Relatório de Munique: multipolarização no mundo e uma tempestade polar perfeita na Europa
É uma frase feita dizer-se que o mundo está a tornar-se cada vez mais “multipolar”. Mas multipolarização é precisamente a ideia-chave do Munich Security Report 2025, esta segunda-feira divulgado, e que antecede a conferência realizada na capital bávara no próximo fim de semana. Costa vai ser um dos oradores principais.
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No relatório que foi hoje publicado, lemos que “embora seja discutível até que ponto o mundo de hoje já é multipolar, a ‘multipolarização’ do mundo é um facto: por um lado, o poder está a deslocar-se para um maior número de actores que têm a capacidade de influenciar questões globais fundamentais. Por outro lado, o mundo está a experimentar uma polarização crescente entre e dentro de muitos Estados, o que está a dificultar abordagens conjuntas a crises e ameaças globais”.
Multipolarização é, por conseguinte, o título do relatório deste ano, apontando o mote para os trabalhos da Conferência de Segurança de Munique que vai juntar líderes políticos em vários painéis e intervenções, desde responsáveis europeus como Ursula Von der Leyen (presidente da Comissão Europeia) e António Costa (presidente do Conselho Europeu), até altos quadros da administração americana, como o vice-presidente J.D.Vance. A Presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, a Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Kaja Kallas, e o Comissário Europeu para a Defesa, Andrius Kubilius, anunciaram a intenção de estar presentes. Também o Enviado Especial do Presidente de Donald Trump para a Ucrânia e a Rússia, Keith Kellogg, deve marcar presença.
A Conferência, cujos trabalhos começam sexta-feira, terá lugar uma semana antes das eleições para o Bundestag alemão, pelo que também participarão os candidatos a Chanceler: o atual Olaf Scholz (SPD), o candidato da CDU Friedrich Merz, que lidera de forma destacada as sondagens, bem como os candidatos dos Verdes Robert Habeck e Christian Lindne, dos liberais. Não há indicação de presença da extrema-direita, AfD, em segundo lugar nas sondagens.
Lê-se no relatório que “o sistema internacional atual apresenta elementos de unipolaridade, bipolaridade, multipolaridade e não-polaridade. No entanto, é claramente percetível uma mudança de poder em curso, no sentido de um maior número de Estados a competir por influência. E a multipolarização não é apenas evidente na difusão do poder material, mas também no facto de o mundo se ter tornado mais polarizado ideologicamente. O liberalismo político e económico, que moldou o período unipolar pós-Guerra Fria”, já não é o único caldo político, sendo que, de igual modo, “é cada vez mais contestado a partir de dentro, como demonstra a ascensão do populismo nacionalista em muitas democracias liberais. Mas também é contestado a partir do exterior, como o demonstra a crescente bifurcação ideológica entre democracias e autocracias, bem como a emergência de um mundo em que coexistem, competem ou colidem múltiplos modelos de ordem”.
Esta multipolarização é descrita no relatório como geradora de “sentimentos contraditórios. A leitura otimista destaca as oportunidades de uma governação global mais inclusiva e de maiores restrições a Washington, há muito considerada por muitos como uma potência demasiado dominante. Na leitura pessimista, a multipolarização aumenta o risco de desordem e conflito e prejudica a cooperação efectiva”.
Embora o Índice de Segurança de Munique 2025 sugira que, as populações dos países do G7 “são menos optimistas em relação a um mundo mais multipolar do que os inquiridos nos países “BICS” (BRICS menos a Rússia), as opiniões nacionais sobre a multipolaridade são moldadas por perspectivas distintas sobre a atual ordem internacional e uma futura ordem desejável”.
