"Relação transatlântica está em péssimas condições. Trump virou as costas à Europa"
Um realista nas Relações Internacionais, Nicolas Tenzer lidera o Centro de Estudos e Reflexão sobre a Ação Política (CERAP), em Paris, esteve em Lisboa para uma conferência na Universidade Católica Portuguesa. Acredita na vitória da Ucrânia e diz que o que se passa no Médio Oriente "é uma verdadeira vergonha"
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Como é que vê a situação atual em Gaza?
É uma verdadeira vergonha. É uma pena, porque sabemos que o Hamas cometeu um genocídio, a 7 de outubro de 2023, e que Israel tinha o direito de retaliar. Mas a forma como retaliam e a forma como estão a fazer a guerra neste momento é simplesmente inaceitável. Penso que Israel está a cometer crimes em grande escala. Crimes de guerra, crimes contra a humanidade que vão além da legítima defesa do país.
E chamaria a isto genocídio, como chamou ao que Hamas fez no dia 7 de outubro de 2023?
Penso que existe certamente uma intenção genocida entre alguns dos membros israelitas no Governo. Não tenho a certeza de que possamos qualificá-lo de genocídio, porque não há, quero dizer, assassínios indiscriminados como o Hamas fez. Mas, para mim, não se trata de qualificações. Basicamente, o Tribunal Penal Internacional tem de dizer que sabe como caraterizar os crimes cometidos, mas pelo menos há crimes, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Qual deve ser a abordagem da França e da União Europeia relativamente a este conflito no Médio Oriente?
É muito difícil para a maioria dos países europeus por dois motivos. O primeiro é que, por razões históricas, não há absolutamente nenhuma unidade entre os países europeus. Por exemplo, se considerar Espanha, que favorece muito a Palestina, a Alemanha diz, por razões que sabemos, é claro, que tínhamos que, antes de tudo, defender Israel, seja lá o que for, ou a França, que está basicamente a dizer algo entre os dois. Nós, é claro, condenamos perfeitamente os crimes cometidos pelos terroristas, pelas organizações palestinianas. Mas, ao mesmo tempo, pedimos a Israel, ou exigimos, com insistência, que cumpra o direito internacional, e preferimos uma solução de dois Estados. Sabe, sobre o Oriente Médio, não há unidade. Essa é a primeira coisa. A segunda coisa, é que, basicamente, Netanyahu não se importa. Netanyahu não quer saber da Europa. Ele importa-se com os EUA, ele importa-se, em última análise, com o que Trump fará. Mas ele considera que a Europa basicamente não tem importância, porque, quer dizer, todas as ameaças propostas pela Europa não são muito importantes para Israel. Nem económica, nem militarmente. E Israel sabe perfeitamente que não há unidade. Então, basicamente, para Israel, a Europa é uma espécie de tigre de papel.
E em relação à Ucrânia, e levando em conta as medidas tomadas pelo governo americano, o que é que a Europa deveria fazer? Além de ser uma espécie de mero espetador?
Em primeiro lugar, a Europa não pode ser espetadora e, basicamente, até agora, a Europa não tem sido, se considerarmos as armas entregues pelos europeus, são mais importantes globalmente em quantidade do que as armas entregues pelos EUA e, agora, basicamente, não tenho absolutamente nenhuma expectativa do lado americano, visto que os EUA estão basicamente a virar-se completamente para a Rússia. Não há absolutamente nenhuma hipótese para mim de que Trump venha para uma posição razoável. E então, basicamente, a Europa tem que fazer duas ou três coisas. Primeiro, entregar mais armas à Ucrânia para rearmá-la muito rapidamente, basicamente intervir em todas as direções. Temos basicamente que transformar as nossas economias em economias de guerra e isso é algo que eu tenho dito desde o início da invasão. E é algo que os ucranianos estão a pedir. Eu estive na Ucrânia novamente, sabe, há duas semanas e... Basicamente, eles estão a pedir mais armas. A segunda coisa é, basicamente, apoiar também a indústria de armas ucraniana, que é muito forte porque, sejamos bem claros, a Rússia não venceu a guerra e a Ucrânia também não a perdeu. Alinha da frente aguenta-se e temos uma indústria militar muito forte, cerca de 50% das armas usadas pelas forças ucranianas são ucranianas. No ano passado, a Ucrânia fabricou 1,5 milhões de drones; este ano fabricará 3 milhões de drones, além de mísseis. Então, basicamente, temos que ajudar a indústria ucraniana. E a terceira coisa é, e isso também é uma questão de credibilidade para a Europa, temos que impor sanções totais. Todas as sanções possíveis, incluindo algo que a Europa não está acostumada a impor, sanções secundárias contra países como a Índia, como a China, como os Emirados, que ainda negoceiam, de uma forma ou de outra, com a Rússia. E eu acho que não há absolutamente nenhuma desculpa para isso. E há algo que eu já venho dizendo desde 24 de fevereiro de 2022, bem no início da guerra: não podemos vencer uma guerra sem lutar. Não podemos vencer uma guerra liderando pela retaguarda.
