitude do passado, Ocasio-Cortez reage da forma que é, na visão de Germano Almeida,"a maneira mais inteligente e mais cool possível", gravando um novo vídeo, dentro do próprio Congresso, a dançar.
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Com respostas prontas e rápidas e ideias fixas, Alexandria Ocasio-Cortez promete continuar a agitar os bastidores da política americana e deixa uma mensagem clara a quem não se sentir confortável com a sua presença: "Se não consegues aguentar o calor, sai da cozinha".