Reportagem TSF. Combateu no Dombass e Afeganistão: morrer torturado numa prisão em Izium era "indiferente"
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Durante cinco dias, a vida de Oleksandr Glushko só conheceu a noite. Transformou-se "num vegetal". "Levaram-me para uma cave, estive sempre com um saco na cabeça e as mãos atadas atrás das costas." O homem garante ter sido torturado durante o tempo que passou na cave de um prédio no perímetro do Hospital Central de Izium. "Batiam-me com um capacete na cabeça e no resto do corpo. Partiram-me vários dedos, duas costelas. Fizeram-me a andorinha [método de tortura medieval em que, depois de as mãos da vítima serem presas atrás das costas, o corpo é levantado no ar pelos pulsos, geralmente com um tubo de ferro, até que os pés deixem de tocar no chão]."
Conversamos numa manhã fria de fevereiro de 2023. Durante as quase duas horas que passamos juntos, o homem não para de fumar. Chega a acender um novo cigarro com a beata do anterior. Mas não é o reviver as torturas que o deixa nervoso: "Nunca falei com jornalistas. Só com as autoridades. Fui ouvido pela procuradoria que investiga os crimes de guerra russos." Agora, quase um ano depois de ter sido libertado, o processo de Oleksandr Glushko continua sem acusados. O Professor (nome de chamada) é um homem habituado a responder a perguntas.
Voltemos à cave do hospital. Entre as sessões de tortura repetiam-se "as perguntas padrão: senhas, atendimento, endereços".
"Eu não tinha nada a ver com a defesa territorial nem o exército." Oleksandr garante que não quebrou: "Dei-lhes algumas informações falsas", confessa. Uma das mentiras que Oleksandr contou aos carcereiros foi sobre um suposto "ataque em grande escala" das tropas ucranianas. "Disse-lhes que viriam de todas as direções a 19 de maio." A informação valeu ao prisioneiro alguns minutos de sossego. Quando finalmente conseguiram arrancar algumas palavras, os soldados russos precipitaram-se em direção à porta. "Provavelmente, para informar os oficiais", arrisca o homem. "Mas quando voltaram, começaram bater-me com ainda mais força."
Um dos interrogadores "era caucasiano, falava bem russo, mas tinha um leve sotaque" que o denunciava. Ou seja, podia ser checheno ou do Daguestão, por exemplo. "Era um homem pequeno, porque, quando eu estava em pé, podia sentir pela direção da voz que ele era mais baixo do que eu. Mas batia mais do que qualquer um dos outros. Dançou Lezginka [dança típica do Cáucaso, uma espécie de sapateado] no meu peito."
Teve fome e sede. Não comeu, mas um soldado russo chegou a dar-lhe, às escondidas, pequenos goles de água.
Oleksandr Glushko é um veterano da guerra do Donbass, ou da Operação Antiterrorista (ATO), como lhe chamam as autoridades ucranianas. É esse o crime de que as autoridades ocupantes o acusavam. "Quando me revistaram a casa, encontraram muitos documentos e a farda. Combati entre 2018 e 2020. Lugansk, Donetsk, Severodonetsk, Novoohtyrka e Kostiantyn Ivka..." O Professor vai enumerando os locais onde deu batalha às forças pró-russas. "Claro que me chamaram nazi. Gritavam que eu tinha assassinado mulheres e crianças." Garante que serviu como voluntário ao serviço do exército ucraniano: "Não era Azov, nem Setor Direito. Era voluntário na ATO das Forças Armadas."
Mas o Donbass não foi o primeiro palco de guerra que o veterano conheceu. "Ao serviço do Exército da União Soviética, combati no Afeganistão e na Lituânia." Calejado pelo tempo, Oleksandr garante que não sofre de stress pós-traumático: "Durmo bem. Pelo menos não tenho pesadelos." Não chega a um metro e setenta de altura e apesar das dificuldades porque tem passado mantém o corpo sólido dos habituados à guerra.
