Safári humano: 'turistas' saíam de Itália ao fim de semana e iam matar bósnios em Sarajevo

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A Procuradoria de Milão abriu uma investigação sobre um caso do tempo da guerra na Bósnia-Herzegovina. Cidadãos italianos terão ido a Sarajevo passar fins de semana a matar pessoas. Como num safári
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A história foi contada no jornal espanhol El País e no italiano La Repúbblica, mas já aparecia na terça-feira na edição em papel do diário bósnio Dnevni Avaz.
Já se sabia que a capital Bósnia esteve cercada entre 1992 e início de 1996 pelas milícias sérvio-bósnias. Já se sabia que, das colinas, os homens liderados por Radovan Karadzic e Ratko Mladic atiravam sobre quem passava nas ruas, sobre quem estava na fila para o pão. Estima-se que "mais de 11 mil civis tenham sido assassinados dessa forma", lê-se no El País.
Mas o que se sabe agora vai mais longe no macabro, no surreal, na indignidade. A tese da investigação, enquadrada num suposto "crime de homicídio voluntário com agravante de crueldade e motivos abjetos", sugere que houve italianos - perto de uma centena poderão ter estado envolvidos - que pagaram para ir a Sarajevo aos fins de semana e poder disparar sobre as pessoas, como numa caçada.
Cidadãos comuns, "próximos de círculos de extrema-direita e apaixonados por armas, que contratavam este serviço como um safári humano na cidade sitiada". De acordo com a denúncia, "iam num voo de Trieste para Belgrado da companhia sérvia Aviogenex, que na época operava a partir do aeroporto italiano". Para serem snipers de fim de semana, pagavam o "equivalente a entre 80 mil e 100 mil euros, de acordo com as primeiras hipóteses da investigação. Por atirar em crianças, pagavam "mais". Nas informações que vieram a público, fala-se de um empresário milanês, dono de uma clínica estética privada e de cidadãos de Turim e Trieste.
A denúncia refere Jovica Stanisic, antigo responsável dos serviços secretos sérvios e condenado por crimes de guerra em Haia pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia, como um dos suspeitos de organizarem as viagens, a que chamavam caçadas, facilitando trajetos em temos de guerra e ocultando a verdadeira natureza daquele turismo. Stanisic apareceu perante os juízes do TPI pela primeira vez em 2003, começou a ser julgado em 2009, ano em que a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA), segundo o Los Angeles Times, apresentou ao tribunal um documento sigiloso que atestava o papel do sérvio como "agente infiltrado, ajudando a trazer a paz à região". Em junho de 2021, foi considerado culpado de homicídio, deportação, transferência forçada e perseguição, crimes contra a humanidade ocorridos em Bosanski Šamac em abril de 1992, e condenados a 12 anos de prisão, tornando-se a única condenação do Tribunal a um funcionário da Sérvia por crimes na Bósnia-Herzegovina. O veredicto do recurso de maio de 2023 aumentou-lhe a pena para 15 anos.
Sobre a investigação agora aberta em Milão, conta anda o El País que a denúncia, documentada em "17 páginas, foi feita pelo escritor e jornalista Ezio Gavazzeni, apoiado pelo renomeado ex-juiz Guido Salvini e pela antiga autarca de Sarajevo de 2021 a 2024, Benjamina Karic, que tem recolhido informações sobre algo que tem sido alvo de rumores há anos e que se concretizou em 2023 em Sarajevo Safai, um documentário do esloveno Miran Zupanic", segundo o El País. Este filme recolhia testemunhos e dava pistas sobre a possibilidade de milionários estrangeiros pagarem para viajar para a cidade bósnia para poderem disparar eles próprios contra seres humanos.
A Procuradoria da Bósnia tinha arquivado uma investigação devido à dificuldade de investigar o caso num país ainda muito dividido e tripartido (também no sistema judicial estatal, com cada uma das entidades étnicas a terem os seus representantes) e devastado pela guerra, relatou Gavazzeni ao jornal La Repubblica está terça-feira. Para os tribunais sérvios, o assunto é "uma lenda metropolitana", ou seja, mito urbano.