Reportagem TSF. Sem medo dos bombardeamentos, Vassyli tenta recuperar o que a guerra lhe tirou
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Poucos minutos depois de Vassyli ter conseguido recuperar a carrinha que largou longe de casa há mais de um mês, travou-se nos céus de Mykolaiv uma batalha entre a defesa ucraniana e os rockets dos lançados pelos smerch russos. A última posição russa em Kherson está a 40 quilómetros, em linha reta do ponto onde os rockets foram intercetados . É muito provável que tenha sido daí que o ataque partiu.
Por agora, Mykolaiv é uma cidade que está em mãos ucranianas. Os tanques russos chegaram a estar no centro da cidade, mas o exército ucraniano voltou a conquistar Mykolaiv. Há muitos postos de controlo no interior da cidade e pilhas de pneus espalhadas pelas avenidas. No interior desses pneus há cocktails molotovs que servem para, caso as forças de Moscovo voltem a entrar na cidade, tirar a visibilidade e dificultar o avanço do exército opositor.
Há ainda outro sistema de defesa. A ponte na única estrada que liga Mykolaiv a Odessa estão armadilhadas e prontas a explodir para dificultar o progresso das tropas russas. Uma dessas pontes fica sobre o rio Inhul, mesmo à entrada da cidade. Era para essa ponte que os roquetes pareciam dirigir-se. Há ainda outra ponte mais pequena. Se estas pontes forem destruídas, a única forma para sair da cidade é seguir em direção a Kherson.
Desta vez ganharam as defesas ucranianas. Todos os foguetes foram intercetados sobre o rio Inhul. Um dos invólucros chegou mesmo a cair no quintal da caso ao lado da de Vasylli, no bairro de pescadores da cidade, que nos últimos dias tem sido alvo de vários ataques das forças russas.
As explosões aconteceram diante dos olhos de Vasylli. Este homem de 65 anos, nascido na Moldávia, garante que não se assustou. Desde 24 de fevereiro que as explosões têm sido uma constante na vida de quem mora em Mykolaiv. Para além do mais continua, trabalhou muitos anos na construção de estradas, nessa altura habituou-se ao som da dinamite. Vassyl lembra os tempos que ajudou a construir, na Rússia, as estradas por onde agora o exército de Putin invade a Ucrânia. Os esforços valeram-lhe várias medalhas e louvores dos líderes soviéticos. Agora que está reformado mostra com orgulho os troféus.
Por isso mesmo, não tem dificuldade em compreender o que o exército russo lhe fez a 26 de fevereiro. Vassyl tinha passado a segunda noite da invasão russa a transportar mortos e feridos. Faltavam ainda 30 kms quando se deu conta da presença de tropas de Moscovo. "Não eram russos que vinham do Cáucaso,", específica. Vasyl encostou a velha carrinha Mercedes e apressou-se a deitar fora os cobertores ensanguentados que ainda estavam na parte de trás do veículo. Ordenou ao filho que fosse para o carro ligeiro, que seguia logo atrás, junto com os netos. "Se é para morrer alguém morro eu", atirou antes de continuar caminho na dianteira.
Ao aproximar-se das posições russas, as kalashnikovs começaram a disparar. Ao todo a exibe mais de 50 marcas de tiros. Só no para-brisas são 12, um deles atingiu o banco do condutor Nessa altura já Vasylli estava deitado por baixo do volante, enquanto tentava seguir em frente. "Quando começaram a disparar com metralhadoras pesadas tive medo", confessa enquanto vai recriando os movimentos que fez dentro do carro para salvar a vida. "Parei, reparei que a porta não abria por completo porque estava a bater nas árvores. Mesmo assim consegui descer e esconder-me por baixo." Foi lá que os soldados de Putin o encontraram.
Os invasores entre olharam-se e sem que homem tenha percebido porque o mandaram para casa e deram-lhe um conselho: ""Pega na tua família e foge daqui. Porque a partir de amanhã vai haver aqui um ataque infernal". Um mês depois, Mykolaiv ainda não caiu em mãos russas e Vasylli continua na sua casa no bairro dos pescadores.
Seguiu-se um dia de caminhada, Avô e Pai foram alternando para levar as crianças às costas e ao colo. Durante o relato, Vasylli emociona-se várias vezes, mas o homem ainda conseguiu levar um troféu: uma máscara antiga que mostra com um sorriso.
Vasylli é moldavo, como já aqui se disse, a mulher é russa (conheceu-a quando construía estradas no país dos sovietes) e o vizinho Yuri é ucraniano. Mas nenhum deles entende esta guerra.
A velha carrinha foi comprada com o dinheiro de uma vida. Servia-lhe sobretudo para cuidar das abelhas. As colmeias também foram destruídas por um míssil russo que caiu no bairro piscatório de Mykolaiv a 14 de março. Reformado "se cada português me desse uns cêntimos eu podia compor a carrinha".