Isso significa botas no terreno…
Precisamos de tropas no terreno. Sim, definitivamente. Não estou a dizer que temos que enviar tropas para lutar ao lado do exército ucraniano, mas temos que proteger os civis ucranianos. Temos que impor uma zona de exclusão aérea. Temos, é claro, que retaliar cada vez que a Rússia ataca escolas, jardins de infância, hospitais, etc. Não devemos ter medo da Rússia, porque durante 25 anos isso foi uma enorme vitória para Putin. E isso foi um enorme fracasso histórico para a Europa. Os líderes europeus e também os líderes americanos consideram que podemos, digamos, conter a Rússia pelo que eles chamam gestão de escalada. Na verdade, isso não funciona. Acho que se quisermos ser muito sérios, se quisermos dissuadir a Rússia, temos que mostrar que não temos medo. E acho que isso é muito importante porque, caso contrário, Putin vai considerar, e isso é algo que ele considera agora, que pode continuar os seus crimes em massa. Putin matou centenas de milhares de civis durante 25 anos na Chechênia, na Síria, na Geórgia, na Ucrânia, em alguns países africanos, etc. E nós não dissemos nada a Putin. E acho que agora temos que o parar e dizer basta. Porque Putin não vai parar. Quer dizer, a própria ideia de que poderia haver um tipo de acordo de paz, um acordo de paz com Putin, isso é um jogo de tolos. Não devemos falar em negociação com a Rússia. Não podemos falar em paz com a Rússia. Quer dizer, é algo que é contraditório. Se conhecermos a ideologia tradicional em Putin, algo que eu venho descrevendo muito precisamente, nomeadamente no meu penúltimo livro sobre guerra, crime e religião, e isso é uma das teses do meu livro, é que basicamente a maioria dos líderes europeus não conseguiu, durante pelo menos 22 ou 23 anos, a chave para decifrar a realidade dos regimes de Putin. Houve, claro, corrupções entre muitos líderes europeus, houve um desligar da indústria europeia, houve falta de sentido moral da maioria dos líderes políticos, mas também tem falta de inteligência. E agora temos que entender a própria natureza do regime de Putin, houve alguns progressos, quero dizer, por Emmanuel Macron, por Frederich Mertz, Keir Starmer, pelos polacos, os bálticos e os nórdicos sabiam há muito tempo, mas certamente nós temos que entender, quero dizer, a própria natureza do regime de Putin.
Sendo um realista em termos da escola de relações internacionais com que mais se identifica, ainda acredita que a Ucrânia pode vencer a guerra, como disse numa entrevista, penso que com a Rádio Free Europe há dois anos?
Com certeza. Se me disser que a Ucrânia pode vencer a guerra em três ou seis meses, eu diria que não. E os ucranianos dizem isso, perfeitamente. E eles também me disseram, há duas semanas, que não podem reconquistar os territórios perdidos imediatamente. Mas, no fim de contas, se considerarmos a força do exército ucraniano e se os líderes europeus decidirem intervir, acho que basicamente a Ucrânia pode vencer a guerra. A Rússia não pode vencer a guerra. E não estou falando disso. É claro que pode infligir muitos danos à Ucrânia e continuará a fazê-lo. É por isso que temos que retaliar. Mas eu acho que, claro, a Ucrânia pode vencer a guerra.
