A aldeia que se transformou numa ilha. Sobreviveu ao ciclone, mas agora enfrenta a fome
A irmã Rosa Martins da Silva ajudou mais de 200 pessoas vítimas das inundações durante a passagem do ciclone Kenneth em Moçambique.
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A igreja e a escola secundária no alto da aldeia de Mieze, Norte de Moçambique, serviram como ilha da salvação para 215 pessoas quando o rio transbordou e cercou tudo, entrando pelas casas depois do ciclone Kenneth.
"Chegaram aqui sem nada. Com uma esteira, um balde, duas ou três panelas e mais nada, nem uma peça de roupa. Estavam tão encharcados que as salas ficaram todas molhadas porque eles escorriam água", recorda a irmã Rosa Martins da Silva, brasileira.
Eram quase 05h00 da madrugada de domingo quando recebeu o aviso da administradora da aldeia: a chuva era demais e era preciso abrir as portas da escola para acolher a população que fugia de casa.
Quatro irmãs da Congregação da Irmãs Servas da Anunciação entraram então nas 24 horas mais angustiantes de que se lembram.
Em janeiro de 2017 o rio Mieze também transbordou na época das chuvas, mas na altura deram guarida a 20 famílias que moravam junto às margens, nada que se compare com esta inundação e com o número de pessoas afetadas.
Hoje já é possível ir de carro até à igreja e à escola, a 20 quilómetros da capital provincial, Pemba, porque a água baixou, mas até segunda-feira a zona foi uma ilha aonde nem a ajuda alimentar chegou.
Agora os donativos de comida vão surgindo aos poucos, graças aos telefonemas para amigos da congregação, mas ainda não é suficiente para todos os que esperam que a chuva passe e Rosa Silva pede um pouco dos apoios anunciados pelas autoridades.
"Temos muitas crianças. Quando crianças choram com fome a dor é maior".
E entre os adultos a fraqueza aperta.
Maçuelo Tomo, 46 anos, não se conforma por ter perdido todo o milho que colheu na sua horta e que guardava em casa.
"Estou aqui para ver se consigo dormir e comer, mas desde manhã ainda não comi nada. As irmãs é que nos socorreram com o seu próprio arroz", conta, recordando um prato de arroz com óleo, primeira refeição que lhe matou a fome depois de ter fugido da inundação.
Ao lado, Samancade Raisse, 61 anos, acredita que "alguma comida há-de chegar" e espera numa sala onde um membro da administração da aldeia faz o registo dos desalojados para distribuição de apoios.
No quadro de uma das salas de aula há apontamentos da disciplina de inglês, mas agora é a chuva que dita as regras.
Os corpos que procuravam descanso a escapar das cheias iam entrando "e foram esquentando a sala. Secaram com o próprio calor do corpo".
Além da comida, faz falta roupa, sobretudo para bebés e crianças, alguns dos quais não se levantam das esteiras, com febre.
A irmã Rosa vai diluindo um anti-inflamatório em canecas de água e encarrega-se de lhes dar a beber.
Mais abaixo está uma aldeia enlameada com danos em quase todas as casas, de construção precária (de estacas e barro, com capim como telhado) e hortas destruídas.
Francisco Ali tem uma das poucas casas que escapou sem danos à fúria do rio Mieze e que quer proteger a todo a custo se a precipitação não abrandar e as águas voltarem a subir.
De pá na mão, abre uma vala em redor da habitação "por causa da chuva": "Isto vai proteger".
As previsões meteorológicas continuam a prever chuva moderada a forte até final da semana em Cabo Delgado, onde o ciclone Kenneth e as cheias que se seguiram provocaram 38 mortos e afetaram cerca de 166.000 pessoas.
Os números ainda podem subir, alertou na terça-feira o primeiro-ministro moçambicano, Carlos Agostinho do Rosário, porque falta chegar a vários locais remotos para fazer o levantamento dos estragos.
Este foi o primeiro ciclone a atingir o Norte de Moçambique e o segundo que o país teve de enfrentar em menos de dois meses, depois de o ciclone Idai ter atingido o centro do país em março, provocando 603 mortos.