No subcapítulo dedicado à União Europeia e com o título “Uma Perfeita Tempestade Polar”, o relatório aponta cinco dimensões essenciais:
- <strong> </strong><strong>A visão liberal da UE para a ordem internacional tem enfrentado ventos contrários desde há algum tempo, e esses ventos transformaram-se agora numa tempestade perfeita.</strong>
- <strong> A guerra da Rússia contra a Ucrânia destruiu a arquitetura de segurança cooperativa na Europa e minou a norma global contra a conquista territorial.</strong>
- <strong> A crescente securitização das interdependências económicas em todo o mundo está a minar a agenda de comércio livre da UE e corre o risco de agravar as fraquezas económicas estruturais da Europa.</strong>
- <strong> O aumento do iliberalismo e a crescente polarização estão a minar a capacidade de ação e a credibilidade da UE enquanto promotora dos valores liberais no estrangeiro.</strong>
- <strong> A nova administração dos EUA poderá intensificar dramaticamente estas crises, reduzindo o seu empenhamento na segurança da Europa, lançando guerras comerciais e aprofundando as divisões internas.</strong>
Na verdade, os movimentos populistas “aprofundam as divisões internas da Europa e minam a capacidade da UE para enfrentar as crises com que se confronta”.
A vitória presidencial de Donald Trump “enterrou o consenso da política externa dos EUA pós-Guerra Fria de que uma grande estratégia de internacionalismo liberal seria a melhor forma de servir os interesses dos EUA”. Para Trump e apoiantes, esse foi “um mau negócio”. Em consequência, “os EUA podem estar a abdicar do seu papel histórico de garante da segurança da Europa - com consequências significativas para a Ucrânia”. A política externa será provavelmente moldada “pela disputa bipolar de Washington com Pequim”, o que pode contribuir para o acelerar da “multipolarização do sistema internacional”.
A China é o mais proeminente e poderoso defensor mundial de uma ordem multipolar, apresentando-se “como um defensor dos países do chamado Sul Global” , o que para muitos no ocidente continua a ser visto “como um disfarce retórico para prosseguir a competição entre grandes potências com os EUA. Apesar do sucesso considerável da China em mobilizar os descontentes da atual ordem global, o progresso económico e militar do país enfrenta uma série de obstáculos internos”, que podem ser agravados pela dinâmica da evolução demográfica do país, contribuindo inclusive para uma retracção do consumo a par de uma quebra de competitividade nas exportações chinesas, fruto do aumento dos custos de produção. Além disso, durante o mandato do Presidente Trump, sustenta o relatório, “os esforços dos EUA para dificultar a China irão provavelmente intensificar-se - mas Pequim também poderá beneficiar da retirada dos EUA de compromissos internacionais ou da alienação de parceiros de longa data por parte de Washington”.
Neste século, defendem os editores do relatório, Tobias Bunde, Sophie Eisentraut, e Leonard Schütte, “nenhum Estado fez mais esforços para subverter a ordem internacional do que a Rússia. Moscovo prevê uma ordem mundial multipolar composta por Estados civilizacionais, como a Rússia se vê a si própria”. Os países mais pequenos – “para a Rússia, a Ucrânia conta como tal - caem na esfera de influência de um Estado civilizacional. Apesar das discrepâncias entre a autoimagem de Moscovo e a sua base de poder real, a Rússia está a conseguir perturbar os esforços para estabilizar a ordem internacional”. Acreditam os autores que a possibilidade de o país de Vladimir Putin “conseguir implementar a sua visão de esferas de influência multipolares dependerá da reação dos outros”.
E no chamado Sul Global? O Relatório de Segurança de Munique 2025 argumenta que “as críticas dos líderes indianos à atual ordem internacional e a sua adesão à noção de multipolaridade estão inseparavelmente ligadas à procura de um lugar entre as principais potências mundiais. Embora Nova Deli esteja a dar passos largos no sentido de aumentar o perfil internacional da Índia, também enfrenta desafios”. Por exemplo, a nível externo, uma vez que “a China está a aumentar a sua pegada estratégica entre os vizinhos da Índia”. Já a nível interno, a economia da Índia sofre de “fraquezas estruturais e o pluralismo político e cultural da nação está em declínio. E, embora Nova Deli se tenha posicionado como uma voz do Sul Global, a sua política de multi-alinhamento levanta dúvidas sobre se a Índia está disposta a assumir um papel mais proeminente nos esforços globais de estabelecimento da paz”.