Com Donald Trump na Casa Branca, onde está ou como está a relação transatlântica?
Está em péssimas condições para dizer o mínimo, e para mim, o verdadeiro problema é que Trump, basicamente, vira as costas à Europa. Ele está do lado negro da força como costumávamos dizer. Acho que há uma espécie união ideológica entre Putin e Trump, e que isso não vai mudar. Algumas pessoas disseram, depois do encontro entre o presidente Zelensky e Trump, no Vaticano, aquando do funeral do Papa Francisco que as coisas iam mudar. Nunca acreditei nisso e não, nada mudou e nós não devemos esperar nada. Isso é algo que todos os ucranianos com que me encontrei há duas semanas, me disseram: que não esperam nada dos EUA. Mas se considerarmos o longo período de tempo... isto não é totalmente novo. Quer dizer, o que é novo é o fato de que Trump está do lado do inimigo. Ele não se importa em melhorar a lei. Ele não se importa com direitos humanos. Ele não se importa com valores democráticos, com moralidade.
Mas se considerarmos a abstenção e a inação de George W. Bush em 2008, quando 20% do território georgiano foi tomado pelos russos, se considerarmos a decisão do presidente Obama em 2013 de não impor as linhas vermelhas na Síria após o ataque químico, bem, as não intervenções de Obama em 2014, sabe, quando as tropas russas entraram no Donbass e também, claro, tomaram a Crimeia em 2015 ou durante o cerco e na queda de Aleppo, houve muitas pessoas, inclusive nos EUA, incluindo alguns dos meus amigos que são generais no Exército dos EUA, a dizer: OK, temos que impor uma zona de exclusão aérea. Nada aconteceu. Você teve 2021, quando, sem qualquer consulta aos aliados, o presidente Biden decidiu retirar as tropas do Afeganistão e, durante o período de guerra na Ucrânia em que o presidente Biden esteve no cargo, entre 2022 e janeiro de 2025, na verdade, o exército da Ucrânia foi apoiado suficientemente para que a Ucrânia não caísse, mas não o suficiente para que a Ucrânia vencesse. E não houve absolutamente nenhuma estratégia de derrotar a Rússia por parte do governo Biden.
A ameaça feita por Trump nesta sexta-feira de tarifas de 50% sobre os produtos da União Europeia significa o quê? O que é que ele quer obter?
Acho que, para mim, isso é basicamente incoerente, porque ele não vai conseguir nada. E basicamente a Europa tem os meios para retaliar. Quer dizer, a Europa é poderosa, tem um orçamento enorme e certamente até maior do que, sabe, somando tudo, do que os EUA e a Europa pode atrair, no momento, muitos cientistas certamente atrairão mais investimentos, dada a política de Trump. Então, basicamente, não sei o que Trump está a decidir. Essa é apenas uma política errática para os eleitores americanos. Mas acho que os eleitores americanos, no final das contas, dirão: "Ok, houve muitas promessas sobre o fim da inflação e o que estamos a testemunhar é isto.”
Está preocupado com o que pode acontecer entre a Índia e o Paquistão? Ou o cessar-fogo anunciado no fim de semana passado pode ser duradouro e acalmar as coisas?
Eu... eu não posso dizer que isso vai se manter ou não. Mas a realidade é que quando não há absolutamente nenhuma liderança no mundo, quando a Europa parece estar muito fraca, não está, mas ainda assim, sabe, não substituiu os EUA e deveria, que é algo que escrevo no meu último livro, O Fim da Política das Grandes Potências, a Europa poderia substituir basicamente os EUA, mas ainda assim não o fez. Mas então, quando você não tem ninguém a policiar o mundo, então muitos Estados e neste caso, a Índia principalmente mas também o Paquistão, na minha opinião, fazem o que querem. É, basicamente, a consequência de um mundo não regulado.