Os carcereiros tentaram também chantagear Oleksandr quando descobriram que tinha uma filha. "Devem ter apanhado alguma fotografia dela entre os meus papéis e fizeram um vídeo em que ela fingia dizer: 'Pai, conta tudo o que sabes, não sejas burro.'" Estava muito escuro, colocaram-lhe o telemóvel bem perto da cara, para que pudesse ver "qualquer coisa". Mas nem a escuridão dos dias lhe levou a clareza no raciocínio: "Vi que era falso. Eles nem sequer conseguiram fazer uma boa montagem."
Na altura, a filha de Oleksandr já estava na Polónia. Foi para lá que fugiu antes dos russos chegarem a Izium, mas depois da guerra ter começado. Agora, o homem já é avô, conta, enquanto mostra, com um sorriso, o telemóvel com fotos do pequeno Leon, nascido a 2 de setembro de 2022. Mas a família encolheu durante a guerra. "A minha mãe morreu. Penso que terá sido com ataque cardíaco, quando a aviação bombardeou uns edifícios perto de casa dela. Se for subir esta rua, do lado direito, eles bombardearam aquela área. E as janelas [do apartamento] da minha mãe davam para aquela área." Também a irmã de Oleksander "foi atingida por estilhaços". Morreu no hospital oito dias depois.
O veterano conta que estava sozinho na cela, no entanto tem alguma dificuldade em descrever o espaço. "Não via nada, mas percebia que era grande. Eu costumava ficar deitado junto à porta. Cheirava a mofo. O chão era de pedras partidas, pontiagudas." Do mesmo soldado que por vezes lhe dava água sentiu, certa vez, apenas um toque. "Havia uma espécie de mesa feita de blocos que pareciam de cimento com uns trapos em cima", recorda. "O que é que quer?", perguntou-lhe. A resposta veio também sob forma de pergunta retórica: "Você quer deitar-se normalmente? Ou no gelo?" Durou apenas dez minutos: "Nessa altura voltaram os carrascos e tudo recomeçou."
As pedras pontiagudas podiam ter sido o bilhete de Oleksandr para a liberdade. "Consegui cortar as cordas que me prendiam os pulsos, tirei o saco da cabeça e saí. Vi uma luz, bem vi-a na porta. Havia um cano inserido do outro lado. Eu balancei a porta, ela caiu. Pensei: 'Vou tentar.' Não conseguia entender onde estava, nem o que estava acontecer. Percebi que estava na zona do hospital. Queria esconder-me. Mas eles tinham um posto de vigia a cada 50 metros. Comecei a correr, queria esconder-me no hospital." Virou uma esquina e deu de caras com um soldado. "Deu para perceber que havia mais celas", estava próximo. "Abri a porta, olhei em volta - ninguém. Aos poucos comecei a correr. Como pode ver, eu não corri muito. Atravessei a rua - foi onde fui apanhado."
Em resposta ao atrevimento do prisioneiro, os soldados russos decidiram partir-lhe todos os dedos dos pés. Quase um ano depois, o homem contava que ainda sentia dormência. "Estava com medo de que fosse gangrena, mas parece que aos poucos estão a melhorar." Quando percebeu que tinha perdido a mobilidade, Oleksandr pensou que ia morrer na prisão. "Mas isso foi indiferente." Foi só a primeira volta.
Ao quinto dia de encarceramento e quase inconsciente, o homem foi deixado nuns arbustos perto do cárcere. "Pegaram em mim e atiraram-me para lá. Uma mulher que conhecia de vista viu-me caído nos arbustos e avisou as pessoas aqui do bairro. Depois, dois rapazes foram lá e trouxeram-me para aqui." As mulheres tentaram tratar dele, mas, sem equipamento médico, a tarefa era impossível. "Não sei como, chamaram uma ambulância. O médico inventou-me um nome falso. Tratou-me durante um mês e meio. Fiquei lá até conseguir subir escadas sozinho." Passado esse mês e meio, Oleksandr voltou ao bairro onde ainda mora e onde a TSF o encontrou. "O que mais há a dizer? Que Deus dê saúde ao Dr. Yury Kuznetsov."