“Profundamente investido no internacionalismo liberal e na primazia dos EUA”, o Japão está especialmente perturbado “com o fim do momento unipolar, a ascensão da China e a perspetiva de uma nova ordem multipolar. Entre os inquiridos para o Índice de Segurança de Munique 2025, os japoneses são os mais preocupados com a possibilidade de o mundo se tornar mais multipolar”.Mas Tóquio também se prepara há mais tempo do que a maioria para estas mudanças geopolíticas. Além disso, “uma série de medidas recentes indica a vontade do Japão de se defender a si próprio e à ordem que valoriza”.
Por sua vez, o Brasil observa a emergência de uma ordem multipolar como “uma oportunidade para reformar estruturas de poder desactualizadas e dar aos países do Sul Global uma voz mais forte” (Capítulo 8). Lula colocou a reforma da governação global “no topo da agenda da sua presidência do G20 no ano passado”, juntamente com a redução da pobreza e a segurança alimentar. Com os seus recursos naturais significativos, destaca o relatório no seu sumário executivo, “o Brasil tem potencial para aumentar ainda mais a sua influência global, moldando os debates mundiais sobre segurança alimentar, climática e energética. No entanto, a tradicional estratégia de não-alinhamento”, pode tornar-se mais difícil de manter “no meio das crescentes tensões geopolíticas e de um segundo mandato de Trump”.
Alvo do anúncio de sanções e fim de apoio por parte da nova Administração Trump, anunciadas pelo próprio presidente este domingo, na África do Sul, “a noção de multipolaridade não pode ser separada da sua crítica à ordem internacional existente, especialmente às instituições internacionais não representativas”. Pretória critica regularmente os Estados ocidentais “por aplicarem o direito internacional de forma selectiva”, numa referência à decisão sul-africana de acusar Israel de genocídio pela dimensão da ofensiva militar em Gaza, que começou no dia seguinte aos atentados terroristas do Hamas no sul de Israel, a 7 de outubro de 2023. Considerando o país como o “líder natural” de África “e um exemplo moral internacional”, o relatório não deixa de alertar para o anti-ocidentalismo ter aumentado no país e para a deterioração no historial da África do Sul na promoção dos direitos humanos, o que faz com que a “estatura internacional do país” também tenha sofrido “um golpe”.
Os autores sustentam que as próprias “visões de multipolaridade estão assim também polarizadas. Isto torna cada vez mais difícil adaptar pacificamente a ordem existente, evitar novas corridas ao armamento, prevenir conflitos violentos dentro dos Estados e entre eles, permitir um crescimento económico mais inclusivo e enfrentar em conjunto ameaças comuns como as alterações climáticas, que os inquiridos do Índice de Segurança de Munique têm classificado consistentemente como sendo de alta importância”. Uma vez que as grandes e as não tão grandes potências não podem enfrentar sozinhas estes desafios, “a cooperação será crucial. O facto de muitos na comunidade internacional ainda valorizarem o multilateralismo baseado em regras ficou evidente na adoção do Pacto para o Futuro no ano passado”. Mas para que esta cooperação se concretize, o mundo “precisa de uma certa despolarização. O ano de 2025 mostrará se isso é possível ou se o mundo ficará ainda mais dividido do que está”.
Como afirma no prefácio do relatório, o Embaixador Christoph Heusgen, Presidente da Conferência de Segurança de Munique, “um mundo multipolar pode vir a ser mais justo, mais equitativo e talvez até mais pacífico. Mas também pode inverter o progresso, alimentar as desigualdades, prejudicar os direitos humanos, limitar a resolução de problemas globais e tornar a guerra mais provável”. Para a preservação de um chão comum num mundo moldado por mais actores e uma polarização crescente, “temos de voltar a comprometer-nos com as regras estabelecidas na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, com as quais todos concordaram. Um mundo multipolar não pode tornar-se um mundo em que cada polo actua como lhe apetece, nem em que o Estado de direito é minado, tanto a nível internacional como interno”.