Reportagem TSF. Em Izium os dedos apontam tanto como armas: "Só quero saber onde o enterraram"
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"Os russos executaram três amigos meus. Venham comigo, eu conto-vos a estória." Era difícil recusar a oferta do homem que carregava nas mãos vários sacos de pão quando nos abordou na manhã de 27 de fevereiro num mercado de Izium. Os pães eram grandes e o isco forte.
Afinal de contas, no último ano, as autoridades ucranianas já exumaram 447 corpos. Muitos apresentavam sinais de violência, contou esta semana à TSF a porta-voz da polícia de Izium encarregada das investigações. Mas as autoridades acreditam que ainda há corpos poder descobrir.
A sul de Izium, na estrada que segue para a frente do Donbass, fica Kamianka. Estamos a menos de uma hora de Kramatorsk.
Nesta aldeia morreram 70 pessoas, a maior parte vítima dos bombardeamentos que destruíram quase todas as casas. Mas também terá havido execuções cometidas pelas forças invasoras. Poucos dias depois de chegarem, os homens da federação russa obrigaram os 160 moradores que ainda restavam (antes da guerra eram 1200) a abandonar a aldeia.
A família Zdohovets foi a única que ficou em Kamianka durante toda a ocupação. Numa conversa em fevereiro, a família explica porque nunca deixou a cidade, mesmo quando os russos lá chegaram.
"Eu estava muito doente. Tive Covid-19, perdi o meu marido pouco antes da guerra. Estava tão fraca que nem conseguia sair da cama para vir ao quintal", vai contando, para o gravador, Natalia, a matriarca da família. A mulher acrescenta que os filhos apelaram à compaixão dos soldados do Kremlin: "Pediram para nos deixarem ficar enquanto eu não melhorasse." Os russos acederam, "mas depois não havia como sair" e ficaram por ali.
Encontramo-los no quintal de casa - um rés de chão com primeiro andar e construída em tijolo de um amarelo alaranjado - entre caixas de madeira das munições russas, agora reaproveitadas para os mais diversos fins. Algumas substituem as janelas, outras servem para arrumações. A cerca do pequeno quintal é agora de cor verde tropa. Os restos de madeira pavimentam também o chão. Um dos caixotes serve de casota ao cão da família. Ao lado há alguns patos, coelhos e muitos gatos. "Todos os que estavam na aldeia vieram aqui parar. Devem ser uns vinte."
Separada da casa, há uma porta que dá para a cave onde a família viveu durante os primeiros meses da ocupação. "Éramos cinco. Eu, os meus dois filhos - o Yuri (o mais velho) e o Mykola (o mais novo) -, a minha nora e o meu neto de 16 anos", enumera Natalia.
Enquanto a família se mudou para a cave, os soldados ocuparam a casa. "Não pilharam nada, talvez pequenas coisas, mas nada de que déssemos conta", sublinha. Pouco tempo depois os ocupantes abandonaram a casa. "Nessa altura a nossa já não tinha telhado nem janelas. Encontraram uma casa melhor e mudaram-se para lá", acrescenta o filho mais novo.
Natalia não aceita mostrar a cave onde se escondia dos bombardeamentos. Mas também não foi isso que nos trouxe até aqui.
Onde está Andriy?
Tínhamos encontrado Mykola Zdohovets a 15 quilómetros deste local. No centro de Izium, junto ao mercado, o homem de 37 anos contou que três amigos tinham sido executados pelos russos. "Ataram-lhes as mãos atrás das costas, levaram-nos para um bosque e deram-lhes um tiro na cabeça." Mykola acrescenta ainda que o irmão do amigo que está com ele esta manhã também foi executado. Ao aperceber-se da conversa, esse amigo decide afastar-se sem alimentar o isco. "Eles traziam listas com os nomes", insiste Mykola. Todos eram moradores de Kamianka e todos tinham combatido no Donbass.
Quando chegamos à aldeia perguntamos a Natalia se ouviu falar nas execuções sumárias dos veteranos de guerra. "Algumas pessoas falam nisso. Mas quão relevante é essa informação? Aqui morreram cerca de 70 pessoas, não significa que foram todas executadas. Como vê, toda a aldeia está destruída. Essas pessoas morreram por causa das bombas. Não há informações exatas, foi impossível desenterrá-las." Decidimos confrontar Mykola: disse-nos que tinha perdido alguns amigos...
"Sim. O meu primo Vitia morreu, em casa, num bombardeamento." E veteranos? "Quais veteranos?" responde.
Na presença da mãe, o homem parece ter perdido a memória. Sem esconder o espanto, o intérprete insiste: "Os ativtsi", uma forma popular ucraniana de se referir aos veteranos do Donbass.
"Não estou a perceber." Mykola parece só recuperar o conhecimento quando a pergunta surge em língua russa: "Atoshnyky?"