Quando foi preso, a vida de Oleksandr corria tranquila. "Aqui no bairro só ficaram os mais velhos. Mudámo-nos para um abrigo subterrâneo com medo dos bombardeamentos. Eu era o único mais ou menos capaz de trabalhar, então ia buscar comida, apanhava lenha. Ajudava os velhos." Quando regressou do hospital, já pouco podia fazer. Andava de bengala, e mesmo com bengala era difícil andar. "Ficava sentado e ia rachando lenha. Depois acabou, os bombardeamentos passaram a ser menos e as pessoas voltaram para casa."
Oleksandr voltou para a solidão de um pequeno apartamento num terceiro andar do segundo microbairro, em Izium. Com dificuldades de locomoção, o homem vê-se impedido de trabalhar. "Vendo alguma da ajuda humanitária que recebo, vendi o que tinha de valor em casa. Por exemplo, ardeu um prédio aqui perto. Fui até lá, desmontei o que restava das janelas e vendi o alumínio. É assim que sobrevivo." As torturas deixaram marcas, tem "lesões na cabeça e nos pés". E o homem teme nunca conseguir recuperar dos problemas neurológicos de que sofre. "O problema é que em Izium, nesta altura, não há nenhum médico especialista. Tinha de ir a outro sítio, a Kharkiv por exemplo, mas são quase 130 quilómetros. E não há dinheiro para isso." A lente esquerda dos óculos embaçada de tão riscada espelha bem as dificuldades com que vive.
Em finais de agosto do ano passado, numa altura em que ainda não era avô e a contraofensiva ucraniana já ia avançada, o veterano voltou a ser preso. "Duas semanas antes da libertação. Voltaram a levar-me." O destino, desta vez, foi a esquadra da polícia. "Davam-nos um litro e meio de água por dia e comíamos balanda [couve em conserva diluída em água fria]. Eles chamavam àquilo sopa ou borscht. Era horrível, mas pelo menos sempre nos alimentávamos. Pão quase nunca o vimos."
O ritual das torturas manteve-se: "Apanhei várias vezes nas costelas e com murros na cabeça. No fundo, batiam no saco, porque a cabeça já estava partida e já não doía", conta entre gargalhadas. Nos calabouços da polícia, Oleksandr conheceu um novo método de tortura: choques elétricos. "Parecia um detonador de explosivos: colavam uns terminais aos nossos dedos, ouvia-se a bobina girar e depois apertavam um botão", conta, imitando os sons do mecanismo. Para logo resumir: "Recebíamos uma boa descarga. Eu saltava quase até ao teto. Depois éramos levados para interrogatórios."
O capuz que voltou a ter de usar só podia ser retirado nas celas, que já não eram individuais. "Éramos três em cada. Se alguém fosse libertado ou desaparecesse, entrava logo outro. Éramos sempre três." Um dos companheiros de infortúnio de Oleksandr era um homem de 76 ou 78 anos, já não sabe precisar. "Tiravam-no da cela duas vezes por dia para o espancar. Eles batiam com muita força. Uma das vezes bateram com tanta força que o homem caiu da cadeira. Um dos carrascos pôs o braço do homem sobre a cadeira e, não sei com o quê, talvez um bastão ou um tubo de ferro, bateu-lhe no braço. Resultado: várias fraturas expostas. Ficou com a mão e o braço ao pendurão."
O mesmo homem foi depois levado para a cela. "Gemia e gemia. Mas só ao segundo dia começámos a gritar. Veio um médico militar russo. Um paramédico, melhor dizendo. Pôs um bocado de cartão à volta do braço, e já está. Nem sequer lhe imobilizou o braço, só colou o bocado de cartão." Uma semana depois, a saúde do homem já estava muito deteriorada. "Começou a perder a consciência e nós começámos a gritar: 'O avô está a morrer, deem-nos um médico.' E eles deram. Tirámos o corpo da cela para o corredor, o médico examinou-o e deu-lhe uma injeção para que ele pelo menos parasse de gemer. E uma ambulância levou-o para o hospital." Só há poucas semanas Oleksandr voltou a ter notícias do ex-companheiro de infortúnio. "Está vivo, mas teve ser operado porque os ossos não tinham sarado bem. Foi preciso voltar a parti-los para tentar corrigir. Não sei se funcionou."
