Repressão política, trauma, manipulação da verdade e resistência em filme candidato ao Óscar

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O Agente Secreto é um filme brasileiro sobre gente perseguida. O realizador Kleber Mendonça Filho e o ator e produtor Vagner Moura venceram prémios em Cannes e são candidatos ao Óscar. Estreia esta quinta-feira em Portugal
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Recife, Pernambuco, 1977, tempo de ditadura militar no Brasil. O filme O Agente Secreto acompanha a trajetória de Marcelo, nome de clandestinidade, na verdade Armando (papel de Wagner Moura), um professor universitário, cientista, que regressa à terra natal fugindo de uma vida de perseguição em São Paulo, devido a um conflito com um poderoso e corrupto industrial, por causa de uma patente. Ameaçado e ao abrigo de um programa de proteção de testemunhas, Marcelo procura paz e uma nova vida com o filho Fernando, que vive em Recife com os avós maternos.
Em Cannes, quando o filme teve estreia mundial, o realizador afirmou que um dos elementos que mais o levaram a querer escrever o filme foi entender que "o Brasil, tem um problema de amnésia autoaplicada e que foi normalizada com a anistia em 1979, proposta pelo próprio governo militar que desde 1964 tinha cometido incontáveis atos de violência contra a população brasileira".
"E essa amnésia causou um trauma na psicologia do país. Foi normalizado cometer todo tipo de violência e depois simplesmente passar um pano e tudo recomeçar do zero e vamos seguir a vida, bola para frente, porque é muito desagradável falar de certas coisas", denuncia.
Ainda que tudo seja, nas palavras do realizador, apenas "uma reprodução artística e talvez poética de um pensamento que existe".
"É muito estranho que esse roteiro vem sendo escrito há quatro anos e agora nos Estados Unidos há toda uma situação onde as universidades estão sendo atacadas basicamente por ensinar ciência e ensinar e apresentar fatos e interpretações factuais e científicas do mundo. Mas, sim, há um pensamento geralmente associado à extrema-direita de querer cortar qualquer coisa relacionada ao público, educação, saúde, inclusive", completa.
Kleber Mendonça Filho assume que, frequentemente, ao escrever o argumento, se lembrou de um ditado muito conhecido na União Soviética: 'Nenhuma boa ação ficará sem punição.'
Um dos produtores e protagonista do filme Vagner Moura reconhece que O Agente Secreto foi um parto longo e que já era objeto de troca de ideias com o realizador "há muito tempo, uns quatro anos". Tudo começou "num momento de pressão política, de distopia política mesmo" no Brasil.
Afirmou Kleber Mendonça, ao lembrar os tempos da ditadura no Brasil: "Eu lembro, quando era criança, de quando ia com a minha família para o interior, eu via pessoas passando fome na beira da estrada, crianças com um bucho enorme. São todas coisas que a gente conquistou nesses 50 anos de democracia. E isso é muito bonito. As pessoas pobres não tinham dente. Eram desdentadas. Isso está no filme, inclusive. Ao longo desses 50 anos, fui acompanhando quase que aos poucos a alteração disso. As pessoas têm tratamento dentário, elas são cuidadas. São coisas que sempre me chamaram a atenção. Eu acho que o Brasil melhorou muito."
O grande problema é que, diz o realizador, há dez anos "houve uma recaída totalmente inacreditável". "Foram tiradas do museu da história, coisas que eu nunca imaginei que voltariam ao uso diário. De palavras a atitudes, a posturas que não são generosas com o país, que são, na verdade, manipulações cínicas para favorecer poucos", critica.
Para alguns, parece ter voltado "um sonho do tipo de trazer de volta um período que já passou, que é exatamente o regime militar. Quase como se fosse uma festa fantasia de pessoas doentes, que queriam trazer de volta, basicamente, os militares. Uma ideia que não tem a menor sustentação prática, inclusive", nota.
O cineasta afirma que, "felizmente", o que estima como retrocesso que o Brasil estava a viver, "acabou de uma maneira oficial essa semana com a condenação do ex-Presidente, com uma quantidade enorme de provas inquestionadas".
"E vai para a prisão, porque o que ele fez e o que o seu gangue fez não é correto do ponto de vista de um país soberano e democrático. O Brasil saiu, inclusive, do regime militar e entrou no sistema democrático. Imperfeito, mas democrático", sublinha.
O Agente Secreto foi escolhido como candidato oficial do Brasil para Melhor Filme Internacional / Melhor Longa-Metragem Internacional nos Óscares de 2025.