O homem do pão morde o isco. "Quase todos deixaram a aldeia. E daqueles que ficaram... O Sanya (Oleksandr) foi morto, e... O Liova... O..." A voz da mãe sobrepõe-se agora à do filho. A resposta que tinha sido arrancada a ferros é interrompida.
"Isso é o que as pessoas dizem, mas nós não vimos nada", assegura Natalia. "Não saímos do nosso quintal. Os russos não permitiam", precisa Mykola.
Em silêncio a assistir a toda a conversa está o filho mais velho, Yuri. Ele e a mãe são suspeitos de terem colaborado com o inimigo durante a ocupação russa. Em fevereiro, já tinham sido várias as visitas dos serviços secretos ucranianos. Natalia nega as acusações, mas prefere não falar do assunto. Durante toda a conversa, a mulher de 64 anos mostrou-se tensa e preocupada. A tensão nas mãos foi aliviando, mas quando a conversa chegou às execuções ficou agitada e só voltou a mostrar-se mais relaxada quando a agulha voltou a virar.
Na lista prometida por Mykola faltou um nome. É possível que fosse "o Andriy". Andriy Osadchy. Tal como Oleksandr Glushko e tal como todos os nomes na lista de Mykola, era um veterano na guerra do Donbass. O irmão, um major do exército ucraniano, não tem dúvidas: foi a família Zdohovets que entregou o irmão ao exército russo.
Já depois de visitarmos Kamianka falamos ao telefone com o major Oleksandr Osadchy. Não tinha muito tempo para falar. "Tenho a certeza de que foram eles que o denunciaram. Já lhes disse isso na cara. Só não percebo por quê. Eram vizinhos", conta, sem que lhe trema a mão na hora de apontar o dedo. Em fevereiro, os russos já tinham partido há seis meses, mas o homem ainda procurava saber o destino do corpo do irmão: "Só quero que me digam onde o enterraram."
Esta semana, meio ano depois, voltámos a tentar contacto Oleksandr, mas sem sucesso. Certo é que, garante a polícia de Izium, o nome de Andriy Osdachy não consta nas listas dos corpos exumados e já identificados.
Natalia nega ter visto soldados chechenos em Kamianka. Primeiro vieram os de Lugansk juntamente com os russos, depois, até meados de maio, ficaram só os LNR e no fim havia apenas russos. Mas os homens de Razman Kadyrov andaram na região. São acusados de terem torturado e assassinado centenas de pessoas. É essa a linha que segue a investigação da procuradoria de Izium, que está a reunir provas para apresentar ao Tribunal Penal Internacional.
A escola primária de Kamianka foi, durante a ocupação russa, transformada em edifício administrativo das forças de ocupação. O Exército russo cavou trincheiras para tanques. Da cave, os soldados resgataram um busto de Lenine. "Devia lá estar há mais de 30 anos", arrisca o nosso guia. Pelo chão há dezenas de livros: "História da língua ucraniana" e "História da literatura russa no século XIX" são alguns dos títulos. Há restos de adereços do que deve ter sido uma peça de teatro interpretada por crianças. A apresentação deve ter sido no pequeno auditório, agora reduzido a cinzas. Ficou uma parede junto à entrada. Há dezenas de pombas pintadas e uma palavra em letras pequeninas: "Paz." À mão foi toscamente acrescentada uma outra, em russo: "Guerra."
Quando partiram, os russos deixaram a escola completamente destruída. Tal como seis outras na capital de distrito. Antes da guerra havia 11. Agora só cinco podem ser recuperadas. O levantamento feito pela Câmara Municipal indica que, dos 246 prédios que existiam na cidade, não há nenhum que não mostre marcas da guerra e 16 ficaram reduzidos a escombros. A ponte sobre o rio Donets foi destruída pelos ucranianos numa tentativa de parar o avanço das forças russas em março do ano passado. Um ano depois da partida dos ocupantes, o acesso à cidade continua a fazer-se por uma ponte instalada pela engenharia militar ucraniana. Izium foi uma das cidades ucranianas que mais sofreram com a guerra. Houve fome, faltava água e poucas vezes havia eletricidade. Em fevereiro, o presidente da câmara confessava que a destruição era tanta que não sabia por onde recomeçar.
Mas, aos poucos, a recuperação avança. Os materiais de construção vão chegando à cidade. A prioridade das autoridades é reparar as mais de três mil casas particulares que estão danificadas. Se em fevereiro era difícil ter rede no telemóvel, agora já há internet e as crianças, as que restam, estudam online.
A guerra continua a rondar. O Donbass é já ali. Nas últimas semanas, as tropas ao serviço do Kremlin têm feito avanços em direção a Kupyansk. Bakhmut parece estar longe de voltar a cair para o lado de Kiev. As duas cidades distam menos de cem quilómetros de Izium. Bakhmut a sul, Kupyansk a nordeste. A geografia continua a ser importante na guerra. Por isso Volodymyr Matsokin, vice-presidente da câmara com a pasta dos assuntos humanitários, deixa ao telefone um apelo: "Precisamos de ajuda para construir abrigos antiaéreos."