Oleksandr conta como tudo isto começou. Tinha sido levado para a Rússia para fazer uma operação ao estômago. Pouco depois de voltar, houve um ataque à escola n.º 2 de Izium, perto da igreja. "Era lá o quartel-general dos russos. Penso que foi um HIMARS. No meio da multidão que se acumulou para ver os estragos, alguém em tom jocoso disse: 'Quando o avozinho não estava cá estava tudo bem. Ele voltou e há logo um ataque.'" Alguém com menos espírito terá relatado a conversa às autoridades russas e assim começou o calvário do homem. "Foram-no buscar a casa diretamente para a prisão."
Mas as celas e a alimentação não foram as únicas diferenças que Oleksandr encontrou. Aqui, os carcereiros eram colaboracionistas, "malta de Izium". Foi um desses carcereiros ucranianos que salvou o velho. "Conhecia o filho dele e ia-nos ajudando. Foi ele que da primeira vez chamou o paramédico e foi ele que arranjou a ambulância para o levar para o hospital."
Em toda a região de Izium há relatos de ucranianos acusados de colaborar com os ocupantes. Oleksandr também tem suspeitas. E lembra-se bem do dia em que foi preso pela primeira vez. "Eles já tinham meu nome e apelido escritos num papel. Mas não sabiam a morada, nem qual o meu aspeto ou como eu era. Eu estava aqui neste banco onde estamos agora [numa praceta entre blocos de apartamento]. Os soldados russos apareceram e perguntaram quem eu era a uma miúda. Ela limitou-se a apontar para mim." Mas Oleksandr não guarda remorso de quem o apontou a dedo. "Ela é jovem, não percebeu o que estava a acontecer."
Depois foi levado para o apartamento. Revistaram-lhe a casa. Uma frase que os soldados terão dito antes de o mergulharem na escuridão continua a ecoar na cabeça de Oleksandr: "Pelos vistos, os seus vizinhos não gostam muito de si." O homem tem vários suspeitos e uma certeza. "Foi alguém que não me conhecia muito bem, porque nem a morada exata sabia." Mas não arrisca acusar. "Não se pode chamar ladrão a alguém se não se conseguiu apanhá-lo." Ainda assim, adianta que há três nomes nesta lista pessoal: "Um deles saiu da cidade. O segundo, há muito tempo que não o vejo. E o terceiro ainda está aqui. Mas eu não tenho certeza. Eu conhecia-o há muitos anos. Sempre tivemos uma relação normal. Mas agora um dos meus camaradas ["pobratym" - significa irmão de armas] diz que foi traído por esse, e que agora está aqui em Izium. Eu tenho as minhas dúvidas." Em Izium, como em todos os territórios que foram ocupados, as desconfianças são muitas. Mas também não faltam dedos apontados. Já lá iremos.
O dia 11 de setembro de 2022 também não lhe sai da cabeça. "Na véspera houve muita confusão nos corredores. Contaram-nos quatro vezes. E comecei a pensar outra vez que era o fim. Achava que eles iam atirar granadas para dentro da cela. Sem camas, sem nada para nos escondermos."
No dia seguinte ninguém morreu.
A noite passou e a manhã começou com outros sons. "Ouvi as portas a abrirem-se. Quando chegou à nossa porta, um homem perguntou se havia algum russo lá dentro. Respondemos que não. 'Vou abrir então, mas sem pânico. Vão já para a rua porque pode haver combates de rua.' Contaram-me depois que era um civil que estava a passar de bicicleta e, ao perceber que os russos já tinham abandonado a esquadra, decidiu entrar. Deve ter sido polícia no passado. Era mais novo do que eu, mas não muito."
A caminho de casa, Oleksandr cruzou-se com uma coluna de soldados ucranianos. "Abracei-me a um deles e ele disse-me: 'Vai dar tudo certo. Vá descansar."
E se os russos voltarem? "Bom em primeiro lugar, se os russos vieram exatamente para aqui, terei de abandonar este sítio, mas não para muito longe. Entende?", diz entre gargalhadas. Oleksandr Glushko escapou com vida aos carceres russos. Nem todos tiveram a mesma sorte.